A natureza humana está sempre envolta por mistério. Desde a concepção, a jornada do homem se caracteriza pela disputa, pela capacidade de conseguir se destacar dos outros, pelo talento de despertar em seu próximo a sensação de que têm alguma coisa em comum, fora a coincidência de estarem os dois no mesmo plano, ainda que rivalizando pela preferência de alguém num cenário específico. Esforçamo-nos por deixar, pelo espaço de um instante que seja, de ser só mais um rosto (feio) na multidão e figurar no centro do palco da vida, acreditando que isso é o que nos faria experimentar a promessa de felicidade de que falou o escritor francês Henri-Marie Beyle, o Stendhal (1783-1842). Muitas vezes, quando percebemos que essa esperança não se concretizou, que o doce pássaro da juventude já batera asas faz tempo e levara consigo o encanto de um semblante outrora fresco, mas hoje sulcado pelo passar dos anos; a harmonia do corpo já não mais vigoroso que agora começa a se entregar à decrepitude; boa parte da energia e do gosto por realizar determinadas atividades, o espírito, porque oco, se quebra. Por essa razão, a velhice para tanta gente é mesmo o naufrágio de que falou certa feita o general Charles de Gaulle (1890-1970), ex-presidente da França entre 1958 e 1969, sobre o marechal Henri Pétain (1856-1851), também ex-chefe de Estado francês de 1940 a 1944, o mais velho mandatário do país até hoje, quiçá o mais velho presidente em exercício do mundo. Pétain tinha tudo para figurar na história como herói durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), mas passado um quarto de século, vira sua glória se esfarelar ao conferir à República de Vichy uma postura colaboracionista para com a Alemanha de Adolf Hitler (1889-1945) ao longo da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Somos sempre os únicos responsáveis por nossos sucessos e por nossas falhas, e ainda que leve o tempo de uma vida, nunca é tarde para se arrepender, mudar e, de preferência, reparar nossos erros. Esse parece ser o último propósito de Francis Joseph Sheeran (1920-2003), ex-combatente da Segunda Guerra Mundial e ex-motorista de um frigorífico que, em almejando mudar de vida, se torna um dos maiores gângsters dos Estados Unidos. Já no fim da vida, morrendo de câncer, Sheeran, protagonista de “O Irlandês” (2019), dirigido por Martin Scorsese, resolve dizer parte do que sabe ao FBI, o serviço federal de investigações americano, talvez por mero — e tardio — desencargo de consciência, ou quem sabe ainda não tivesse se redimido tanto assim e ainda desejasse sentir aquele quase esquecido gosto pela vingança, por sangue, que sempre pautara sua vida. A procura por uma vida de fato mais digna também é a aspiração de Ulisses em “Ya no Estoy Aquí” (2019), do mexicano Fernando Frías de la Parra, que deixou público e crítica em êxtase. “O Irlandês”, “Ya no Estoy Aquí” e mais oito filmes — produzidos entre 2021 e 1975, todos no acervo da Netflix —, demonstram o gênio de muito o que é feito no cinema ao redor do planeta. Só a arte mesmo para nos fazer acreditar que a humanidade, porventura, não seja um caso perdido.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

É muito difícil um casamento resistir à perda de um filho — e o casal que consegue tal proeza pode reivindicar essa vitória. Ao se sobrepor à vida, a morte reafirma seu inesgotável poder sobre os homens, por mais escondida que esteja. A frustração, a tristeza, o desespero de ver morrer um filho, a vida tendo desrespeitado seu sentido mais primevo, é o que se absorve da maneira mais brutal em “Pieces of a Woman”. Ao espectador, é concedido o direito de observar de perto — perto demais — o trabalho de parto de Martha Weiss, ao longo de sombrios 25 minutos — e só ao fim dessa agonia o nome do filme surge na tela. Com essa decisão artística, o diretor Kornél Mundruczó quis fazer o público tomar parte no tormento da personagem principal, fazê-lo perceber que havia uma vida se abrindo para o mundo e essa vida, por alguma razão, escapou. Martha é absorta por uma espiral de sentimentos múltiplos: a alegria fugaz de se sentir mãe logo é substituída por um luto que se prolonga na vida da protagonista indefinidamente, estado do qual ela não consegue se livrar, e que vai impactar de modo decisivo seu relacionamento com o marido, Sean, e a mãe, que reconhecem sua dor, insistem para que ela redescubra o prazer na vida, mas não sabem como persuadi-la, e metem os pés pelas mãos. Sean, em particular, passa a demonstrar uma ligeira indiferença, primeiro pelo sofrimento da companheira, depois pela própria Martha, que por sua vez perde completamente o interesse pelo parceiro. O roteiro faz com que se entenda que também ele padece com a tragédia, mas que isso não lhe serve de licença para sua covardia. Enquanto isso, Martha se desintegra ao ponto de nem ostentar mais qualquer coisa de humano. Torna-se uma criatura algo transcendental, como um espectro que ronda a matéria que lhe compunha, ansiando por voltar àquele corpo, impressões que a audiência só nota graças ao espantoso talento de Vanessa Kirby. Sua Martha Weiss é um dos retratos mais pungentes de um personagem em sua condição mental, uma mulher despedaçada que possivelmente nunca volte a estar por inteiro outra vez, ainda que o final empenhe uma promessa de felicidade.

Em 1870, o capitão Jefferson Kyle Kidd, viúvo e ex-combatente de duas guerras, ganha a vida cruzando o Texas a fim de ler para a população despachos sobre o que se passa em outras partes dos Estados Unidos e do planeta, muito menor século e meio atrás, ofício que logo terá de abandonar, uma vez que a imprensa do país se consolida rapidamente. No caminho, Kidd se depara com Johanna, uma órfã de 10 anos que perdera a família num dos conflitos mais recentes e está à própria sorte, criada por índios e que não fala inglês. A menina, de imediato hostil a qualquer tentativa de aproximação, concorda em seguir com o cavaleiro, que primeiro a entrega a um casal de lavradores, mas acaba por incorporá-la a sua caravana de um homem só. Juntos, os dois enfrentam os mesmos perigos e vivem uma mesma vida, um se valendo do outro para curar sua própria alma.

Tirada do livro “I Heard You Paint Houses” (2003), de Charles Brandt, investigador profissional que se debruçou sobre o crime organizado nos Estados Unidos, a história de “O Irlandês” desvenda o envolvimento de Frank Sheeran, um dos maiores mafiosos americanos entre os anos 1960 e 1970, no sumiço do líder sindical Jimmy Hoffa. O filme esmiúça a vida de crimes de Sheeran desde o começo, quando ele conhece Russel Bufalino, um dos gângsteres mais poderosos da Pensilvânia à época e se torna um pintor de casas, alusão ao sangue das pessoas que extermina ao respingar nas paredes, expressão que Brandt tomou por base ao batizar o livro. Conforme a trama se desenrola, o espectador acompanha a escalada do irlandês junto à quadrilha, sempre fiel a Bufalino, seu padrinho na vasta carreira de delinquências. Foi honrando a confiança que o chefão depositara nele que Sheeran pôde chegar tão longe, e em nome desse código de honra muito particular, comete as maiores baixezas, como matar Hoffa, outro homem-forte do submundo que também o tomara por protegido. Sheeran não resiste a uma ofensiva mais severa do FBI e cai, levando os peixes grandes todos consigo. Amarga alguns anos de cadeia e termina num asilo, onde o filme principia e acaba, recurso muito bem usado por Martin Scorsese, um mestre também em se valer da estratégia de comprimir e alongar o tempo a seu gosto, a fim de imprimir mais realismo aos enredos que defende. “O Irlandês” talvez seja a obra-máxima de Scorsese — até que venha a próxima.

Ulises não é nenhum personagem de Homero, nem faz parte de “Odisseia” alguma, mas bem que poderia. O protagonista de “Ya no Estoy Aquí” tem sua jornada própria, uma trajetória em busca de autoconhecimento e descobrimento do mundo, honra, afirmação. O garoto de 17 anos, como qualquer um em Monterrey, nordeste do México, gosta de roupas largas, cabelo extravagante, penduricalhos, estética que, sob uma análise ligeira, remeteria aos rappers nova-iorquinos. No caso de Ulises, o moleque é um digno representante da cultura regional, hispânico-latina, mais precisamente. Ele sonha em se tornar um expoente da Kolombia, um subtipo da cúmbia, ritmo surgido no país sul-americano, com algumas variações de tempo. Ulises também, como um adolescente comum, anda em companhia dos amigos, e aí é que está o problema. Numa dessas, conhece criminosos de verdade, se mete em confusão com eles e sua única saída é imigrar, no bagageiro de uma van, para os Estados Unidos. Lá, se vira como pode, dançando no metrô a fim de defender um trocado e dorme de favor na água-furtada da garota sino-americana, também uma intrusa no mundinho abafado da América, interessada nele, mas não correspondida, porque Ulises não fala inglês, e tampouco a moça entende espanhol. O filme de Fernando Frías de la Parra é um portento de beleza, de originalidade, com seus planos ora disparados, ora lentos, quase se arrastando, tudo friamente pensado, enquadramentos quase sempre muito abertos, a fim de conferir à cena a sensação de distância, de exclusão. O resultado de tamanho esmero é um genuíno tratado antropológico sobre a juventude em países periféricos da América Latina, sobre a resistência cultural nesses rincões perdidos, mediante a ótica do oprimido, sem jamais se permitir concessões ao vitimismo. Ulises é digno até a raiz do cabelo descolorido, mesmo quando reconhece a derrota e se submete. Um herói, portanto.

Poucos filmes conseguem o feito de, ao condensar diversos tipos de linguagem e de manifestações artísticas, criar uma obra absolutamente original — e bela, muito bela. Com “Roma”, Alfonso Cuarón não só chegou lá como tornou-se um dos paradigmas do que se pode chamar de novíssimo cinema. O enredo talvez não tivesse nada de excepcional, mas a forma como Cuarón leva as passagens sobre o dia a dia de uma família abastada num bairro nobre da Cidade do México — a Roma do título — no começo dos anos 1970, tendo sempre por alvo a empregada doméstica da família, é impecável. A história de Cleodegarda, a Cleo, é pungente de tão comum. Conhecemos dezenas de Cleos, sobretudo no Brasil, remanescente de um regime escravocrata abolido nem faz tanto tempo, e paternalista até o fim do mundo. É angustiante a forma como sua vida se esvai. A protagonista não vê nada em seu curto horizonte que não seja se empenhar no serviço doméstico: recolher as fezes de Bojas, o vira-lata da casa, lavar o quintal, arrumar uma casa enorme, cozinhar para seis pessoas, fora os empregados… Aos domingos, arruma tempo para ir ao cinema com um rapaz que conhece por intermédio da colega de ofício que divide as tarefas com ela. Mas nem nisso a vida lhe sorri: ao se descobrir grávida, conta a novidade (que não lhe parece nada boa) ao namorado durante a sessão e é abandonada ali mesmo. A narrativa tem uma ligeira virada nesse ponto, susceptibilidades de Cleo são exploradas mais a fundo e a sensação de incômodo do espectador ao se colocar na pele da criada é insuportável. Não se nota se Cleo gosta da vidinha que leva, se apenas a tolera, se a odeia. A única certeza que se pode ter é que ela é simplesmente empurrada pelo destino. A cena na praia, quando o filme já se encaminha para o desfecho, é de deixar o peito apertado. Impossível não se emocionar — e, igualmente, não se enfurecer — com a ingenuidade de Cleo. Superado o episódio, a vida torna ao leito, o que não é exatamente bom. Preterido no Festival de Cannes 2018 por pinimbas entre os organizadores da premiação e a Netflix, “Roma” teve uma recompensa justa e levou o Oscar de Melhor Fotografia daquele ano. Fellini puro, poesia pura, cuja dramaticidade a linda fotografia em preto-e-branco realça, a grandeza de “Roma” merecia muito mais.

Uma trama muito acima da média, um bom elenco, a fotografia perfeita e… voilà!, se dá a mágica. O detetive aparentemente clichê de Leonardo DiCaprio se vê no meio de uma investigação nada convencional em que ele próprio adquire papel de destaque. O personagem de DiCaprio precisará esquecer qualquer estereótipo do detetive de filme ambientado nos anos 1950 se quiser desvendar o caso do paciente assassinado num sombrio manicômio presidiário no meio do mar: deverá também ele se imiscuir na história e se tornar um dos lunáticos ali encerrados – ou pelo menos se aproximar o quanto puder disso. A ilha não tem nada de paradisíaca; sua possível natureza de idílio fora totalmente deformada, à guisa de derradeiro refúgio para a loucura criminosa que habita o coração de determinados homens. Nesse Éden demoníaco tudo fica ainda pior quando a cólera de um furacão deixa o lugar incomunicável, vários internos fogem e o caos se instala de vez.

Vítimas de um ataque brutal, uma mulher morre e seu marido, Leonard, fica com ferimentos graves. Ele consegue sobreviver, mas a violência dos golpes lhe provoca um distúrbio neurológico. Seu cérebro não registra mais fatos recentes e ele esquece por completo de coisas que acabaram de acontecer. Mesmo assim, ele desafia suas limitações e se prontifica a encontrar o assassino de sua mulher e, finalmente, vingá-la. O filme se bifurca em duas narrativas: uma em cores, que expõe os fatos de modo reverso, e outra em preto e branco, sob a forma cronológica comum, explorando a amnésia do protagonista para, no desfecho, ligar as duas e, esclarecer se Leonard matou o homem certo.

Considerado pelos críticos como o filme mais pessoal de Steven Spielberg, “A Lista de Schindler” relembra a ocupação do Gueto de Cracóvia, uma área de pouco mais de 16 hectares em que milhares de judeus foram obrigados a se amontoar logo depois de declarada a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Aqui, Oskar Schindler (1908-1974) é retratado como o típico anti-herói — mulherengo, ardiloso, amoral —, mas com tino invulgar para os negócios e, o principal, político, numa boa acepção para a palavra. Homem bem-relacionado com todos os próceres da alta sociedade germânica (leia-se, os líderes nazistas), chegou a se filiar ao Partido Nacional-Socialista, menos por ideologia que por amor a uma boa oportunidade de ganhar dinheiro. Visto como um “bom alemão”, Schindler logo foi autorizado a abrir uma siderúrgica especializada na fabricação de panelas esmaltadas — numa época em que somente os apaniguados de Adolf Hitler (1889-1945) comiam —, para a qual empregava mão-de-obra maciçamente judia, na maior parte das vezes sem qualquer aptidão para o ofício. Destarte, salvou do extermínio cerca de 1.200 homens e mulheres discriminados pelo nazismo por motivação étnico-religiosa, configurando-se em um dos maiores filantropos da história. Schindler amargara algumas passagens pelo cárcere nazista e perdeu toda a fortuna por causa de quedas na produção — e por sempre gastar mais do que tinha, ávido por manter o padrão de vida a que se acostumara quando da guerra. Todo em preto-e-branco, o único detalhe colorido ao longo da trama é o casaco vermelho de uma menina, figura de linguagem escolhida por Spielberg para fazer menção às vítimas do holocausto, responsável pela execução de mais de seis milhões de judeus. A menina do casaco vermelho existiu de fato, o nazismo existiu de fato — apesar de muitos brucutus o negarem ainda hoje, malgrado as evidências —, e também por isso o diretor lhe dedica um afeto particular. Nascido um ano depois do fim da Segunda Guerra, o próprio Steven Spielberg, judeu, poderia ter sido um dos imolados pela barbárie nazista, tema recorrentemente abordado pelo cinema. No clássico de Spielberg, a monstruosidade de Hitler é investigada em meandros em que não se havia enfronhado até então. A humanidade agradece, a Schindler e a Spielberg.

Baseado no conto “Eight O’clock in the Morning” (1963), de Ray Nelson, o personagem central é um operário que abandona o Colorado em que nasceu e cresceu e se muda para uma grande cidade, à procura de melhores condições de vida. Durante uma operação policial chocantemente violenta, a polícia destrói todo um quarteirão do bairro pobre em que ele passa a viver, talvez o único branco em meio a uma massa de negros e latinos. No corre-corre entre os escombros, ele se depara com um par de óculos escuros que lhe permitem enxergar o que há por trás da capa de humanidade de certas pessoas, e não gosta do que vê. Além de ser capaz de desvendar a verdadeira natureza desses indivíduos, consegue também decodificar as mensagens subliminares cifradas transmitidas por eles em outdoors e pela televisão, a fim de dominar o mundo. O candidato a salvador do homem junta-se a um companheiro de trabalho e os dois passam a liderar um movimento de resistência. “Eles Vivem” é o próprio filme de autor, engajado, que serve de alegoria quanto a mostrar a alienação da maioria esmagadora da população mundial, sempre sequiosa de um messias. Não é tolice pensar que John Carpenter fez da história mais que uma sátira. O filme é um clamor em defesa dos revolucionários do mundo.

Em tempos de negacionismo, a natureza se encarrega de gritar para o homem que não ignore as evidências, arroste os problemas, tenham a gravidade que tiverem, e resolva-os. “Tubarão”, tornado verdadeiro paradigma do suspense, atesta que o homem erra e segue errando quanto a compreender a ciência — e o próprio mundo —, sendo ele mesmo quase sempre o culpado pelas tantas catástrofes que o vitimam. Na produção de Steven Spielberg, um cult também por se valer dos mais insólitos recursos tecnológicos — recursos tecnológicos disponíveis à época, que se diga —, um monstro em forma de peixe gigantesco, faminto e raivoso, começa a frequentar a praia de uma certa Amity, cidadezinha litorânea cuja economia tem por esteio justamente o turismo. O prefeito quer a todo custo abafar os ataques, mas o xerife não se submete e solicita a análise de um especialista e de um marujo com décadas de convés a fim de descobrir a provável razão do bicho ter resolvido passear por ali. Como se está falando de 1975 — e, principalmente, de ficção —, nem se cogitava citar manejo de espécies ou algum outro mecanismo científico mais ponderado: eles não admitem nenhuma outra solução a não ser dar cabo do tubarão branco. A tarefa, por óbvio, mostra-se muito mais complexa do que eles pretendiam, e a besta marinha leva a melhor na história, o primeiro blockbuster de que se tem notícia, que não deixa a atmosfera de consternação se dissipar nunca, muito por causa da lendária trilha sonora do mestre John Williams, por trás de outros sucessos como os da franquia “Guerra nas Estrelas”, criada por George Lucas, e a “Lista de Schindler” (1993), igualmente dirigido por Spielberg.