Thomas Bernhard mostra como sentir vergonha do próprio país

Thomas Bernhard mostra como sentir vergonha do próprio país

O Brasil está recebendo mais uma onda de traduções dos livros de Thomas Bernhard (1931-1989). A obra do romancista e dramaturgo austríaco levou tempo para chegar ao mercado brasileiro, diferentemente das editoras espanholas que promoveram um boom em torno do escritor na década de 1980. Em 2020, saíram por aqui as peças teatrais “Praça de Heróis” (1988) e “O Presidente” (1975), e em 2021 foi lançado o famoso romance “Mestres Antigos” (1985). O interesse por Bernhard tem crescido na crítica brasileira nos últimos 30 anos, graças às traduções. A editora da Universidade Federal do Paraná publicou “O Artista do Exagero: A Literatura de Thomas Bernhard” (2014), uma coletânea de ensaios que dão um panorama geral e extenso da obra do autor. Também chama a atenção a recepção favorável por parte de escritores brasileiros como Bernardo Carvalho e Cristovão Tezza, que ajudaram na divulgação da obra bernhardiana.

“A literatura de Bernhard é uma forma de resistência. Ele nada tem a ver com melancolia ou niilismo. O pensamento é fatal quando levado às últimas consequências, ou seja, quando supomos o fim da dúvida, quando exigimos respostas. O que a literatura, e a frase de Bernhard escancara, é a possibilidade de pensar em permanência, por desdobramentos, contradições e contrassensos, às gargalhadas”, diz Bernardo Carvalho, no posfácio do romance “Andar” (1971), traduzido aqui em 2017.

Até agora a influência de Bernhard no Brasil se deu mais nas questões estéticas puras, desconsiderando a potência crítica dela ao olhar para a sociedade. Algo semelhante se passou na Espanha — de acordo com as leituras de Javier Marías. Uma capacidade que o escritor austríaco tem de pegar o nervo dos temas e fazer a cirurgia sem anestesia, o que significa dor, mas com boa dose de humor. O que existe de mais sagrado na Áustria, é filtrado por um processo de profanação.  

Vergonha coletiva

A obra de Bernhard é um acerto de contas com o seu país que teve a mancha histórica de ser anexado pela Alemanha nazista. Seu último romance (“Extinção”) e a peça teatral “Praça de Heróis”, por exemplo, fazem questão de brigar com o esquecimento que a Áustria tenta impor a respeito daquele período, digamos, vergonhoso de sua História. A vergonha é também um sentimento coletivo e que forma nações, conforme muito bem lembrado pelo historiador italiano Carlo Ginzburg.

Mestres Antigos, de Thomas Bernhard (Companhia das Letras, 184 páginas)

Ivan Turguêniev escreveu uma das frases mais interessantes a respeito da vergonha nacional no romance “Pais e Filhos” (1862): “A melhor coisa num russo é a má opinião que ele tem se si mesmo”. E a opinião de Bernhard sobre a Áustria é a pior possível e tira o leitor do sério. Ele consegue mostrar o lado vexaminoso e farsesco da sociedade austríaca que, após da Segunda Mundial, tentou resgatar a ideia de uma nação cosmopolita e berço do pensamento de figuras como Freud.

“Minha existência sempre perturbou, o tempo todo. Sempre perturbei e sempre irritei as pessoas. Tudo que escrevo, tudo que faço é perturbação e irritação. Minha vida inteira nada mais é do que perturbação e irritação ininterruptas. Porque chamo a atenção para fatos perturbadores e irritantes. Existem aqueles que deixam os outros em paz e aqueles que perturbam e irritam, categoria à qual pertenço”, disse o escritor no livro “Origem”, que reúne cinco volumes de memórias.

O trecho acima sintetiza o estilo de Bernhard: a repetição de palavras que vai capturando o leitor em parágrafos imensos. O exagero da linguagem dá forma ao grotesco para rebaixar o sagrado da cultura austríaca, sobretudo o seu teatro. A obra bernhardiana tem a capacidade de “perturbação”, de tirar o leitor de uma paz de espírito. É uma forma de choque para descrever o mundo contemporâneo, a partir de seu país, e uma época que jamais foram iguais após a Segunda Guerra.

Desmoronamentos

O romance “Mestres Antigos” é uma ótima introdução ao espírito da obra de Bernhard. O personagem Reger é um crítico musical de renome no mundo todo e visita regularmente o Museu de Arte Moderna de Viena apenas para ver uma tela de Tintoretto. Uma repetição sem fim de hábitos, que se reflete na escrita da narrativa. Um dia, ele convida o filósofo Atzbacher para acompanhá-lo nesse ritual de observar o quadro. O livro é a conversa deles que passa o mundo em revista, sobretudo a capital austríaca.

“Viena é a cidade da música, escrevi certa vez no ‘Times’, mas é também a cidade dos banheiros e privadas mais nojentos. Nesse meio-tempo, Londres já sabe disso, mas Viena naturalmente ainda não, porque os vienenses não leem o ‘Times’, contentam-se com os jornais mais primitivos e hediondos impressos no mundo com o intuito de emburrecer as pessoas, ou seja, aqueles jornais perfeitamente adequados à perversão emocional e intelectual vienense”, diz Reger, em seu trabalho interminável de profanação.

As narrativas de Bernhard têm muitas vezes a característica de uma longa rememoração e de uma encenação teatral. Poucos personagens, ambientações mínimas, e muitas vozes se manifestando. Estamos diante do artista da palavra. “Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo”, disse o autor, em um conhecido discurso. Não há uma ficção realista ou antirrealista em seus livros. Existem vozes poderosas que fazem do discurso uma arma — até política, dirão muitos leitores.

Uma parte expressiva de sua obra foi dedicada ao teatro (18 peças ao todo). Desde o ano passado, o público brasileiro tem acesso a dois trabalhos excepcionais: “O Presidente” e “Praça de Heróis”. São textos que podem ser lidos como romances, assim como a prosa narrativa de Bernhard é adaptável aos palcos. Em “O Presidente”, o autor trabalha o lado por trás do poder, a “ob-scena”, as obscenidades do personagem do título e sua amante, o abismo que separa governantes e governados.

A política aparece de forma discreta em “Praça de Heróis”, mas a peça é a exumação da História austríaca no século 20. A história gira em torno do suicídio do professor Schuster e o “jantar funerário” que a família organiza. Nesse evento, a viúva passa a ter delírios com suas memórias do famoso discurso de Hitler (um austríaco), em 1938, na famosa Heldenplatz (a vienense praça dos heróis), que fica próxima ao apartamento dela. A fala do líder nazista selou a anexação da Áustria pela Alemanha.

Autoritarismos

Bernhard coloca na boca dos personagens todos os ressentimentos e fantasmas históricos dos austríacos. Diz Anna, filha de Schuster: “Na Áustria você precisa ser católico, ou nacional socialista, todo o resto não é tolerado, todo o resto é aniquilado, ou seja cem por cento católico e cem por cento nacional-socialista”. O personagem do professor Robert fala sobre a necessidade que a Áustria sempre tem de contar com um líder autoritário, uma figura que pode beirar, sem problema, o totalitarismo:

“A própria Áustria nada mais é que um palco, no qual tudo está desmantelado podre e deteriorado, um grupo de figurantes com ódio de si mesmo, de 6,5 milhões de desamparados, 6,5 milhões de dementes e loucos desvairados, que berram ininterruptamente por um diretor, o diretor virá, e os levará definitivamente para o abismo, 6,5 milhões de figurantes, que são afrontados todos os dias por uns poucos protagonistas criminosos”.

No Brasil, talvez só o escritor André Sant´anna e o cineasta Kleber Mendonça mostrem capacidade de fazer a exumação do próprio país à la Bernhard. Um exemplo muito bom na América Latina foi o do escritor Horacio Castellanos Moya, que publicou o romance “Asco: Thomas Bernhard em San Salvador”, em 1997. É uma narrativa curtíssima em que o exagero e o grotesco são as ferramentas para o autor observar impiedosamente o seu país, El Salvador. O leitor perde até o fôlego com o choque da escrita.