Qualquer um que tenha passado por uma experiência traumática já depois de adulto sabe muito bem que a vida não faz o menor sentido. Se poderia acrescer, a título de consolo, que a vida não faz sentido e que o sentido da vida somos nós mesmos quem o damos, mas, ainda assim, a afirmação soaria apenas como uma peça de marketing, uma vez que se leva muito tempo, talvez o tempo de toda uma vida, para se saber o que ela quer de nós, além de coragem, como disse Guimarães Rosa (1908-1967), muita coragem. A existência do homem sobre um globo de constituição majoritariamente aquosa que gira livre num universo de uma centena de bilhões de outros planetas, todos em constante mutação, toca as raias da loucura. A única grande questão verdadeiramente significativa para o homem é por que, em meio ao caos de eventos desordenados que se sucedem ad aeternum, prefere continuar vivo, conforme (se) pergunta o filósofo francês Émile Durkheim (1858-1917) em “O Suicídio”, publicado em 1897. Ao se submeter ao exame mais íntimo a que um indivíduo pode se forçar — e que em algum momento da vida reverbera no mais fundo da alma de todos nós —, toda a metafísica do mundo perde a razão de ser. Saber se devemos ou não dar cabo da nossa jornada na Terra, uma vez que a vida não faz sentido, é algo que ninguém pode fazer por nós, apesar de toda indagação, por mais delicada e complexa que seja, ter uma resposta, nem sempre fácil de se encontrar e que quase nunca se apresenta sem que outras dúvidas lhe sobrevenham. Partindo do holandês Baruch Spinoza (1632-1677), o escritor Albert Camus (1913-1960) e o filósofo Gilles Deleuze (1925-1995), ambos franceses, deságuam em conclusões o seu tanto particulares, e controversas entre si. Para Camus, mesmo em sendo Deus imanente a tudo quanto existe, é impossível conhecer o propósito por trás de todas as coisas, exatamente por Deus estar nelas e, destarte, ser Ele o único capaz de conferir à vida do homem alguma significação menos ordinária, o que deixa ao gênero humano a alternativa exclusiva de aceitar a vida como o triunfo do absurdo, a vitória do nada. Deleuze, por sua vez, só acredita na vida como fonte de conhecimento, isto é, enquanto não produzimos novas ideias, ao passo que não criamos conceitos originais, em resumo, durante todo o tempo em que não pensamos, estamos mortos, o que remete a outro pensador, o alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), que fomentou o conceito do Deus lúdico e cruel, que estimula o homem com seus jogos e, ao mesmo se ri dele, porque o sabe inferior e incapaz de vencê-Lo. A cada um compete saber que podemos tudo, mas conforme pregava Paulo de Tarso (5-67), devemos escolher só o que nos é conveniente. Não é fácil; talvez começando por nos livrarmos de um passado que poderia nos condenar o processo se desdobre de um jeito mais simples, ou menos doloroso. Mesmo assim, pode nos colher o acaso e, com ele, vir junto a desdita, caso de um italiano comum, cuja história o diretor Alessio Cremonini reproduz com toda a fidelidade possível em “Na Própria Pele — O Caso Stefano Cucchi” (2018). O inesperado também perpassou a vida do comandante de um navio cargueiro americano, e felizmente, depois de muitas, muitas reviravoltas, o final de “Capitão Phillips” (2013), do britânico Paul Greengrass, é feliz. As histórias de Stefano Cucchi, Richard Phillips e outros três enredos — lançados entre 2018 e 2012, os cinco na Netflix —, nos fazem inquirir a vida, maldizê-la, despejar-lhe pragas, mas igualmente nos deixam maravilhados com todos os seus ardis, em cuja essência há um mundo de aprendizados. A vida de todos nós dá um filme.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

A história de um policial negro que se passa por um homem branco a fim de investigar como funciona a Klu Klux Klan, um grupo que se notabilizou por difundir ódio racial é tão absurda que só poderia mesmo ter acontecido de fato. “Infiltrado na Klan”, filme com o qual Spike Lee ganhou o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado, conta a história de Ron Stallworth, até então o único policial negro de sua cidade, Colorado Springs. Ao se deparar com um anúncio da KKK publicado sem nenhuma cerimônia num jornal, ele liga para o número informado ali. A primeira aproximação é convincente e Stallworth estabelece um vínculo com um dos líderes locais da agremiação segregacionista. Por mais destemido que seja, ele não vai poder levar sua missão a cabo sozinho, por razões óbvias. E é aí que entra Flip Zimmerman, branco e judeu, seu parceiro na polícia. Zimmerman assume a identidade de Stallworth e se mistura ao bando, ainda que provoque a desconfiança de um dos fanáticos, que não lhe dá refresco.

Stefano Cucchi, um italiano de 31 anos, é detido depois de uma blitz da polícia. Os policiais encontram com Cucchi uma pequena porção de drogas, cerca de 20g de maconha e 2g de cocaína. Ele é encaminhado à delegacia sob a acusação de posse de entorpecentes. Cucchi é barbaramente surrado pelos policiais que o prenderam e permanece aguardando o julgamento na cadeia. Ele acaba condenado e, depois de algum tempo, passa a sentir fortes dores, decorrentes da violência que sofrera. Mesmo assim, Cucchi resolve não denunciar os policiais, temendo possíveis represálias. O espectador acompanha a agonia do protagonista padecendo de todo esse tormento junto com ele, ao seu lado, ansiando que sua sorte milagrosamente vire em um momento qualquer da trama, o que não se dá: um dia, Stefano Cucchi aparece morto em sua cela, sem que ninguém saiba explicar o que terá acontecido com ele. “Na Própria Pele” é uma crônica do despreparo da polícia, seja na Europa, seja no Brasil — ainda que aqui haja nuanças muito nossas no que concerne ao tema —, com o mérito de ainda abrir a discussão em torno dos assuntos de sempre, que continuam inexplicavelmente sendo varridos para debaixo de um vasto tapete. Em pleno século 21.

“22 de Julho” é um filme nada afeito a sutilezas. E isso é um trunfo do diretor Paul Greengrass ao reportar o mais sangrento ataque terrorista já experimentado pela Noruega. Em 2011, Anders Breivik assassinou covardemente 77 pessoas, crianças e jovens na maior parte. O fato de Greengrass entrar de sola no objeto de seu trabalho, o terrorismo — e, sobretudo, o terrorismo de brancos contra não-brancos num país reverenciado pela natureza civilizada e tolerante de seu povo —, é uma lufada de ar fresco no embolorado tema da violência étnica na Europa, ainda que, em sua loucura homicida, Breivik bradasse que executava aquelas pessoas por serem marxistas, filhas da elite ou sabe Deus que outro impropério, e o que, afinal, estaria querendo dizer com aquele horripilante teatro do absurdo. Greengrass acerta, sim, ao cutucar essa ferida com mão pesada, como ao filmar a chegada de Breivik à ilhota onde acampavam suas vítimas, reunidas para um congresso. A história é levada num ritmo cortante de tamanho realismo, sem se deixar enredar pela facilidade da narrativa sensacionalista. O ataque do lunático é composto de cenas que se atiram na tela como um gancho de direita na cara do público, quando poderiam ser apenas uma bofetada. É essa honestidade que faz de alguém um artista invulgar e, de quebra, um humanista incorrigível.

O diretor Paul Greengrass talvez seja o maior contador de causos do cinema envolvendo ou grandes tragédias ou o que poderiam ter sido isso. No caso de “Capitão Phillips”, que de tão fantasioso só poderia ter se baseado na própria vida —, ele ratifica a tendência, já comprovada em “Voo United 93” (2006) ao narrar a desventura do comandante do cargueiro americano MV Maersk Alabama, que transporta um lote de comida para doação. Ao perceber que a embarcação corre o risco de um assalto iminente por piratas somális, consegue tomar pé da situação a tempo de despistá-los. O que ele não sabia é que os ladrões não haviam desistido; numa segunda tentativa, a despeito de todos os esforços de que Richard Phillips lança mão, eles invadem o navio e o que se vê a partir daí é uma das maiores sucessões de plots twist do cinema, todos muito bem conduzidos por Greengrass. Os criminosos rendem a tripulação e começa um jogo de gato e rato entre Phillips e Muse, o líder da gangue. Ainda que subjugado, o capitão não se entrega: sempre elabora algum plano a fim de minar a resistência dos somális, que aos poucos vão perdendo a hegemonia sobre os marinheiros. Enquanto ainda se sentem inatingíveis, todavia, os delinquentes deitam e rolam, e por meio da sutileza com que esse núcleo é trabalhado por Greengrass, se percebe a tristeza por trás de sua história. Ainda que “Capitão Phillips” não se proponha a isso, o diretor compõe um painel sociológico interessante ao explorar o perfil dos assaltantes. Não são inocentes, por óbvio, mas vivem num país paupérrimo, entregue à ignorância de líderes religiosos e numa guerra fratricida há trinta anos — e o público se flagra com uma ponta de dó daqueles pobres-diabos. Ao saber acerca do conteúdo que o MV Maersk Alabama está levando e que o cofre do transatlântico tem apenas 30 mil dólares, é pungente a reação de Muse, que parece se conformar em surrupiar a quantia, muito dinheiro para ele, mas instado por Najee, não esmorece. A equipe de Phillips é liberada pelos somális, mas o comandante fica em poder dos bandidos, seguidos por uma legião de militares e policiais. Phillips mantém o sangue frio até o desfecho, quando, enfim, “desaponta” o espectador. Primeiro ao constatar que a situação poderia descambar para o irremediável e se lançar em mar aberto na tentativa de fugir, o que enfurece ainda mais a quadrilha, já tomada pelo desatino; depois, quando Muse, o único ladrão que resta vivo, é finalmente detido, e ele desaba. Ao contrário da parábola bíblica do conflito entre Davi e Golias, em “Capitão Phillips” a única vitória de Muse foi conseguir se livrar da miséria da Somália e, afinal, ter sido encaminhado a uma penitenciária de segurança máxima nos Estados Unidos. Richard Phillips saiu de licença médica e retornou ao trabalho catorze meses depois.

Vinte e seis de dezembro de 2004. Maria e Henry aproveitam as férias na Tailândia com os filhos pequenos depois de uma noite de Natal memorável, até que o tsunami que devastou toda a Ásia também os colhe. A mãe e o filho mais velho, tidos como desaparecidos, têm de encarar seus medos a fim de continuarem vivos; Henry e as duas crianças menores, por outro lado, também se desesperam ao imaginar o que pode ter acontecido a Maria e o primogênito. A possibilidade de um reencontro em breve, ainda que remota, é o que os sustenta, enquanto eles têm de aprender a administrar a pletora de sentimentos os mais controversos e suportar a angústia da separação forçada.