A fuga da família real lusitana para o Brasil com todo o seu séquito, montanhas de baús contendo louças, arcas cheias de pratarias, cofres abarrotados de ouro e diamantes, além dos escravos, claro, foi uma vergonha na história de Portugal. Escapando das tropas francesas que invadiram o país a mando do imperador Napoleão Bonaparte (1769-1821), o homem mais poderoso — e temido — do mundo, na esteira de retaliações contra a nação ibérica pelo apoio ao Reino Unido contra a França pela hegemonia do continente europeu, e relegando à própria sorte seu povo, o rei dom João VI, era um homem acuado, desesperançoso, triste, alvo de todas as humilhações possíveis, a começar entre os seus. Sua esposa, Carlota Joaquina de Bourbon (1775-1830), a rainha má, era a primeira a lhe jogar na cara a derrota, a pusilanimidade, a falta de brio, tecendo paralelos o seu tanto peculiares sobre tais defeitos do monarca e sua pouca virilidade. A então princesa da Espanha, filha de Carlos IV e dona Maria Luísa de Parma, era pouco mais que uma menina catarrenta e voluntariosa quando foi pedida em casamento pelo conde de Louriçal representando a corte portuguesa, em 1783. A infanta da Espanha desembarca no fausto do paço de Lisboa aos 10 anos, e um quinquênio depois, o casamento, de que vieram Maria Teresa, Maria Isabel, Maria Francisca, Pedro de Alcântara, Isabel Maria, Miguel, Maria Assunção e Ana de Jesus, estava consumado. Enquanto suportava as alfinetadas pouco sutis da mulher e se conformava com a ideia de ser um rei sem reino, dom João VI absorvia o cotidiano da vida nos trópicos e observava a necessidade de mudanças estruturais na colônia tornada metrópole. Queira-se ou não, a vinda da corte implicou em verdadeiras transformações na sociedade brasileira. O rei liberou o comércio marítimo do Brasil com as nações amigas, com ênfase na Inglaterra, aliada de primeira hora desde sempre, fomentou o interesse pelas artes, desenvolveu o ensino público. O Rio de Janeiro, seu xodó, se beneficiou diretamente dessa onda de melhorias. Na capital do Império, dom João VI fundou o Banco do Brasil, a Biblioteca Nacional, a Escola Nacional de Belas Artes e o jardim botânico. Ainda muito longe de se tornar um país, o maior apêndice de Portugal civilizava-se. Contudo, ao se dar conta de que o soberano nunca admitiria deixar o poder — e de interferir sobre os rumos do Brasil —, os até então pacatos súditos começaram a se rebelar. Último motim separatista, a Revolução Pernambucana, de 1817, a Revolta dos Padres, assim chamado devido à presença maciça de religiosos em seus quadros — entre os quais Joaquim da Silva Rabelo, o frei Joaquim do Amor Divino, ou simplesmente Frei Caneca —, amplamente apoiado e financiado pelas elites, a favor da República, da liberdade de expressão e de credo, do fim da arrecadação de tributos e da perduração do regime escravagista, foi reprimida com rigor. A partir desse ponto, o cerco nacionalista se fecha e a manutenção do governo monárquico no Brasil se torna dia a dia mais insustentável. Depois do castigo aos insurgentes de Pernambuco, dom João VI amargara muitos outros fracassos, além-mar, inclusive. Em 1820, a burguesia de Portugal, por sua vez, ansiava pela volta do rei, o que deixou claro por meio da Revolução do Porto. Temendo novos desajustes sociais e lembrando o pai 14 anos antes, um intimidado e enfermo dom Pedro I, acometido de uma disenteria severa, apeou do cavalo às margens do rio Ipiranga, em São Paulo, e proclamou a independência do Brasil, em 7 de setembro de 1822, não exatamente por imposições da honra, mas da fisiologia. Destarte, a história da oficialmente instituída nação brasileira, mais do que qualquer outra no mundo, se pauta por idas e vindas, avanços e retrocessos, glória e ignomínia. O assunto é espinhoso, rende pano para muito mais manga, mas apaixona quase todo mundo. O protagonista de “Eles Vivem” (1988), dirigido por John Carpenter, dá uma de dom Pedro I e tenta libertar os homens bons do jugo de um sistema cruel que tiraniza os cidadãos, feito a monarquia portuguesa de antanho ou qualquer outra, sem que se veja a olho nu. E em se falando de formas aristocráticas de poder, fala-se também de violência, tema onipresente em “Amnésia” (2000), de Christopher Nolan. Esses e outros cinco títulos, todos na Netflix produzidos entre 1988 e 2018, servem para desopilar, esquecer da vida no feriadão e sonhar com um Brasil genuinamente autônomo e digno. Independência? Ou morte?
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

Alex Garland é um homem de estrela. Responsável pelo roteiro de bons filmes, a exemplo de “Extermínio”, “Não Me Abandone Jamais” e “Dredd”, Garland principiou sua carreira como diretor no final de 2014, com o excelente “Ex-Machina: Instinto Artificial”, sobre a relação entre os progressos tecnológicos e se a humanidade estaria apta a acompanhá-los. Em “Aniquilação”, ele se vale da ficção científica para discorrer acerca dos maiores mistérios da vida na Terra: a criação, o processo evolutivo, a ciência e a religião, muitas vezes como numa feira, disputando a preferência do público. Abusando das tomadas abertas e coalhado de efeitos especiais, o longa deveria ser apreciado primeiro no cinema, mas o resultado pífio de “A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell” (2017), dirigido por Rupert Sanders, melou as expectativas, dele e do espectador. Em “Aniquilação”, Natalie Portman é Lena, uma bióloga de renome que já fora militar. Com o marido desaparecido, ela aceita integrar a missão que vai explorar a Área X, onde se dá um fenômeno que toma todo o litoral americano para o qual a ciência não tem explicação. Contando com uma equipe de outros cinco especialistas, Lena começa uma pesquisa, a fim de tentar entender se os eventos têm alguma relação com a possível interferência de organismos extraterrestres ou se se trata de uma espécie de manifestação antropológica, como um culto religioso. O filme é para gente de cuca fresca, que não se incomoda com enredos cujas indagações permanecem em aberto e, pior (ou melhor), deixa ainda outras tantas perguntas, o que fomenta uma salubre reflexão a respeito do gênero humano e seu lugar no mundo.

Dirigido por David Slade, este episódio da série que virou febre entre os nerds se desenrola num plano de distopia que, mais uma vez, mostra questionamentos sobre escolhas em tempos de inteligência artificial. Pródigo em citações a outros capítulos de “Black Mirror”, de Charlie Brooker, neste, protagonizado pelo programador de jogos Stefen Butler, a tecnologia volta a atormentar a vida íntima das pessoas, sob o pretexto de torná-la mais cômoda.

Grey (Logan Marshall-Green) e sua esposa sofrem um ataque aparentemente gratuito. Ele fica tetraplégico e a mulher acaba morrendo. De luto, perdido, atônito, sem saber o que pensar e completamente imóvel a partir do pescoço, ele concorda em se tornar cobaia de uma terapia experimental que implica em instalar um microchip capaz de devolver-lhe os movimentos. Uma vez feita a cirurgia, Grey vai aos poucos se reabilitando. Com a mobilidade em sua plenitude outra vez e sedento por vingança — o único sentimento capaz de fazê-lo esquecer um pouco todo o sofrimento pelo qual teve de passar —, Grey começa a elaborar uma estratégia a fim de liquidar quem arruinou sua vida.

O público que aprecia a mistura de aventura com ficção científica decerto se encanta por “A Caverna”, inventivo ao explorar o tema do tempo que transcorre de uma forma nada usual num lugar desconhecido. O filme conta com efeitos visuais convincentes, bom elenco e uma trilha sonora que destaca a atmosfera de mistério, até que o enredo desague no final inconclusivo, que sugere uma situação voltada ao terror. “A Caverna” aproveita o argumento do tempo anômalo da melhor maneira num filme que entrega o que se propõe: entretenimento de qualidade.

Numa pequena cidade, criminosos e o xerife local se conhecem há bastante tempo, e bem de perto. Contada por meio de recursos contracronológicos, isto é, de fatos considerados perdidos na narrativa, mas que vêm à lume aos poucos, para a origem da história, na trama, Zeke é um cidadão como outro qualquer, pacato, ordeiro, cumpridor de seus deveres e, por isso mesmo, policial dedicado, que não dá um caso por concluído enquanto não bota a mão em todos os autores das delinquências que subvertem a ordem na jurisdição de que é responsável. A grande prova de fogo de sua carreira se apresenta como o assalto a um banco por ladrões com quem conviveu por boa parte da vida, entre os quais seu próprio irmão, Andy.

Vítimas de um ataque brutal, uma mulher morre e seu marido, Leonard, fica com ferimentos graves. Ele consegue sobreviver, mas a violência dos golpes lhe provoca um distúrbio neurológico. Seu cérebro não registra mais fatos recentes e ele esquece por completo de coisas que acabaram de acontecer. Mesmo assim, ele desafia suas limitações e se prontifica a encontrar o assassino de sua mulher e, finalmente, vingá-la. O filme se bifurca em duas narrativas: uma em cores, que expõe os fatos de modo reverso, e outra em preto e branco, sob a forma cronológica comum, explorando a amnésia do protagonista para, no desfecho, ligar as duas e, esclarecer se Leonard matou o homem certo.

Baseado no conto “Eight O’clock in the Morning” (1963), de Ray Nelson, o personagem central é um operário que abandona o Colorado em que nasceu e cresceu e se muda para uma grande cidade, à procura de melhores condições de vida. Durante uma operação policial chocantemente violenta, a polícia destrói todo um quarteirão do bairro pobre em que ele passa a viver, talvez o único branco em meio a uma massa de negros e latinos. No corre-corre entre os escombros, ele se depara com um par de óculos escuros que lhe permitem enxergar o que há por trás da capa de humanidade de certas pessoas, e não gosta do que vê. Além de ser capaz de desvendar a verdadeira natureza desses indivíduos, consegue também decodificar as mensagens subliminares cifradas transmitidas por eles em outdoors e pela televisão, a fim de dominar o mundo. O candidato a salvador do homem junta-se a um companheiro de trabalho e os dois passam a liderar um movimento de resistência. “Eles Vivem” é o próprio filme de autor, engajado, que serve de alegoria quanto a mostrar a alienação da maioria esmagadora da população mundial, sempre sequiosa de um messias. Não é tolice pensar que John Carpenter fez da história mais que uma sátira. O filme é um clamor em defesa dos revolucionários do mundo.