Se foi dito por Caetano Veloso, pode assinar embaixo: ela era a mais completa tradução de São Paulo. Pele muito branca, cabelos ruivos, um sotaque paulistano fortíssimo, ela poderia ser uma beatle ou uma rolling stone. No ambiente de homens, a jovem Rita Lee ainda sem completar 20 anos chamava a atenção por ser a única mulher no rock brasileiro. Com o tempo, após os Mutantes e o início do voo solo, virou figura suprema.
Pode ser que o rock esteja no sangue da família. O pai (Charles) cresceu numa colônia de sulistas dos Estados Unidos, que vieram parar na região da cidade de Americana (SP) depois da Guerra Civil. Quando nasceram as filhas, ele acrescentou o nome Lee em todas. De berço, portanto, ela já se chamava Rita Lee Jones, marca de roqueira. As histórias estão no livro “Rita Lee — Uma Autobiografia” (2016) e “Rita Lee: Outra autobiografia” (2023).
“Charles contava que seu pai, Cícero (mesmo nome do primo dele), era mestiço, filho de uma índia da tribo Cherokee com um cara-pálida americano de ascendência escocesa. Dizia que, certa vez, Cícero se envolveu numa briga num bar e acabou matando um branco no Alabama e, para fugir da prisão, entrou de gaiato num navio onde embarcavam para o Brasil as primeiras famílias confederadas que não concordavam com o resultado da Guerra de Secessão”, conta Rita, com sua linguagem cheia de gírias.
Difícil imaginar o impacto que o grupo de Rita, Os Mutantes, teve na música brasileira a partir do movimento tropicalista dos anos 1960. Se Caetano filtrava o rock pela sonoridade baiana, o trio paulistano fazia o sentido contrário e absorvia a MPB. O cartão de apresentação foi a participação no disco coletivo “Tropicália ou Panis et Circencis” (1968). Até hoje os discos de Rita com os irmãos Arnaldo e Sérgio Baptista deixam os gringos de queixo caído.
Mas, como em toda história de roqueiro, Rita Lee rompeu com os amigos e saiu em carreira solo. A separação conjugal entre ela e Arnaldo levou ao ato desesperado do ex-marido que tentou um suicídio. Casada com Roberto de Carvalho, começou nos anos 1970 uma das trajetórias mais impressionantes, sobretudo pelo fato de ser uma mulher no rock. Só tem paralelo, salvo engano, em Patti Smith e Chrissie Hynde (dos Pretenders).
O disco “Fruto Proibido” (1975) é um clássico do rock brasileiro. “Agora só falta você” e “Esse tal de roque enrow” provaram que se poderia cantar e ser roqueiro em português. As letras traziam a fala jovem, cheia de gírias paulistanas e descoladas, algo que Rita incorporou a seu estilo. O álbum tem a irretocável “Ovelha negra”, que carrega uma sonoridade folk e fala da condição feminina.
Na virada para os anos 1980, ao lado de Roberto de Carvalho, Rita partiu para uma fase mais pop convencional. Houve um sucesso estrondoso, porque o rock brasileiro estava se renovando. As músicas viraram retratos do comportamento da época, como “Lança perfume”, “Baila comigo”, “Saúde”, “Mania de você” e “Doce vampiro”. Mas, vez por outra, o rock retorna forte e irônico, como em “Todas as mulheres do mundo” (1993).
Rita abriu caminho para uma carreira musical muito interessante que é a de Marina Lima. Esta ainda terá o reconhecimento adequado à altura. A herança dos Mutantes aparece nas experimentações do Pato Fu, que mistura a anarquia sonora e a voz doce/amarga de Fernanda Takai. Quanto à inquietação, a melhor tradução de Rita Lee, creio, foi a banda punk paulistana As Mercenárias, que lançou dois discos nos anos 1980.
Rita Lee morreu na segunda-feira, 8. Diagnosticada com um câncer de pulmão, vinha fazendo tratamento desde 2021. A música brasileira ficou menor.