Tarkovski, o gênio que congelou o tempo

Tarkovski, o gênio que congelou o tempo

O cineasta russo Andrei Tarkovski foi um gênio. Fato. Tarkovski é um dos dez maiores cineastas de todos os tempos. Fato. Tarkovski criou um estilo artístico único e inimitável. Fato. Tarkovski é um dos artistas mais imitados do mundo. Fato. A maior parte de seus imitadores são artistas amadores ou em começo de carreira que pensam que são gênios. Fato. Outro tanto de seus imitadores são diretores talentosos e bem-sucedidos que, já tendo alcançado o reconhecimento profissional, decidem que querem ser gênios. Infelizmente, fato. Neste rol entram nomes tão díspares quanto Terrence Malick, Alejandro González Iñarritu e até mesmo Zack Snyder. Mas o que torna Andrei Tarkovski tão influente, embora não seja exatamente popular?

A vida, a obra e as fotos de Tarkovski parecem feitas sob medida para entrar na história. Poucos artistas são tão fotogénicos como ele. Apenas ícones das poses intelectuais como Jorge Luis Borges e Tolstói parecem tão complexos, profundos e comprometidos com as artes. Principalmente se tiverem sido fotografados em preto e branco.

Tarkovski nasceu em 1932, de uma família com origens aristocráticas. Seu pai era poeta e sua mãe era atriz. A infância foi tumultuada, principalmente por conta de inúmeras idas, vindas e evacuações geradas pela Segunda Guerra Mundial, conflito onde seu pai perdeu uma perna.

Na adolescência, Tarkovski estudou piano, artes plásticas e a língua árabe. Como se fosse um aceno biográfico romântico, ficou internado com tuberculose entre 1947 e 1948. Após a formatura do ensino médio, abdicou da velha tradição russa de trabalhar nos labirintos da burocracia, recusando uma colocação no Instituto de Metais não Ferrosos e Ouro. Decidiu estudar cinema no Instituto Estadual de Cinematografia, o célebre VGIK. Conheceu a futura esposa, Irma Raush, em sala de aula. Um clichê de comédia romântica, com sabor agridoce no caso.  

Andrei Tarkovski durante as filmagens de Stalker

No VGIK, Tarkovski comeu a carne e ganhou o pão. Rapidamente tornou-se o aluno queridinho de professores como Mikhail Romm e Grigori Chukhrai, importantes personalidades do cinema soviético. Era o início do governo Khrushchov, quando se abriu uma pequena abertura da Cortina de Ferro para a entrada de produtos culturais estrangeiros. Livros, música e, claro, filmes. Os estudantes de cinema tiveram acesso às obras da Nouvelle Vague francesa, do Neorrealismo italiano, um pouco de Hollywood e filmes de cineastas como Andrzej Wajda, Buñuel, Bergman e Kurosawa. Esse manancial de informação teve muito impacto na formação do jovem Tarkovski, que dirigiu seu primeiro curta-metragem, “Os Assassinos”, fazendo justamente uma adaptação de um conto do individualista macho alfa Ernest Hemingway. Essa pequena ousadia rebelde foi devidamente ignorada, colocada na conta da juventude, sem nenhum risco de ser enviado para Sibéria. Produziu mais um curta, “Hoje não Haverá Saída Livre” (1959), e escreveu um roteiro antes de se formar. Seu trabalho de conclusão de curso foi o pequeno clássico “O Rolo Compressor e o Violinista”, com o qual ganhou o Festival Estudantil de Cinema de Nova York de 1961. Era uma promessa.

Seu primeiro trabalho profissional foi o longa-metragem “A Infância de Ivan”, de 1962, um delicado filme de guerra, contado a partir do ponto de vista de uma criança que ajuda soldados no front. O filme ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza, derrotando mestres como Kubrick, Godard e Pasolini. Foi sua consagração internacional. Tornou-se o menino de ouro do cinema soviético. O sucesso possibilitou a Tarkovski escolher o que quisesse fazer a seguir.

Optou por virar gênio, com o épico “Andrei Rublev”, de 1965, a biografia romanceada de um pintor russo medieval de afrescos, ícones e iluminuras. É seu melhor filme e um dos dez melhores de todos os tempos. O público aplaudiu, mas o registro apologético de uma arte transcendente e sem traços do realismo socialista desagradou autoridades do alto escalão soviético. O filme foi boicotado e censurado. Rapidamente, Tarkovski deixou de ser o menino prodígio do comunismo para ser considerado um perigo ideológico em potencial. Mais uma etapa biográfica cumprida com sucesso: o gênio perseguido por burocratas medíocres.

Seu próximo filme só foi lançado em 1972. A ficção científica “Solaris”, uma paquidérmica adaptação do romance de Stanislaw Lem. Ganhou alguns prêmios no circuito de festivais, mas Tarkovski o considerava, com alguma razão, seu pior trabalho. Tratado por parte da crítica como a “resposta soviética” para “2001 — Uma Odisseia no Espaço”, não era para tanto. Kubrick venceu desta vez.

Escrito enquanto trabalhava em “Andrei Rublev”, seu filme seguinte foi “O Espelho”, lançado em 1974. Com traços autobiográficos, trata-se de uma excepcional reflexão sobre sua turbulenta infância. O filme contém poemas de seu pai, Arseny Tarkovski. O título do filme foi extraído de um deles. Inicialmente, o projeto foi recusado pelo sistema estatal de produção cinematográfica em função de sua estrutura não linear e de difícil compreensão. Por fim a burocracia da URSS classificou “O Espelho” como uma obra de “terceira categoria”, limitando sua exibição a um circuito com poucas salas de cinema e clubes de trabalhadores. Chegou a ser cogitado que Tarkovski pudesse ser processado por desperdício de fundos públicos. Felizmente, a ameaça virou pizza com vodca.   

Após dirigir uma montagem teatral de “Hamlet” em 1976, Tarkovski lançou a sua segunda ficção científica, “Stalker”, superior a “Solaris” em todos os sentidos. Adaptado do romance “Piquenique à Beira da Estrada”, dos irmãos Arkady e Boris Strugatsky, “Stalker” teve uma produção tumultuada. Chegou a ser praticamente refilmado, após problemas técnicos com os primeiros negativos. Valeu a pena, é um de seus melhores trabalhos e venceu o Prêmio do Júri Ecumênico no Festival de Cannes.

Andrei Tarkovski durante as filmagens O Sacrifício

Mas essa vitória não significou para Tarkovski a recuperação de sua imagem diante dos burocratas do Partido Comunista. Tentou fazer um filme ambientado na Rússia do século 18, durante o reinado do czar Pedro, o Grande. Para obter aprovação do projeto, tentou uma manobra ousada. Começou as filmagens usando um roteiro diferente do aprovado pelos censores estatais. O texto secreto, repleto de críticas ao ateísmo oficial soviético, foi descoberto e as filmagens interrompidas. Furioso, Tarkovski destruiu pessoalmente grande parte do material e partiu para um autoexílio na Europa Ocidental. Exílios são sempre bem-vindos em biografias que se prezam.   

Dirigiu uma ópera em Londres e, na Itália, filmou o documentário “Tempo de Viagem” e o longa-metragem “Nostalgia”, ambos de 1983. Novos prêmios e o prestígio internacional renovado.

Em 1985 publicou em alemão um livro de teoria cinematográfica, “Esculpir o Tempo”. Segundo Tarkovski, a principal característica estética do cinema é redefinir nossa percepção do tempo. Um plano longo, sem cortes, reproduz a experiência real do tempo se passando. Da mesma forma, explícita a sensação do tempo se esvaindo, do tempo congelado pela lentidão, a relação entre um momento do tempo e outro. A edição cadenciada de seus filmes representa à práxis dessa teoria.    

No ano seguinte, na Suécia, realizou seu filme testamento, “O Sacrifício”. Trata-se, em suas palavras, de uma obra “impressionista em estrutura”. Pretendeu “construir o quadro num conjunto poético no qual todos os episódios estavam harmoniosamente ligados, assumindo a forma de uma parábola poética”.

Morreu ainda em 1986, com apenas 54 anos. A morte inesperada, interrompendo uma carreira brilhante e promissora, fortaleceu a lenda. Há inclusive elementos místicos e estranhas coincidências. No documentário “Um Dia na Vida de Andrei Arsenevich” foi feito o registro de uma sessão mediúnica na qual Tarkovski teria se comunicado com o falecido Boris Pasternak. O escritor “desencarnado” revela que o cineasta faria apenas sete filmes. Diante da decepção de Tarkovski, o espírito de Pasternak acrescenta compassivo: “mas serão ótimos”. Notícia sobrenatural, ou não, o fato é que estava certa. Foram sete filmes, mas valeram por sete vezes sete.

Vale destacar que a primeira cena de “A Infância de Ivan” e a última de “O Sacrifício” mostra crianças diante de árvores, um dos mais poderosos símbolos da vida. Um círculo parece ter se completado. Dentro desse círculo coube o tempo de uma vida, vida congelada em forma de arte. Arte além do tempo.

Ademir Luiz

É doutor em História e pós-doutor em poéticas visuais.