Antes um território situado na península de mesmo nome ao nordeste da Ásia, composto por duas nações soberanas ao norte e ao sul, a Coreia sempre viveu sob tensão constante, cenário que se agravou muito a partir de 1950, quando da eclosão de uma sequência de conflitos armados ao longo dos quais os exércitos do Norte invadiram a porção meridional. A Guerra da Coreia só veio a cabo três anos depois, graças a um armistício. Tomando a história oficial por base, a nenhum dos dois foi conferida a vitória, mas ao se analisar o contexto das duas nações no mundo hoje, a hegemonia da Coreia do Sul sobre a irmã do norte é evidente. O país dispõe de um governo democrático, cujo sistema econômico, sempre em visível crescimento, é responsável por garantir à população padrão de vida comparável ao de muitas sociedades europeias e mesmo de algumas cidades dos Estados Unidos. No que diz respeito à arte, nenhuma manifestação do gênero humano é digna de se classificar com tal denominação num regime autocrático — e hereditário! —como o que o povo da Coreia do Norte é obrigado a se submeter há exatos 73 anos. Malgrado seja reconhecida como um país independente desde 9 de setembro de 1948, o que se assiste na Coreia do Norte é um lamentável espetáculo trágico e farsesco, que só se sustenta com a conivência e o silêncio de toda a comunidade internacional, a Organização das Nações Unidas (ONU) à frente. A Coreia do Norte continua negando o que todo o mundo vê — ainda que não tome parte —, e se declara simplesmente como um Estado em que vige um sistema político-econômico fundado no socialismo mais retrógrado, inspirado pelas barbáries do stalinismo mais grosseiro, em que o culto à personalidade do mandatário maior do país mais que dar o tom deve ser observado à risca, sob pena, dizem as autoridades, de prisão. Evidentemente, o castigo vai muito, muito além. A inventividade para o mal vai tão longe que foi criado um termo, Juche, a fim de definir a propalada autossuficiência norte-coreana, que virou lei e passou a constar do arremedo de constituição outorgado em 1972. Segundo a Juche, os poucos meios capazes de gerar alguma renda pertencem ao Estado, que os capitaliza por meio de um universo de estatais e propriedades rurais expropriadas, insuficientes para produzir todo o alimento de que a população necessita, mas servem à perfeição quanto à extorsões, lavagem de dinheiro e delinquências que tais. Como se nota, no lodo em que chafurda a Coreia do Norte não existe nada de que se possa extrair algum proveito, muito menos cinema. A Coreia do Sul, por sua vez, a pouco e pouco, do jeito oriental — e certo — de se fazer as coisas, garante seu torrão junto ao espectador, abordando em filmes produzidos com todo o esmero, temas os mais diversos, de dramas familiares a tramas de zumbi e outros monstros que infernizam a vida da humanidade na telona. Como se percebe, o continente asiático é um mundo, do qual é simplesmente impossível se falar tudo de uma única vez — o que o cinema, por seu lado, faz com a competência de que só ele mesmo é capaz. A saga de um pai austero, ávido por purgar a honra do clã, maculada pelo próprio filho caçula, é o mote de “A Sun” (2019), dirigido pelo taiwanês Chung Mong-hong. O público também é apresentado a outra sorte de desgraça que pode acometer uma família, mesmo num país em avanço ininterrupto do lado de lá do mundo: a pobreza, agudizada pelo descaso com o meio-ambiente, como em “O Hospedeiro” (2006), do sul-coreano Bong Joon-ho. “A Sun” e “O Hospedeiro”, além de mais oito títulos lançados entre 2021 e 2006, os dez no acervo da Netflix, inspiram na gente uma pontinha de esperança na espécie humana quando bem conduzida. Os orientais têm muito a nos ensinar.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix
O cinema asiático vem conseguindo quebrar paradigmas e preconceitos e adquire cada vez mais proeminência, em todos os gêneros, dando corpo às tramas mais complexas e trazendo novos olhares sobre questões que se imaginava emboloradas — e faz tudo isso com competência e originalidade, muitas vezes misturando uma série de linguagens fílmicas numa trama só. Em “The Soul”, o assassinato de um grande empresário dá azo a uma investigação minuciosa por parte do promotor Liang Wenchao e sua esposa, a agente A Bao. Aos poucos, eles vão decifrando os muitos mistérios do caso, como o de que todos os que eram próximos ao morto apresentavam razões muito sólidas para acabar com ele. A partir de então, percebem que estão em grande perigo se não descobrirem logo a identidade do criminoso.
Apesar de ser uma trama adaptada do livro homônimo e já levada à telona antes, a versão do diretor sul-coreano Lee Chung-hyeon é um primor de originalidade. O filme conta a história de Seo-yeon, que atravessa um momento difícil e vai morar na casa de campo da família. A propriedade, antiga, dispõe de um telefone sem fio e a protagonista passa a receber ligações insistentes de Young-sook, uma garota da sua idade que parece desesperada por ajuda. As duas dão início a uma estranha relação, sempre mediada pelo aparelho, em que Seo-yeon descobre que Young-sook também vive na casa, numa outra época. Em pouco tempo, o vínculo entre elas provoca mudanças drásticas na vida de cada uma, numa sucessão de acontecimentos que não respeita o fluxo natural do tempo e embola passado, presente e futuro.
Transforme-se o mundo quantas vezes quiser, mas se existe uma verdade irrefutável sobre as relações humanas é a de que, por mais bem-intencionadas que sejam, nem todas as mulheres nasceram para ser mãe. É esse justamente o caso de Akiko, que não satisfeita em desprezar o filho, Shuhei, não trabalha, o vício em jogos de azar a consome e, mesmo assim, acha que a vida vai muito bem, que a família tem, sim, a obrigação de sustentá-la e que, no fundo, é ela a vítima, afinal sua inescapável condição de mulher numa sociedade paternalista, patriarcalista e excessivamente tradicional lhe tolhe o livre-arbítrio. Não se trata de tachar ninguém de vilão —ou vilã —, mas na medida em que se faz determinada escolha, toma-se também um caminho. A partir de então, a felicidade (ou o sofrimento) não é apenas de um.
O cinema feito no Oriente é referência em criatividade. Livres de tantas amarras comerciais e donos de uma tradição milenar, que perpassa histórias fantásticas, fábulas e lendas, a Ásia é pródiga em oferecer ao publico — e ao mercado — produções inventivas, originais, inovadoras. O trabalho de Bi Gan é uma lufada de ar fresco no embolorado ambiente cinematográfico dos últimos dois anos, em se desconsiderando o circuito de filmes autorais, por evidente. O uso da técnica de 3D, já obsoleta apenas três anos depois, mas surpreendente até então, é simplesmente arrebatadora. As tomadas se sucedem sem edição, por meio filme, e isso é só uma pequena prova do preciosismo do diretor Bi Gan, um virtuose nesse expediente. O espectador é conduzido pela voz do narrador em off para o interior de uma boate, como se estivesse tendo um delírio, um transe, um sonho. Os movimentos são precisamente cuidadosos, calculados, o que evidencia a beleza dos planos para além do que poderia ser razoável, mas nada disso acontece sem que essa delicadeza tenha um propósito por trás. E o filme só pode mesmo ser singelo, doce, frente a natureza lírica do enredo. Um homem volta à sua cidade natal devido à morte do pai, encontra a foto de uma ex-namorada e, a partir de então, sai à procura dela. E essa jornada, conforme se vê na obra de Michelangelo Antonioni (1912-2007) e Alain Resnais (1922-2014) — e mais recentemente, Martin Scorsese e Tim Burton —, que tão magistralmente souberam registrar a passagem do tempo numa determinada configuração espacial, não é nada linear, assim como a vida. Todos esses artistas, Bi Gan inclusive, têm desenvoltura acima da medida quanto a apresentar soluções fílmicas que condensam a ação no presente e a que já está dada de maneira absolutamente verossímil. Quanto aos lugares, são como as diversas telas numa exposição, cada qual com seu sentido próprio, mas convergindo, de forma a compor um todo homogêneo. Para Bi Gan, a feitura de uma peça cinematográfica é, ainda no ovo, a possibilidade de ousar, subverter qualquer paradigma já estabelecido, sem subtraminhas bem narradas a fim de ganhar o público. O cinema de Bi Gan é de ação, no melhor sentido da palavra. “Longa Jornada Noite Adentro” é um filme que nos sacode, como a cobrar de nós alguma atitude, frente àquela história e à própria vida.
“A Sun” começa de maneira brusca e, assim, o espectador já fica esperto quanto ao que pode esperar do drama taiwanês do diretor Chung Mong-hong. Mas que ninguém se desestimule: o enredo é todo permeado por respiros cômicos — e eles são mesmo necessários. A pobreza, ainda que num país rico, é implacável, e ai daquele que pense que pode subverter o estabelecido. Contudo, seria tolo afirmar que o risco social é o responsável por fomentar a criminalidade; o fato é que a alma de todo homem tem sua face sombria — e cada um deve mantê-la sob controle. E controle — e, por extensão, autocontrole —, é uma ideia cara aos orientais. Um pai de família honrado não se prestaria a aturar os deslizes de caráter por parte de um filho, muito menos seus delitos. Ao tomar conhecimento da prisão de A-Ho, A-Wen exige que o caçula seja sentenciado com uma pena severa, o que revolta sua mulher, Qin, mãe do rapaz. A partir daí, o que se segue é a total desintegração do que até tão pouco tempo era um lar (e uma família). Ainda que haja uma ou outra tentativa pontual de contornar a questão, o casal, juntamente com o filho mais velho, pressentem que nada vai voltar ao ponto anterior à ruptura. A vergonha que todos sentem pelo destino de A-Ho, tornado ainda mais significativo numa sociedade que valoriza sobremaneira a austeridade da conduta social, o constrangimento, o remorso, tudo converge para que não consigam se encontrar outra vez. O sol pode até ser o que há de mais justo no mundo, mas só pode iluminar e emprestar seu calor a ambientes que se abram para ele. Do contrário, fica eternamente preso em meio à nuvem de ignomínia e pequenez que flutua sobre a natureza do homem desde sempre.
Ito, membro da Tríade, a máfia chinesa, é o típico bom ladrão: depois de anos de crimes e com muitas mortes nas costas, fica balançado e não mata Reina, uma garota que sobrevive a uma chacina. Não demora muito e uma legião de assassinos, a mando dos maiores gângsters da Ásia, furiosos com a ousadia, se põe em seu encalço. A única escolha a fim de permanecer vivo é regressar a Jacarta, capital da Indonésia e sua cidade de origem, e quitar antigas pendências com a namorada, os amigos de outras vidas e os parentes que não reconhece mais. O problema é que não tem dinheiro, e para consegui-lo, é obrigado a mais uma vez, forçar um pouco a ordem dos acontecimentos a seu favor, no que que conta com a ajuda de uma mulher tão cheia de mistérios como de riscos.
Ito, membro da Tríade, a máfia chinesa, é o típico bom ladrão: depois de anos de crimes e com muitas mortes nas costas, fica balançado e não mata Reina, uma garota que sobrevive a uma chacina. Não demora muito e uma legião de assassinos, a mando dos maiores gângsters da Ásia, furiosos com a ousadia, se põe em seu encalço. A única escolha a fim de permanecer vivo é regressar a Jacarta, capital da Indonésia e sua cidade de origem, e quitar antigas pendências com a namorada, os amigos de outras vidas e os parentes que não reconhece mais. O problema é que não tem dinheiro, e para consegui-lo, é obrigado a mais uma vez, forçar um pouco a ordem dos acontecimentos a seu favor, no que que conta com a ajuda de uma mulher tão cheia de mistérios como de riscos.
O suspense do diretor Jang Hang-jun vem confirmar a trajetória ascendente do cinema sul-coreano. A narrativa do ótimo “Rastros de um Sequestro” gira em torno de Jin-Seok, que acaba de se mudar com a família para uma casa nova. Certa noite, o rapaz presencia o sequestro do irmão mais velho, Yoo-seok, que volta 19 dias depois, sem se lembrar de nada. A reação de Yoo-seok poderia ser entendida como natural frente a tamanho choque, mas Jin-Seok começa a estranhar o comportamento dele e o fato de o irmão sempre sair a altas horas. Convencido de que a pessoa que passou a conviver com a família não é Yoo-seok, o protagonista decide investigar o caso por conta própria.
Grace Wong é vítima de um sequestro por culpa do irmão. Pelo menos é o que lhe dizem os bandidos, interessados num bem que o rapaz esconderia. Mantida em cárcere privado num cubículo, afastada da filha e intrigada com o irmão por causa da história, a engenheira Grace conserta um celular velho e, como se trata de cinema, até consegue ligar para Bob, que quando não está ocupado cobrando dívidas alheias, se dedica ao filho que, por sinal, o espera no aeroporto antes de embarcar. Grace e Bob se falam e conforme ele toma pé do que houve, tem início para esse anti-herói uma corrida contra o relógio, a fim de não deixar ninguém desamparado.
A história de “O Hospedeiro” introduz o público às desgraças de uma típica família pobre da Coreia do Sul. Gang-doo cria a filha sem mãe junto com o pai. Os três vivem numa cloaca à beira do rio Han, expostos a toda sorte de imundícies e dejetos químicos, sem a menor possibilidade de sair dali. O enredo mistura ironia e drama numa crítica de pronunciado teor socioambiental, sempre respeitando a inteligência e o livre-arbítrio do espectador e sem descuidar da forma como conduz a trama ao se valer de efeitos especiais muito bem executados. Bong Joon-ho assina um filme de ficção-científica dos mais qualificados, que tem o mérito de fomentar a reflexão sem panfletarismo, dosando a carga dramática do longa a fim de que a narrativa nunca resvale para o clichê ou para o tédio.