O homem, infeliz, sempre perdido em meio a um turbilhão de questionamentos que não pode dirimir e confuso por causa dos tantos desejos que não consegue saciar, tem uma necessidade até patológica de ser aceito, precisa que lhe digam como é, como deveria ser e, mais importante, o que lhe cabe fazer para mudar a natureza que lhe consideram nefasta — e essa é uma das tragédias incontornáveis do ser gente. O gênero humano principiou sua jornada no mundo da forma mais desaconselhável que poderia, traindo a confiança que lhe depositara seu próprio Criador, segundo o cristianismo, ou subjugando espécies mais fracas e menos desenvolvidas e, em sendo contrariado, se devotando ao confronto físico com outros indivíduos de sua mesma espécie, num e noutro caso para se manter vivo — ainda assim um cenário nada virtuoso. Irremediavelmente condenada, a humanidade teria alguma possibilidade de se salvar se cada um de nós se apropriasse de seus erros, os assumisse e os reparasse, o que, é uma grande tristeza, jamais irá ocorrer. As transformações de maior vulto pelas quais já passaram as sociedades ao longo do tempo nunca vieram sem o sacrifício de pessoas, ordinárias ou célebres; isto é, o processo evolutivo do homem, que, por óbvio, nunca resta acabado, começa a partir da decisão pessoal de um indivíduo, o que converge para o pensamento do sociólogo germânico Max Weber (1864-1920): uma suposta redenção da humanidade só se daria caso os mais de oito bilhões de habitantes do globo concluíssem, a um só tempo, que alguma coisa em sua vida está fora da ordem, hipótese absurdamente utópica — até porque muita gente passa a vida tentando descobrir qual o seu problema, muitas vezes ululante, e não consegue — quiçá a maioria. A incerteza sobre tudo, a dúvida, a falta de fé pululam na cabeça de todo indivíduo sobre a face da Terra em maior ou menor proporção, e cabe a cada um de nós, seres capazes de absorver do pensamento a reflexão e agir de modo a viver, e não apenas existir. Os dez filmes que recomendamos, todos na Netflix e produzidos entre 2019 e 2013, em alguma medida tratam de escolhas, renúncias, desejo, glória, desonra, pontos sobre os quais se debruça a condição humana no intuito de encontrar o epílogo de seus infinitos dilemas, como o do garoto de “Me Chame pelo Seu Nome” (2017), do italiano Luca Guadagnino, que se descobre apaixonado por um rapaz mais velho e é correspondido, embora sofra por saber que o romance tem data certa para acabar; ou o do velho mafioso de “O Irlandês”(2019), dirigido por Martin Scorsese, que ao se retratar depois de décadas no crime, parece menos infeliz e mais tranquilo para encontrar a morte, a única amiga que lhe sobrara. “O Irlandês”, “Me Chame pelo Seu Nome” e os outros oito títulos da nossa lista figuram entre os melhores da última década, os dez compilados na Netflix, justamente por trazer a lume as histórias que, não só merecem ser contadas, como eternizadas pelo lirismo do cinema.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

Tirada do livro “I Heard You Paint Houses” (2003), de Charles Brandt, investigador profissional que se debruçou sobre o crime organizado nos Estados Unidos, a história de “O Irlandês” desvenda o envolvimento de Frank Sheeran, um dos maiores mafiosos americanos entre os anos 1960 e 1970, no sumiço do líder sindical Jimmy Hoffa. O filme esmiúça a vida de crimes de Sheeran desde o começo, quando ele conhece Russel Bufalino, um dos gângsteres mais poderosos da Pensilvânia à época e se torna um pintor de casas, alusão ao sangue das pessoas que extermina ao respingar nas paredes, expressão que Brandt tomou por base ao batizar o livro. Conforme a trama se desenrola, o espectador acompanha a escalada do irlandês junto à quadrilha, sempre fiel a Bufalino, seu padrinho na vasta carreira de delinquências. Foi honrando a confiança que o chefão depositara nele que Sheeran pôde chegar tão longe, e em nome desse código de honra muito particular, comete as maiores baixezas, como matar Hoffa, outro homem-forte do submundo que também o tomara por protegido. Sheeran não resiste a uma ofensiva mais severa do FBI e cai, levando os peixes grandes todos consigo. Amarga alguns anos de cadeia e termina num asilo, onde o filme principia e acaba, recurso muito bem usado por Martin Scorsese, um mestre também em se valer da estratégia de comprimir e alongar o tempo a seu gosto, a fim de imprimir mais realismo aos enredos que defende. “O Irlandês” talvez seja a obra-máxima de Scorsese — até que venha a próxima.

A história de um policial negro que se passa por um homem branco a fim de investigar como funciona a Klu Klux Klan, um grupo que se notabilizou por difundir ódio racial é tão absurda que só poderia mesmo ter acontecido de fato. “Infiltrado na Klan”, filme com o qual Spike Lee ganhou o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado, conta a história de Ron Stallworth, até então o único policial negro de sua cidade, Colorado Springs. Ao se deparar com um anúncio da KKK publicado sem nenhuma cerimônia num jornal, ele liga para o número informado ali. A primeira aproximação é convincente e Stallworth estabelece um vínculo com um dos líderes locais da agremiação segregacionista. Por mais destemido que seja, ele não vai poder levar sua missão a cabo sozinho, por razões óbvias. E é aí que entra Flip Zimmerman, branco e judeu, seu parceiro na polícia. Zimmerman assume a identidade de Stallworth e se mistura ao bando, ainda que provoque a desconfiança de um dos fanáticos, que não lhe dá refresco.

Certamente a atriz Nicole e seu marido Charlie, diretor de teatro, pensavam que casamento era mesmo um conto de fadas e, imaturos demais para lidar com os tantos problemas que uma relação a dois implica, acabam se separando. No começo, tudo corre da forma mais civilizada possível, e os dois preferem seguir com os trâmites sem a interferência de advogados, mas aconselhada por uma amiga, Nicole procura orientação profissional e entra em cena Nora Fanshaw, especialista em divórcios, cuja obstinação em deixar a outra parte na rua da amargura é alvo de inveja no mundo jurídico e de temor de quem ousa se levantar contra ela numa causa (e Laura Dern, sua intérprete, parece ter se contagiado com a gana de vencer de Nora, visto o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante; de fato, um trabalho magistral). As muitas desventuras do processo incomodam sobretudo Charlie, mas à medida em que os ataques entre os advogados se sucedem e são expostas as intimidades de uma e outro, Nicole se convence de que tomara a pior decisão que poderia. No meio do fogo cruzado, Henry, o filho dos dois, entende perfeitamente o que está acontecendo, mas ainda muito indefeso diante da leviandade dos adultos, assiste à baixaria toda sem deixar claro ao espectador o que pensa.

Passadas três décadas e meia, vem à luz a continuação da história sobre um policial que caçava androides em Los Angeles. O original, lançado em 1982, passava-se em 2019. O futuro já é passado, mas a saga resistiu. Dessa vez, a trama se desenrola em 2049 e a tarefa coube a K, um novo blade runner, que não caça androides, apenas os “aposenta”. Num amanhã ainda menos promissor, os replicantes se tornaram mais saidinhos e inspiram o medo na população e a fúria das autoridades. O trabalho de K fica um tanto mais difícil devido à descoberta de uma caixa na qual está o mote do novo “Blade Runner”. Uma androide gera uma filha, cujo pai é um humano. Um milagre, portanto. O diretor Denis Villeneuve aceitou o desafio de dar sequência à história, que decerto não para por aí, por temer que outra pessoa não desse ao filme o tratamento que ele merecia. Foi o homem certo para o projeto certo: “Blade Runner 2049” é fiel à ideia que lhe deu azo, sem, no entanto, ter ficado com cara de um simples pastiche do original. Em “Blade Runner 2049”, Villeneuve conseguiu, a partir de um filme-conceito amplamente conhecido e cultuado, imprimir sua assinatura e sua visão de mundo. Clássico com uma genealogia à altura.

Com “Dunkirk”, Christopher Nolan conseguiu duas verdadeiras proezas. A primeira foi entregar um filme absolutamente distinto do que vinha apresentando em trabalhos a exemplo de “Batman: O Cavaleiro das Trevas” (2008) e “Interestelar” (2014). Por aí, já se vê que Nolan é um diretor plural e ambicioso, mas a cereja do bolo está mesmo aqui. Sua segunda façanha foi ter imprimido tamanho realismo e dramaticidade numa história carregada de significado. O filme conta, com o rigor intelectual necessário, como se deu o resgate de mais de 300 mil soldados britânicos na costa francesa, completamente sitiados pelas tropas de Hitler. Só o número de figurantes necessários para se emprestar credibilidade às sequências já é uma epopeia à parte, mas a força do talento de Nolan dá conta do recado direitinho. Sem nenhum exagero, “Dunkirk” comprova que Christopher Nolan se superou frente a todos os seus excelentes trabalhos anteriores e produziu a obra definitiva sobre operações militares arriscadas no decorrer de uma guerra. Os cinéfilos esperamos que ele seja vencido.

A Itália no verão se traduziria no lugar perfeito para as descobertas de um garoto rico em férias, e descobertas nunca se dão sem boa dose de conflito. Em “Me Chame Pelo seu Nome”, o professor universitário Perlman, especialista em cultura greco-romana, recebe a visita de Oliver, estudante que se dispõe a ajudá-lo numa pesquisa. Oliver, bonito, sensível e noivo de uma moça, logo desperta o interesse de Elio, filho do professor Perlman, instantânea e assustadoramente magnetizado pela figura apolínea do discípulo do pai. À medida que se aproxima de Oliver, Elio esquece de si mesmo e vive o amor — que, para ele, se manifesta de forma repentina e inusitada —, mesmo tendo de responder, ainda muito imaturo, às tantas questões que o afligem.

Extraterrestres descem a diversos pontos da Terra sem dizer exatamente o que pretendem, mas com propósitos nada altruístas. É aí que entra a linguista Louise Banks (Amy Adams), desafiada a decifrar as mensagens muito sutis — e, se verá depois, ameaçadoras — dos alienígenas. Em “A Chegada”, um suspense psicológico não muito distante da ficção científica que o consagrou, o franco-canadense Denis Villeneuve imprime sua marca com uma produção muito bem cuidada, elogiada pela crítica, mas preterida pelo público por ser um belo enredo, mas cabeça demais. Se você não tiver medo de filmes que apresentam temas a princípio recorrentes, mas com uma abordagem inteiramente sofisticada e original, não deixe de assistir a essa joia rara do bom sci-fi.

A intenção de se voltar à trilogia “Mad Max” já vinha desde o fim das filmagens da história original, nos anos 1980. O diretor George Miller e o astro Mel Gibson já acertavam os ponteiros quanto à produção da quarta parte da sequência, mas dificuldades de ordem burocrática atrasaram o projeto e Gibson foi cuidar da vida. Tom Hardy assumiu o papel do protagonista, a despeito de toda a desconfiança — e da torcida contra — e o resto é história: o desempenho memorável de Mel Gibson chegou a se constituir numa sombra sobre o novo líder do elenco, mas o novato se saiu melhor que a encomenda. O público aprovou e “Mad Max: Estrada da Fúria” é considerado um dos melhores da franquia. Aqui, Max, capturado, vira uma espécie de hospedeiro, fornecendo sangue para soldados batidos na guerra. Immortan Joe, chefe da comunidade local, subjuga a população por reservar em seu poder a maior parte da água de que dispõem. Max acaba servindo de bucha de canhão na sanha de Immortan Joe por manter seu domínio de escravos com mãos de ferro. Furiosa, uma das cativas que servia de ama-de-leite aos filhos da revolução, escapa e é aí que a história pega fogo. De uma fragilidade apenas aparente, Furiosa dá um colorido todo especial à trama ao se aliar a Max — e a química entre Charlize Theron e Tom Hardy é, decerto, uma das grandes responsáveis pela grandeza do filme, que, embora tenha levado 30 anos para sair do papel, veio à luz no momento preciso, pelas mãos do homem exato. George Miller parece ter guardado toda a sua verve para “Mad Max: Estrada da Fúria”, uma prova de que um filme, para ser bom, muitas vezes só precisa de um diretor talentoso. E talento George Miller tem de sobra.

Amy Dunne simplesmente some no dia do seu quinto aniversário de casamento, deixando o marido Nick em desespero. Ele vai se descontrolando cada vez mais, abusa das mentiras que conta para a polícia a respeito da vida com a cônjuge e acaba se tornando o principal suspeito pelo desaparecimento. Sua irmã gêmea, Margo, se compadece dele e o ajuda. Enquanto tenta provar a sua inocência, Nick procura descobrir o que de fato aconteceu com Amy. “Garota Exemplar” corresponde às expectativas de um grande trabalho de David Fincher e, de lambuja, ainda fomenta uma discussão interessante sobre a vida a dois ao apresentar ao público um homem e uma mulher que já se amaram algum dia, mas se transformaram nas pessoas que outrora criticavam: o marido frio e a mulher neurótica.

O orçamento estratosférico de “Gravidade” não deslumbrou Alfonso Cuarón, que perseguiu obstinadamente a perfeição nesse trabalho e por pouco, muito pouco mesmo, não chegou lá. A premissa de astronautas que acabam tendo de encarar perrengues no plano intergaláctico não é exatamente nova — Stanley Kubrick já a havia explorado com largas doses de genialidade em “2001: Uma Odisseia no Espaço” (1968). O pulo do gato aqui é, além do inegável carisma da dupla de protagonistas, um componente mais do que elementar em tempos de viagens espaciais que acontecem com regularidade cada vez maior: a tecnologia. A missão comandada por Matt Kowalsky precisa ser abortada depois de uma falha no procedimento que controla a órbita da espaçonave que divide com a doutora Ryan; numa desesperança crescente, sob risco de vida, o que resta aos dois é estudar novos cenários, a fim de garantir alguma chance, primeiro de sobreviver e, se possível, voltar para casa. Nesta ou noutras dimensões, talvez o destino do homem seja mesmo peregrinar em busca de alguma razão para continuar existindo, sem nenhuma garantia de que vá encontrá-la, tamanha a sua irrelevância frente ao seu próprio mundo, frente aos mundos que passa a soberbamente querer dominar, frente à própria vida, cujos mistérios nunca lhe é dado conhecer.