A melhor comédia romântica dos últimos 25 anos está no catálogo da Netflix Divulgação / Polygram Filmed Entertainment

A melhor comédia romântica dos últimos 25 anos está no catálogo da Netflix

Às vezes, o amor vem como uma bomba. No cinema, quase sempre. Filmes têm o condão de elevar as muitas projeções do homem a potências que nunca seriam alcançadas noutras circunstâncias. O cotidiano, a realidade, o chão do mundo, ficam pequenos, sem importância, faltos de sentido se encarados à luz das histórias maravilhosas da sétima arte. Senão, vejamos.

Para o diretor francês Alain Resnais (1922–2014), o mais humano dos sentimentos é também o mais desditoso. Ao detalhar o encontro de uma atriz francesa que vai para o Japão e se enamora de arquiteto local, Resnais não quis falar de uma relação que começa feito outra qualquer, a partir da atração visual, dos tantos jogos de sedução de uma e outra parte — em especial do lado feminino, como sói acontecer —, de conversas harmoniosas, regadas a um bom vinho à beira de um lago, numa paragem bastante isolada, de preferência. No momento em que se propõe a falar de um romance com todas as chances de dar errado, mas que mesmo assim seduz o público — tanto que vira filme, “Hiroshima, Meu Amor”, lançado em 1959, cujo roteiro é assinado por ninguém menos que Marguerite Duras (1914-1996) —, Resnais assume riscos.

Da mesma forma que a cidade onde se apaixonam, os corações da atriz e do arquiteto japonês estão aos pedaços. Parece que Ele e Ela, como o diretor os chama, haviam passado toda a vida só esperando a ocasião ideal a fim de se entregarem um ao outro, espíritos atormentados que nunca foram capazes de discernir o que é de verdade e o que é mero sonho numa existência feita nem de uma nem de outra coisa, mas de ilusão. A vida como ela é os importuna: estão cada um num casamento do qual não pretendem se desvencilhar; o sentimento que pensam nutrir um pelo outro não resiste a um olhar mais detido dos fatos como se constituem. Ele e Ela se perderam na atmosfera de sonho de que se cercaram e, por paradoxal que seja, se agarram à fantasia, porque sabem que assim, idealizadamente, serão felizes.

Quarenta anos depois, o britânico Roger Michell parte de argumento semelhante no intuito de também fazer uma defesa incondicional do amor. Em “Um Lugar Chamado Notting Hill”, de 1999, o dono de livraria de Hugh Grant dá de cara com a atriz que mais admira justamente no seu estabelecimento, Julia Roberts, que não interpreta um papel autorreferente, em Notting Hill, bairro na região centro-oeste de uma Londres pouco explorada pelo turismo — até então. O roteiro é, sim, cheio de pequenas inconsistências, afinal se trata do dito cinema de entretenimento mais característico, predicado que só o torna ainda mais saboroso.

Indo na direção contrária à tomada por “Hiroshima, Meu Amor”, Michell celebra o caso amoroso com todos os seus tantos e tolos clichês, mas a todo momento resta clara a intenção dos personagens de viver de fato a relação que se inicia de maneira tão insólita, talvez por isso mesmo tão preciosa para cada um, aura que o público capta sem tardança, legitima e abençoa. Ainda que soem impertinentes certos arcos narrativos, a exemplo de se apreender do livreiro que seja um grande fã do trabalho da atriz — livreiros de meia idade em geral têm mais o que fazer —, por outro lado a visita inesperada da estrela das telonas a uma livrariazinha perdida num lugar qualquer é vista com muita simpatia pelo espectador — e é muito mais verossímil também. Nesse particular, o enredo é inteligente ao não se deixar envolver pela facilidade de entregar os pontos de uma vez e fisgar a audiência da maneira mais direta e óbvia e dá uma guinada: William Thacker não parece intimidado com o star appeal hollywoodiano de Anna Scott, muito pelo contrário. Para ele, a atriz é uma mulher como qualquer outra e isso, por evidente, é o que a encanta em Thacker — o que poderia não acontecer, pelo menos não com tanta rapidez, conforme se observa em histórias em que o interesse amoroso (ou mesmo apenas a tensão sexual) faz com que os protagonistas quase se joguem nos braços um do outro, não fosse a ojeriza que sentem de parte a parte, casos de “A Megera Domada”, peça de William Shakespeare (1564-1616), encenada pela primeira vez em 1594, e o seriado “A Gata e o Rato”, escrito por Glenn Gordon Caron, e transmitido durante toda a segunda metade dos anos 1980. No que diz respeito a Thacker e Anna, eles se apaixonam verdadeiramente, à primeira vista, se é que isso existe mesmo. Só precisam dar um jeito de alinhar suas trajetórias uma na outra, por causa do amor.

Claramente inspirado pela fineza vibrante do teatro — e tanto mais do teatro que se faz na Inglaterra —, Roger Michell é um diretor leve. Filme de amor à moda antiga, “Um Lugar Chamado Notting Hill” também é uma história delicada — e deliciosa. Como os amores dignos de serem lembrados, quer resistam ou não à própria vida.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.