O espírito humano, cheio de esconderijos, de lugares que muitas vezes nem nós mesmos conseguimos acessar, vai acumulando as muitas experiências pelas quais passamos ao longo da vida, memórias que acabam por nos servir, de um jeito ou de outro, em algum momento, a fim de que possamos manter a salvo a integridade mental. A jornada do homem sobre a Terra é plena de surpresas, eventos inesperados que o colhem, trazendo em seu bojo ora prazer, ora situações infaustas, e mesmo sabendo de tudo isso, a gente não deixa nunca de esperar pelos insólitos da vida, ansiando, por óbvio, que nos sejam doces. Os dilemas existenciais, tão comuns na vida do mais ordinário dos ordinários, nos tiram do prumo ao se prestarem como uma espécie de prova de fogo, a fim de nos fazer descobrir aonde somos capazes de chegar em busca de um ideal, de uma convicção, de um sonho. A natureza humana necessita que lhe deixem abandonar a dureza do mundo da matéria, a austeridade da existência, e rumar para uma dimensão em que tudo soe mais genuíno, paradoxalmente mais racional, em que a vida mesma tenha mais significado — ainda que por um tempo já previamente estabelecido, malgrado o cenário exista somente para aqueles que o podem conceber. A vida para o homem é um constante desafio, sobre o qual tem de se debruçar todos os dias a fim de saber se está fazendo mais acertos ou se está, covardemente, se entregando ao aconchego da falha. O filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995) argumentava que não tinha razão de ser uma vida sem pensamento, que a reflexão sobre tudo quanto acontece ao longo de sua trajetória deve ser uma rotina para o indivíduo e, a partir do que se lhe apresentasse do processo, deveria formular alguma ideia organicamente nova, que por sua vez, teria o condão de suscitar novos meios de se enxergar determinado problema, dando fecho ao ciclo. O inconveniente maior em se colocar a recomendação de Deleuze em prática é que, na maior parte dos casos, a alma dos muitos homens que compõem uma sociedade, um povo, uma nação, está tomada por conceitos adulterados a respeito de determinado assunto, o que acaba por exigir muito tempo, empenho redobrado do sistema educacional e, não raro, interferência dos poderes Legislativo e Judiciário quanto a produzir a forma ideal por que devem se guiar os cidadãos. Mesmo pessoas agraciadas com um inestimável talento artístico — que a conduzem a uma vida na qual prestígio e amplo poder aquisitivo tornam-se uma realidade —, passam por experiências abomináveis de discriminação étnica ainda hoje, como se deu com Gertrude “Ma” Rainey (1886-1939), a Mãe do Blues, nos Estados Unidos dos anos 1920; é o que mostra o diretor George Costello Miller em “A Voz Suprema do Blues” (2020), que ainda tem carga dramática extra por ser o último trabalho do ator Chadwick Boseman (1976-2020), mais conhecido por dar vida ao herói Pantera Negra. A indústria alimentícia, segundo defende o sul-coreano Bong Joon-ho em “Okja” (2017), produz muito mais que enlatados cheios de conservantes, edulcorantes e outros aditivos químicos: gera também maus-tratos aos animais (que sacrifica) e uma perversão econômica, uma vez que planta no inconsciente coletivo a demanda por produtos que, embora de baixo custo, não cumprem sua função primeira, ou seja, é comida que não nutre, não é nada. Registros cirúrgicos de seu tempo, “A Voz Suprema do Blues”, “Okja” e mais oito títulos lançados entre 2020 e 2016, os dez na Netflix, são os novíssimos clássicos a que gente tem de dar atenção durante esse curto — e louco — século 21.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix
Além da história poderosa, “A Voz Suprema do Blues” dá o tom também pelas atuações. Marcado pelo infortúnio da morte precoce de Chadwick Boseman (1976-2020), aos 43 anos, vitimado por um câncer colorretal, o filme cresce justamente se analisado à luz do núcleo liderado pelo intérprete de Levee Green, trompetista do conjunto de Gertrude “Ma” Rainey (1886-1939), interpretada por Viola Davis, que grava um disco com a Mãe do Blues num estúdio abafadiço em Chicago. O diretor George C. Wolfe, ganhador de um Tony — o Oscar do teatro americano —, talvez já prevendo o que aconteceria com um de seus protagonistas — ou tendo sido alertado sobre uma possível baixa inesperada e trágica —, resolvera dar a Boseman a chance de sua vida. E o ex-Pantera Negra brilhou. É ele quem conduz as grandes questões discutidas ao longo da pouco mais de hora e meia da trama. Muito pouco tempo para que se tratasse de racismo, machismo, relações pouco éticas no showbizz, política e homofobia, nessa ordem, num enredo que, tomando-se por base o título pomposo, passaria como a cinebiografia definitiva de uma estrela da música americana dos anos 1920. Felizmente, ninguém, nem diretor nem atores foram levados a encará-lo com esse artificialismo, e, assim, a produção, adaptação do texto de August Wilson para a peça de mesmo nome, em menos de seis meses de lançada, já se tornou um cult, em especial entre melômanos e artistas de toda sorte. O desempenho soberbo do protagonista na pele do músico obcecado com a carreira garantiu a Boseman um Globo de Ouro (póstumo, é verdade, mas à altura de seu talento, cuja lembrança há de ficar). Mesmo com um desfecho infausto — para ator e seu personagem —, Chadwick Boseman cerrou sua última cortina com toda a classe que a figura aristocrática de Levee Green lhe inspirava.
Ulises não é nenhum personagem de Homero, nem faz parte de “Odisseia” alguma, mas bem que poderia. O protagonista de “Ya no Estoy Aquí” tem sua jornada própria, uma trajetória em busca de autoconhecimento e descobrimento do mundo, honra, afirmação. O garoto de 17 anos, como qualquer um em Monterrey, nordeste do México, gosta de roupas largas, cabelo extravagante, penduricalhos, estética que, sob uma análise ligeira, remeteria aos rappers nova-iorquinos. No caso de Ulises, o moleque é um digno representante da cultura regional, hispânico-latina, mais precisamente. Ele sonha em se tornar um expoente da Kolombia, um subtipo da cúmbia, ritmo surgido no país sul-americano, com algumas variações de tempo. Ulises também, como um adolescente comum, anda em companhia dos amigos, e aí é que está o problema. Numa dessas, conhece criminosos de verdade, se mete em confusão com eles e sua única saída é imigrar, no bagageiro de uma van, para os Estados Unidos. Lá, se vira como pode, dançando no metrô a fim de defender um trocado e dorme de favor na água-furtada da garota sino-americana, também uma intrusa no mundinho abafado da América, interessada nele, mas não correspondida, porque Ulises não fala inglês, e tampouco a moça entende espanhol. O filme de Fernando Frías de la Parra é um portento de beleza, de originalidade, com seus planos ora disparados, ora lentos, quase se arrastando, tudo friamente pensado, enquadramentos quase sempre muito abertos, a fim de conferir à cena a sensação de distância, de exclusão. O resultado de tamanho esmero é um genuíno tratado antropológico sobre a juventude em países periféricos da América Latina, sobre a resistência cultural nesses rincões perdidos, mediante a ótica do oprimido, sem jamais se permitir concessões ao vitimismo. Ulises é digno até a raiz do cabelo descolorido, mesmo quando reconhece a derrota e se submete. Um herói, portanto.
O diretor Alan Yang reconta a história do sonho americano à luz das aspirações de um jovem imigrante taiwanês procurando melhorar de vida na tão falada América. Para isso, ele deixa seu país, visando a ascender na fábrica em que trabalha e se casar com a filha do chefe, e se muda para a Nova York da década de 1970. Transcorrido meio século, tudo o que esse rapaz ambicioso e destemido consegue, porém, é um casamento desfeito, muitas amarguras ao longo da jornada no Ocidente e uma relação espinhosa com a filha.
Em seu primeiro longa, a diretora japonesa Hikari, de curtas como o incensado “Tsuyako” (2011), comprova sua delicadeza para lidar com temas como família, liberdade, sexo e inclusão social na vida de deficientes físicos. “37 Segundos”, além de singelo (sem prescindir do vigor), prima por uma condução narrativa em que há predomínio das imagens, aqui muito mais eloquentes que qualquer texto. Ainda que a personagem central, cadeirante, se expresse do jeito mais adequado para cada momento, importa mais como se movimenta em cena, sequências que têm o poder de alçar o filme numa obra-prima do gênero.
Contando três histórias sem concluir nenhuma, “Adú” traz propostas de reflexão. O filme é político ao expor problemas cotidianos da vida de um menino que tenta deixar a África com a irmã em busca de uma vida melhor, mas também filosófico e emotivo, quando aborda os dramas particulares de Sandra e o pai Gonzalo, e ainda discorre a respeito da truculência da polícia ao querer dar um pouco de sentido a tamanha desordem. Filme cabeça, filme de autor, filme inteligente, como preferirem, mas filme bom e comovente.
“A Sun” começa de maneira brusca e, assim, o espectador já fica esperto quanto ao que pode esperar do drama taiwanês do diretor Chung Mong-hong. Mas que ninguém se desestimule: o enredo é todo permeado por respiros cômicos — e eles são mesmo necessários. A pobreza, ainda que num país rico, é implacável, e ai daquele que pense que pode subverter o estabelecido. Contudo, seria tolo afirmar que o risco social é o responsável por fomentar a criminalidade; o fato é que a alma de todo homem tem sua face sombria — e cada um deve mantê-la sob controle. E controle — e, por extensão, autocontrole —, é uma ideia cara aos orientais. Um pai de família honrado não se prestaria a aturar os deslizes de caráter por parte de um filho, muito menos seus delitos. Ao tomar conhecimento da prisão de A-Ho, A-Wen exige que o caçula seja sentenciado com uma pena severa, o que revolta sua mulher, Qin, mãe do rapaz. A partir daí, o que se segue é a total desintegração do que até tão pouco tempo era um lar (e uma família). Ainda que haja uma ou outra tentativa pontual de contornar a questão, o casal, juntamente com o filho mais velho, pressentem que nada vai voltar ao ponto anterior à ruptura. A vergonha que todos sentem pelo destino de A-Ho, tornado ainda mais significativo numa sociedade que valoriza sobremaneira a austeridade da conduta social, o constrangimento, o remorso, tudo converge para que não consigam se encontrar outra vez. O sol pode até ser o que há de mais justo no mundo, mas só pode iluminar e emprestar seu calor a ambientes que se abram para ele. Do contrário, fica eternamente preso em meio à nuvem de ignomínia e pequenez que flutua sobre a natureza do homem desde sempre.
A sutil diferença entre terror e horror que se estabelece no cinema é flagrante no trabalho de estreia do diretor Anthony Mandler, responsável pelo registro de clipes de estrelas pop como Rihanna, Beyoncé, Taylor Swift e Shakira. Em “Monstro”, o título leva o espectador mais apressado a crer que o enredo se refira a uma narrativa fantasiosa repleta das criaturas bizarras que todos conhecemos. Bem, há seres monstruosos aqui, mas são todos de carne e osso — e podemos cruzar com eles a qualquer momento. No roteiro, adaptado da biografia homônima de Walter Dean Myers, o protagonista chama-se Steve Harmon, um garoto negro de 17 anos que mora no Harlem, subúrbio barra-pesada de Nova Iorque. Steve não tem nada a ver com os demais rapazes da vizinhança: é um estudante aplicado de um colégio de elite em outro bairro, tem a carreira de cineasta como seu objetivo maior e vive no seio de uma família unida que o ama. Ao fazer um favor para a mãe e ir até a mercearia perto de casa, acaba sendo implicado num roubo violento, que resulta na morte do dono da loja. Steve é preso em flagrante e imediatamente encaminhado a uma penitenciária de segurança máxima, onde permanece aguardando julgamento. Sua vida, como não poderia deixar de ser, é tomada por uma espécie de torvelinho em que quanto mais tenta se desvencilhar de todas as frágeis acusações a que é confrontado, mais é retido para o centro do caos de que sua vida parece que não vai sair. Relato o seu tanto furioso — mas também pontilhado de argumentos burilados ao estado da arte – contra uma justiça completamente viciada, que se deixaria levar pela voz rouca das ruas ao julgar alguém com base em indícios que não resistem a uma análise fria das circunstâncias e, por óbvio, racista, “Monstro” centra fogo na atuação da escrupulosa advogada do personagem principal, que desde o início acredita na versão de seu cliente e, dessa forma, se esmera em defendê-lo, convicta de que, ao cabo de toda aquela tortura, Steve há de receber um veredicto de fato justo, muito mais convicta do que o próprio Steve, aliás. Uma direção que opta por um tom propositalmente confessional, aliada a atuações formidáveis e aspectos de natureza técnica que se revelam essenciais — como o pop-up da câmera nos diversos personagens enquanto o julgamento do protagonista avança —, fazem de “Monstro” um filme de autor, um filme de formação, um filme indispensável. A divulgação massiva de produções como essa nunca resta debalde: são necessários menos de cem minutos para se ter uma visão renovada acerca da vida.
Filmes de mães que abandonam o lar e relegam os filhos à própria sorte nunca são levados às telas impunemente. Depois de um distanciamento de mais de 30 anos, Anabel volta a ficar de frente com Chiara, a filha que abandonou. Chiara teria todos os motivos do mundo para não querer mais encontrar a mãe; no entanto, por sentir que a relação ainda pode ser reparada, sai à sua procura. Sua ânsia por fazer o tempo voltar, como num estalar de dedos, e ter pela mãe o afeto que a própria Anabel dispensara é tanto que lhe faz uma proposta inusitada: quer que viajem juntas e passem dez dias num lugarejo perdido entre a Espanha e a França. Este é um drama sobre dores, mágoas, murmúrios, emoções. A leviandade de Anabel, sua ausência na vida de Chiara, a solidão que a filha fora obrigada a vivenciar desde tenra idade por sua culpa, todas essas parecem questões menores se tomadas à luz do sentimento que se apossa das duas. A fotografia é um achado em meio a um filme o seu tanto longo em demasia, com silêncios profundos (e imprescindíveis) que se sucedem à medida que os diálogos, estudadamente pausados, vem à tona, desferindo golpe acima de golpe sobre o espectador, mas com doçura. A Chiara de Bárbara Lennie é mais um dos bons predicados dessa história, que se não termina bem, termina boa. Às vezes, nem as mães são felizes.
Numa engenhosa crítica à indústria de alimentos — e, por extensão, ao próprio capitalismo —, Bong Joon-ho apresenta ao público a história de Okja, uma espécie de simbiose de hipopótamo com porco que resultou num animal estranhíssimo, mas dócil e muito lucrativo. A criatura faz parte de um lote de 26 espécimes, que irão para diversas partes do mundo. Okja, uma fêmea, é destinada para a Coreia do Sul. Ao fim de algum tempo, os animais serão novamente reunidos num concurso, a fim de se saber quem dispensou o melhor tratamento ao bicho que lhe coube, eleito vencedor da competição. No entanto, vencido esse prazo, Mikha, tutora de Okja, se apegou muito a ela e não cogita interromper essa relação. “Okja” encampa um atilado libelo contra o consumismo, a degradação do meio ambiente e a ética relapsa no que concerne ao tratamento dos animais empregados como alimento, e, claro, as consequências de tamanho descaso e ganância na saúde das pessoas. O filme faz pensar sobre até que ponto é válido se permitir capturar pelas armadilhas do consumo cada vez fácil usando para tanto a figura de uma garota e seu mascote, aparentemente repulsivo, mas que só desperta compaixão e ternura.
Inspirado pela vida de seus pais, o ilustrador Raymond Briggs escreveu a graphic novel “Ethel e Ernest”, lançada em 1998. O diretor e roteirista Roger Mainwood achou o enredo — que fala de amor em tempos de ódio — tão bom que transpôs a história dos quadrinhos para a telona. O filme acompanha a trajetória dos pais de Briggs desde quando eles se conheceram, em 1928, até o ano em que morreram, em 1971. Ao passo que conta a história do casal, o filme dá ao público uma noção de como a sociedade britânica foi se transformando ao atravessar eventos decisivos como a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial e presenciar momentos marcantes da cultura, da política e da ciência, como a chegada da televisão, a ascensão do Partido Trabalhista ao poder e a conquista da lua.