Malgrado fundamental para a vida em sociedade, a fim de suportarmo-nos uns aos outros, a política não tem quase nada de prazeroso — a não ser para os políticos profissionais, claro, que mesmo depois que cinquenta anos na atividade, não conseguem largar o osso, tão absorvidos estão pela atmosfera nebulosa que o poder emana. A política vicia, disso todos sabemos, eles mais que nós. A tentativa de se estabelecer alguma ordem que reja o caos da natureza humana, que apenas reflete a biologia — indisciplinada, selvagem, caótica —, é a função precípua do expediente político, sem o qual os indivíduos já teriam regredido novamente à barbárie da Idade Média (476-1453), ou ainda à violência cândida da Idade da Pedra, em que o homem matava “apenas” para defender-se dos inimigos que ameaçavam seu território, a pureza de suas mulheres ou o desenvolvimento de sua prole, tão cômodo se encontrava em tal cenário que nele permaneceu por quase três milhões de anos. Aceitar o outro não como o concebemos, mas da forma que ele é de fato, almejando intimamente que se arrependa de suas faltas e mude, de postura, de comportamento, mude sua forma de ver a vida, mude de vida, enfim, enquanto nos policiamos a fim de não nos tornarmos ranzinzas, preconceituosos, intolerantes, é uma tarefa inglória, mas que pode ser também muito reconfortante. Compreender as outras pessoas, dar-lhes uma palavra de incentivo, um sorriso franco, desarmado, sem receio de ser tachado de doido, destinar-lhes um olhar de bondade que seja, muitas vezes exige de nós tamanho sacrifício que é como se fizéssemos mesmo uma longa viagem para aquela vida, em que, as circunstâncias que consideramos as mais absurdas são o que pode haver de mais corriqueiro. Daí ser tão complexa a vida do ser humano, sempre envolta em centenas de questões, milhares de problemas, dos quais só somos capazes de nos livrarmos na medida em que acessamos o mais obscuro do espírito, primeiro o nosso, para a partir dessa experiência termos consciência uns dos outros. O homem está sempre precisando de alguém que o salve, eis a sua desgraça — e a sua redenção. Num mundo pré-apocalíptico, em que ainda havia algo a ser feito, Deus se compadeceu do gênero humano. Bem, do homem exatamente, não, mas de um homem, e sua descendência. Em “Noé” (2014), o diretor Darren Aronofsky dá a sua versão para a narrativa do bíblico “Gênesis”, um filme que encanta qualquer um. Para deixar os enroscos do dia a dia de lado de uma vez por todas e aproveitar a folguinha na semana, só acompanhando as trapalhadas de um herói como a gente não está habituado a encará-los. Peter Parker continua firme na missão de acudir a humanidade e livrá-la da sanha de facínoras os mais diversos, mas em “Homem-Aranha: De Volta ao Lar” (2017), Jon Watts parece igualmente propenso a revelar um certo lado de seu protagonista que talvez só uns poucos fãs mais devotados conheçam. “Noé”, “Homem-Aranha: De Volta ao Lar” e outras três produções, lançadas entre 2019 e 2014 e disponíveis na Netflix, têm o condão de nos resguardar da guerra da vida, ainda que com enredos nem tão pacíficos assim. O fim de semana é todo seu, mas não se esqueça de que com grandes poderes, vêm junto grandes responsabilidades, hem?
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

A tripulação de um submarino francês movido a energia nuclear se arrisca numa diligência a fim de descobrir novas formas de vida no fundo do oceano. A equipe é auxiliada por um jovem dotado de audição absoluta, condição rara que lhe permite guiar os colegas sem a necessidade permanente de equipamentos mais sofisticados, como sonares e periscópios. O Ouvido de Ouro é, decerto, um herói para seus pares, mas essa admiração se esfarela, uma vez que ele, que nunca deixou de ser humano, comete um erro, grave a ponto de oferecer perigo à vida de todos os tripulantes. O cenário é duplamente complexo para esse vilão casual que, além de ter de lutar pela própria sobrevivência, será obrigado ainda a mostrar que nunca deixou de ser o homem bom que sempre fora.

Ethan Hunt e Solomon Lane parecem mesmo ter sido feitos um para o outro. Além de ter de encarar novamente o adversário, em “Missão: Impossível — Efeito Fallout”, o diretor Christopher McQuarrie abusa do agente ao fazê-lo pedir arrego a August Walker, espião de uma categoria superior da CIA, o órgão responsável pela inteligência dos Estados Unidos. Hunt está grudado numa teia perigosa e, quanto mais se mexe, mais se convence de que as pessoas que o cercam não são tão éticas e incorruptíveis quanto ele pensava. Como se não fosse o bastante, o investigador tem de lidar com problemas que restaram por dirimir e sentimentos que voltam a aflorar sem que ele quisesse, sem esquecer de desativar a bomba de fissão nuclear que pode levar pelos ares um tesouro incalculável: a própria civilização ocidental.

O diretor Jon Watts confere novas camadas a Peter Parker em “Homem-Aranha: De Volta ao Lar”. O filme de Watts dispõe de uma inteligência narrativa toda própria já na introdução ao situar o papel de Parker quando da guerra civil em que combateu, mote a partir do qual o enredo ganha corpo. O herói finalmente se deixa convencer de que é mesmo dotado da natureza de paladino da humanidade, mas para conseguir se encaixar no mundo, precisa antes lidar com seus probleminhas domésticos.

Autor nenhum consegue adaptar uma obra literária para o cinema de maneira inteiramente fidedigna. Sempre há que se fazer uma ou outra correção de rota, a fim de tornar fílmica uma narrativa pensada exclusivamente para o papel. O caso se complica o seu tanto em se tratando de textos religiosos, independentemente do teor místico do que vai ali escrito, seja em que religião for. Em “Noé”, Darren Aronofsky se desdobra sobre alguns versículos do livro do “Gênesis” a fim de extrair deles um épico dotado de fúria, toques de psicologia e o máximo de rigor histórico que consegue. Sua interpretação da parábola do dilúvio, cercada de lirismo e fantasia, é digna de figurar como uma das grandes passagens do cinema. O diretor banca suas ideias, a despeito de elas serem ou não rentáveis para a indústria. Russell Crowe dá vida ao Noé que boa parte do inconsciente coletivo conhece, um homem de princípios sólidos e incorruptíveis, filho direto da linhagem de Adão e Eva. Deus, indignado com o que o homem tem feito da Sua criação, decide começar tudo do zero. O expediente de que Ele lança mão para isso é um dilúvio que irá durar quarenta dias e quarenta noites, a fim de não restar pedra sobre pedra. Para salvar os animais – puros por natureza, mesmo as feras predadoras, que o são só porque seguem seus instintos — e a descendência humana, Noé é incumbido da hercúlea tarefa de erguer uma arca pantagruélica, no intuito de abrigar todas essas criaturas e sua prole. O enredo de Aronofsky é dividido em três atos, e cada qual tem o condão de representar uma fase da trama. Noé peregrina rumo à montanha habitada por Matusalém, personagem mítico que, segundo as Escrituras, teria vivido quase mil anos e seria o patriarca da humanidade; seguem-se os instantes anteriores à catástrofe e a situação irremediável dos ímpios, em polvorosa. Este ponto da saga se conclui com a reclusão de Noé e sua família na arca, até que as águas sequem. Aronofsky é pródigo em se aprofundar na psique de tipos angustiados e obsessivos, como em “Cisne Negro” e “Pi” e tirar dali a razão mesma para a história que está sendo exibida: Noé foi o escolhido por Deus porque certamente seria o único capaz de entender Seus desígnios sem maiores conflitos existenciais. Ele cumpre a missão, guardando para si qualquer sombra de pavor ou dúvida. Pode-se especular um pouco a respeito da índole do personagem-título ao se analisar o comportamento de seus familiares, escanteados na história original. É por meio deles que o público enxerga em Noé a sua dimensão humana, frágil, errante como qualquer outra, mas empenhado em sua missão, decerto apreensivo com o que será do mundo depois da daquela resolução divina o seu tanto drástica, o que o espectador claramente percebe.

A Terra é dominada por seres extraterrestres e, como nos filmes da franquia “Missão Impossível”, nossas vidas estão nas mãos de Tom Cruise, ou melhor, Bill Cage, responsável pela comunicação das Forças Armadas americanas. Dessa vez, Cage deixa o gabinete e vai para a frente de batalha no último dia da guerra. Sem que se saiba exatamente por que, o militar fica emparedado em algum trecho de sua vida, fenômeno que se repete sem perspectiva de término. Morrendo e nascendo outra vez, Cage tem a noção precisa do que pode acontecer, e deseja mudar o rumo dos fatos, valendo-se da ajuda de Rita Vrataski, uma corajosa guerreira.