Um dos maiores defensores da economia de mercado e da livre concorrência, o filósofo e economista escocês Adam Smith (1723-1790), homem dos Setecentos, o feérico Século das Luzes, época de revoluções lapidares nas artes, na ciência e na economia, se provou um visionário, alguém que enxergava o mundo e o compreendia muito além do que seu próprio tempo poderia permitir. A humanidade conheceu logo do que era capaz o gênio de Smith, responsável por elaborar uma das teorias mais completas acerca do liberalismo econômico, doutrina que, por sua vez, serviu de base para a fundamentação do capitalismo moderno. Avesso a maiores interferências do Estado na condução da economia, o liberalismo prega também que os indivíduos — e, por extensão, os consumidores — são livres para escolher que empresas desejam solicitar, e o consumidor opta, evidentemente, por aquelas que lhe proporcionam um produto ou atividade laboral mais bem-acabada, sem comprometer o bolso. Na busca por prestar melhores serviços, as empresas se autorregulam e se aprimoram, uma espécie de darwinismo vertido para o contexto mercantil. A disputa comercial é imprescindível a fim de que se preservem as próprias corporações, tenham a dimensão que tiverem. No caso das grandes — e, em especial, das muito grandes —, a discussão tem a natureza de uma verdadeira guerra de titãs, com cabeças rolando para todos os lados. Com o aprimoramento da ciência e dos mecanismos dos mais diversos setores do conhecimento humano, as empresas de comunicação mais experientes, a exemplo da Rede Globo de Televisão, tiveram de se reinventar. O desinteresse crescente do público por assistir tevê — pelo menos da forma como vinha fazendo nos últimos 50 anos — acendeu a luz amarela. A Globo criou o Globoplay, plataforma de vídeos, filmes e programas da emissora disponíveis em streaming, mas antes dela já havia a Amazon Prime Video e, antes ainda, a Netflix, no ramo do audiovisual há 24 anos. A programação da veterana nesse nicho mais recente da comunicação e do entretenimento tem sido uma referência quanto a apresentar conteúdo plural, de grande importância artística e primando pela qualidade técnica. Há uma década no Brasil e desde 2015 incluindo em seu acervo, além de filmes que definem o cinema, produções feitas sob medida, dirigidas, protagonizadas e distribuídas por seus próprios meios, a Netflix se tornou sinônimo do tal cinema em casa, de que ouvíamos falar em eras vetustas. A Bula já publicou centenas de listas com os melhores títulos do cinema reunidos pela Netflix, mas dessa vez destacamos três de cuja confecção a plataforma se encarregou totalmente: “Pieces of a Woman” (2020), dirigido pelo húngaro Kornél Mundruczó; “O Irlandês” (2019), do ítalo-americano Martin Scorsese; e “Roma” (2018), do mexicano Alfonso Cuarón, que rivalizam entre si quanto à denominação de melhor filme dessa divisão do catálogo. Além de “Pieces of a Woman”, “Roma” e “O Irlandês”, “A Escavação” (2021), do australiano Simon Stone, e “O Tigre Branco” (2021), do iraniano-americano Ramin Bahrani, também são títulos originais da Netflix, e junto com outros cinco, claro, igualmente na coleção, fecham a lista. Como se pode ver, a Netflix veio para ficar, sempre contando com muitas opções para tirá-lo da mesmice. Que venham os próximos 10 anos!
Tirada do livro “I Heard You Paint Houses” (2003), de Charles Brandt, investigador profissional que se debruçou sobre o crime organizado nos Estados Unidos, a história de “O Irlandês” desvenda o envolvimento de Frank Sheeran, um dos maiores mafiosos americanos entre os anos 1960 e 1970, no sumiço do líder sindical Jimmy Hoffa. O filme esmiúça a vida de crimes de Sheeran desde o começo, quando ele conhece Russel Bufalino, um dos gângsteres mais poderosos da Pensilvânia à época e se torna um pintor de casas, alusão ao sangue das pessoas que extermina ao respingar nas paredes, expressão que Brandt tomou por base ao batizar o livro. Conforme a trama se desenrola, o espectador acompanha a escalada do irlandês junto à quadrilha, sempre fiel a Bufalino, seu padrinho na vasta carreira de delinquências. Foi honrando a confiança que o chefão depositara nele que Sheeran pôde chegar tão longe, e em nome desse código de honra muito particular, comete as maiores baixezas, como matar Hoffa, outro homem-forte do submundo que também o tomara por protegido. Sheeran não resiste a uma ofensiva mais severa do FBI e cai, levando os peixes grandes todos consigo. Amarga alguns anos de cadeia e termina num asilo, onde o filme principia e acaba, recurso muito bem usado por Martin Scorsese, um mestre também em se valer da estratégia de comprimir e alongar o tempo a seu gosto, a fim de imprimir mais realismo aos enredos que defende. “O Irlandês” talvez seja a obra-máxima de Scorsese — até que venha a próxima.
Dotada de dimensões quase inestimáveis, a Índia é um país extremamente desigual, em que, não fosse o bastante a pobreza severa que assola a população, a ascensão social é quase impossibilitada graças ao sistema de castas que sempre a regeu. Ainda sem força para fazer frente a circunstâncias tão adversas, e, no entanto, cada vez mais cansado de se submeter a toda espécie de humilhação a fim de não passar fome, Balram, perspicaz e determinado a não morrer como nasceu, sai do interior da Índia e consegue emprego como motorista na casa do milionário Ashok, de quem logo ganha a confiança. Enredado num acordo que o faria se assumir culpado pelo atropelamento e morte de alguém que atravessava a rua — enquanto o patrão dirigia —, Balram é abandonado por Ashok. Era a centelha que estava faltando para Balram dar uma guinada em sua rota e, enfim, ter a vida com que sonha desde sempre.
Certamente a atriz Nicole e seu marido Charlie, diretor de teatro, pensavam que casamento era mesmo um conto de fadas e, imaturos demais para lidar com os tantos problemas que uma relação a dois implica, acabam se separando. No começo, tudo corre da forma mais civilizada possível, e os dois preferem seguir com os trâmites sem a interferência de advogados, mas aconselhada por uma amiga, Nicole procura orientação profissional e entra em cena Nora Fanshaw, especialista em divórcios, cuja obstinação em deixar a outra parte na rua da amargura é alvo de inveja no mundo jurídico e de temor de quem ousa se levantar contra ela numa causa (e Laura Dern, sua intérprete, parece ter se contagiado com a gana de vencer de Nora, visto o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante; de fato, um trabalho magistral). As muitas desventuras do processo incomodam sobretudo Charlie, mas à medida em que os ataques entre os advogados se sucedem e são expostas as intimidades de uma e outro, Nicole se convence de que tomara a pior decisão que poderia. No meio do fogo cruzado, Henry, o filho dos dois, entende perfeitamente o que está acontecendo, mas ainda muito indefeso diante da leviandade dos adultos, assiste à baixaria toda sem deixar claro ao espectador o que pensa.
Não adianta: por mais poderosa que seja a história, em “A Voz Suprema do Blues” o que dá o tom mesmo são as atuações. Marcado pelo infortúnio da morte precoce de Chadwick Boseman (1976-2020), aos 43 anos, vitimado por um câncer colorretal, o filme cresce justamente se analisado à luz do núcleo liderado pelo intérprete de Levee Green, trompetista do conjunto de Gertrude “Ma” Rainey (1886-1939), interpretada por Viola Davis, que grava um disco com a Mãe do Blues num estúdio abafadiço em Chicago. O diretor George C. Wolfe, ganhador de um Tony — o Oscar do teatro americano —, talvez já prevendo o que aconteceria com um de seus protagonistas — ou tendo sido alertado sobre uma possível baixa inesperada e trágica —, resolvera dar a Boseman a chance de sua vida. E o ex-Pantera Negra brilhou. É ele quem conduz as grandes questões discutidas ao longo da pouco mais de hora e meia da trama. Muito pouco tempo para que se tratasse de racismo, machismo, relações pouco éticas no showbizz, política e homofobia, nessa ordem, num enredo que, tomando-se por base o título pomposo, passaria como a cinebiografia definitiva de uma estrela da música americana dos anos 1920. Felizmente, ninguém, nem diretor nem atores foram levados a encará-lo com esse artificialismo, e, assim, a produção, adaptação do texto de August Wilson para a peça de mesmo nome, em menos de seis meses de lançada, já se tornou um cult, em especial entre melômanos e artistas de toda sorte, negros sobretudo. O desempenho soberbo do protagonista na pele do músico obcecado com a carreira garantiu a Boseman um Globo de Ouro (póstumo, é verdade, mas à altura de seu talento, cuja lembrança há de ficar). Mesmo com um desfecho infausto — para ator e seu personagem —, Chadwick Boseman cerrou sua última cortina com toda a classe que a figura aristocrática de Levee Green lhe inspirava.
Poucos filmes conseguem o feito de, ao condensar diversos tipos de linguagem e de manifestações artísticas, criar uma obra absolutamente original — e bela, muito bela. Com “Roma”, Alfonso Cuarón não só chegou lá como tornou-se um dos paradigmas do que se pode chamar de novíssimo cinema. O enredo talvez não tivesse nada de excepcional, mas a forma como Cuarón leva as passagens sobre o dia a dia de uma família abastada num bairro nobre da Cidade do México — a Roma do título — no começo dos anos 1970, tendo sempre por alvo a empregada doméstica da família, é impecável. A história de Cleodegarda, a Cleo, é pungente de tão comum. Conhecemos dezenas de Cleos, sobretudo no Brasil, remanescente de um regime escravocrata abolido nem faz tanto tempo, e paternalista até o fim do mundo. É angustiante a forma como sua vida se esvai. A protagonista não vê nada em seu curto horizonte que não seja se empenhar no serviço doméstico: recolher as fezes de Bojas, o vira-lata da casa, lavar o quintal, arrumar uma casa enorme, cozinhar para seis pessoas, fora os empregados… Aos domingos, arruma tempo para ir ao cinema com um rapaz que conhece por intermédio da colega de ofício que divide as tarefas com ela. Mas nem nisso a vida lhe sorri: ao se descobrir grávida, conta a novidade (que não lhe parece nada boa) ao namorado durante a sessão e é abandonada ali mesmo. A narrativa tem uma ligeira virada nesse ponto, susceptibilidades de Cleo são exploradas mais a fundo e a sensação de incômodo do espectador ao se colocar na pele da criada é insuportável. Não se nota se Cleo gosta da vidinha que leva, se apenas a tolera, se a odeia. A única certeza que se pode ter é que ela é simplesmente empurrada pelo destino. A cena na praia, quando o filme já se encaminha para o desfecho, é de deixar o peito apertado. Impossível não se emocionar — e, igualmente, não se enfurecer — com a ingenuidade de Cleo. Superado o episódio, a vida torna ao leito, o que não é exatamente bom. Preterido no Festival de Cannes 2018 por pinimbas entre os organizadores da premiação e a Netflix, “Roma” teve uma recompensa justa e levou o Oscar de Melhor Fotografia daquele ano. Fellini puro, poesia pura, cuja dramaticidade a linda fotografia em preto-e-branco realça, a grandeza de “Roma” merecia muito mais.
Buster Scruggs, um vaqueiro nada convencional, cruza o Velho Oeste cantando, jogando pôquer e bebendo hectolitros de uísque. Scruggs, o Sabiá de San Sabá, como gosta de ser chamado, destoa completamente dos saloons cheios de homens mal-encarados, bêbados como ele, mas sem o menor pejo de arrotar à mesa, e isso o escandaliza. Esse caubói muito peculiar desliza por entre os trogloditas com a classe que lhe é natural enquanto ouve toda a sorte de pilhérias — até que se cansa e mete uma bala na cara de um engraçadinho. A narrativa se vale dessa reviravolta um tanto insólita a fim de contar uma história farsesca, calcada em paródias muito bem sacadas e recriações dos tipos lendários do cinema americano. Com o humor ácido e tão característico dos irmãos Coen.
Pelos vestígios que alguém deixa, é possível conhecer um pouco de como viveu, o que passou, que postura assumiu nos diferentes momentos de sua trajetória. “A Escavação”, do diretor Simon Stone, vai fundo nesse argumento a fim de contar a história de uma jovem viúva que passa por mais um embate pessoal depois da morte do marido. Em 1939, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, Edith Pretty e o filho Robert continuam levando a vida como podem, apesar das vicissitudes pela perda recente. Pequenos montes de terra na propriedade em que moram, em Suffolk, na Inglaterra, lhe despertam a curiosidade e ela recorre a Basil Brown, arqueólogo amador, a fim de saber o que pode haver ali. Brown de fato descobre algo importante, tanto que a notícia se espalha e até o Museu Britânico demonstra interesse pelo que existe de misterioso no terreno de Edith. Enquanto Brown conduzia as escavações, afloravam também sentimentos, igualmente plenos de relevância. Em meio a tantas reviravoltas, Edith, mãe extremada, retém o quanto pode a devastadora melancolia que a consome devido a uma grave doença, a fim de poupar o filho, mas ao mesmo tempo, teme pelo destino do garoto. A trilha, decerto mais um dos trunfos da produção, acompanha o processo de desgaste emocional a que a viúva se entrega, bem como a ambientação da história, que acertadamente opta por cenas pontuadas pelo cinza dos dias de tempestade e uma condução mais sutil. Se a intenção do filme foi transmitir alguma lição ao espectador, Stone pode se considerar realizado. Em “A Escavação” fica claro que a vida vai muito além da superfície.
Consciência de classe. Consciência política. Consciência humanística. Todas essas noções perpassam o drama de Aaron Sorkin. No longínquo 1968, uma manifestação pacífica contra a Guerra do Vietnã degringolava em pancadaria. A polícia reprime o protesto com violência desproporcional. No ano seguinte, o FBI indicia sete militantes políticos por conspiração. O julgamento leva mais de cinco meses, entre ameaças a testemunhas, ofensas ao juiz e espancamento de réus nas dependências do próprio tribunal. As vidas deles nunca mais retomam o ponto de origem, mas… será que era mesmo boa a vida que eles levavam antes? Deveriam ter voltado atrás em suas posições? Ou todo o caos valeu a pena? Vale a pena ter a vida revirada por causa da tal consciência? Essas são algumas das perguntas que “Os 7 de Chicago” nos suscita, tão sutilmente quanto um martelo nas mãos de um ferreiro.
Numa engenhosa crítica à indústria de alimentos — e, por extensão, ao próprio capitalismo —, Bong Joon-ho apresenta ao público a história de Okja, uma espécie de simbiose de hipopótamo com porco que resultou num animal estranhíssimo, mas dócil e muito lucrativo. A criatura faz parte de um lote de 26 espécimes, que irão para diversas partes do mundo. Okja, uma fêmea, é destinada para a Coreia do Sul. Ao fim de algum tempo, os animais serão novamente reunidos num concurso, a fim de se saber quem dispensou o melhor tratamento ao bicho que lhe coube, eleito vencedor da competição. No entanto, vencido esse prazo, Mikha, tutora de Okja, se apegou muito a ela e não cogita interromper essa relação. “Okja” encampa um atilado libelo contra o consumismo, a degradação do meio ambiente e a ética relapsa no que concerne ao tratamento dos animais empregados como alimento, e, claro, as consequências de tamanho descaso e ganância na saúde das pessoas. O filme faz pensar sobre até que ponto é válido se permitir capturar pelas armadilhas do consumo cada vez fácil usando para tanto a figura de uma garota e seu mascote, aparentemente repulsivo, mas que só desperta compaixão e ternura.
É muito difícil um casamento resistir à perda de um filho — e o casal que consegue tal proeza pode reivindicar essa vitória. Ao se sobrepor à vida, a morte reafirma seu inesgotável poder sobre os homens, por mais escondida que esteja. A frustração, a tristeza, o desespero de ver morrer um filho, a vida tendo desrespeitado seu sentido mais primevo, é o que se absorve da maneira mais brutal em “Pieces of a Woman”. Ao espectador, é concedido o direito de observar de perto — perto demais — o trabalho de parto de Martha Weiss, ao longo de sombrios 25 minutos — e só ao fim dessa agonia o nome do filme surge na tela. Com essa decisão artística, o diretor Kornél Mundruczó quis fazer o público tomar parte no tormento da personagem principal, fazê-lo perceber que havia uma vida se abrindo para o mundo e essa vida, por alguma razão, escapou. Martha é absorta por uma espiral de sentimentos múltiplos: a alegria fugaz de se sentir mãe logo é substituída por um luto que se prolonga na vida da protagonista indefinidamente, estado do qual ela não consegue se livrar, e que vai impactar de modo decisivo seu relacionamento com o marido, Sean, e a mãe, que reconhecem sua dor, insistem para que ela redescubra o prazer na vida, mas não sabem como persuadi-la, e metem os pés pelas mãos. Sean, em particular, passa a demonstrar uma ligeira indiferença, primeiro pelo sofrimento da companheira, depois pela própria Martha, que por sua vez perde completamente o interesse pelo parceiro. O roteiro faz com que se entenda que também ele padece com a tragédia, mas que isso não lhe serve de licença para sua covardia. Enquanto isso, Martha se desintegra ao ponto de nem ostentar mais qualquer coisa de humano. Torna-se uma criatura algo transcendental, como um espectro que ronda a matéria que lhe compunha, ansiando por voltar àquele corpo, impressões que a audiência só nota graças ao espantoso talento de Vanessa Kirby. Sua Martha Weiss é um dos retratos mais pungentes de um personagem em sua condição mental, uma mulher despedaçada que possivelmente nunca volte a estar por inteiro outra vez, ainda que o final empenhe uma promessa de felicidade.