A verdade é como o sol. Quanto mais longe nos mantivermos dela, menos nos queimamos. Ou, ainda, a verdade igual à poesia: ninguém se atreve a dizer, mas não gosta dela. As duas frases, reveladoras na sua natureza cínica, mas, com o perdão do pleonasmo, verdadeiras, de uma simplicidade possível somente numa roda de amigos num botequim qualquer, são um pouco mais objetivas quanto a definir o pensamento de Karl Marx (1818-1883) acerca do tema. O gênio do alemão, filósofo, economista, homem de imprensa — o que, também por isso, o obrigava a fazer-se claro à maior quantidade de gente que pudesse —, historiador e sociólogo, brilhara quando lhe ocorreu elucubrar acerca do falseamento da verdade e, por conseguinte, da história, que, segundo ele, poderia se repetir, sim, mas só mediante duas circunstâncias: ou como tragédia ou como farsa, ambas imensuravelmente danosas à humanidade — ainda que a primeira configuração soe muito mais aterradora. A máquina de impressão por tipos móveis de Johannes Gutenberg (1400-1468) talvez seja a invenção mais revolucionária a já tomar forma pelas mãos do homem. Numa única página de jornal ou de um livro podem caber os mais diversos gêneros de informação, por exemplo, pronunciamentos de líderes que fizeram a diferença na história da humanidade, para o bem ou para o mal, se empenhando em salvá-la ou se devotando em jogar fora a água suja do banho — com o bebê junto. Mesmo o argumento politicamente correto — e inegavelmente calhorda — da preservação das árvores não se sustenta, haja visto o cultivo de espécies de menor valor agregado, empregadas apenas com o fim de produzir celulose, a matéria-prima do papel, e, claro, a tecnologia, que tornou viável armazenar num dispositivo milhares de publicações. Todavia, não se pode acatar tudo o que aparece escrito sem se questionar rigorosamente nada, imaginando que todas as coisas ali têm a natureza de verdade absoluta. Há mistificadores para todo lado — inclusive na imprensa, ou melhor, em especial na imprensa —, e, lamentavelmente, a categoria se espraia por amplos setores da sociedade, o que inclui a academia e mesmo as escolas de ensinos fundamental e médio. Por falta de conhecimento específico ou geral, má-fé, negligência intelectual ou uma boa pitada de tudo isso — e pelo caráter eminentemente democrático da estupidez humana, a “burritsia”, a classe mais ignorante de um povo, acaba levando a melhor. São necessários séculos para se fomentar e estabelecer o conhecimento, mas em menos de quatro anos tudo já pode ter ido à breca. Nunca conhecemos o fato como um todo, e tanto pior se se trata de episódio tão particular e tão mal-documentado como uma guerra-relâmpago numa nação periférica, a exemplo do que se apresenta em “Jadotville” (2016), dirigido por Richie Smyth. Detalhes da prisão de um guerrilheiro de esquerda durante um regime totalitário também são revelados em “A Noite de 12 Anos” (2018), do uruguaio Álvaro Brechner, o que horroriza e intriga espectadores das mais distintas colorações ideológicas, as duas produções e mais cinco, lançadas entre 2012 e 2021, todas no acervo da Netflix. Se você endeusava aquele professor de história pelo jeitão de Che Guevara (1928-1967), meio idealista além da conta, e bastante convincente nas suas exposições, está na hora de mandar as máquinas pararem e fazer um mea culpa.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

Pelos vestígios que alguém deixa, é possível conhecer um pouco de como viveu, o que passou, que postura assumiu nos diferentes momentos de sua trajetória. “A Escavação”, do diretor Simon Stone, vai fundo nesse argumento a fim de contar a história de uma jovem viúva que passa por mais um embate pessoal depois da morte do marido. Em 1939, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, Edith Pretty e o filho Robert continuam levando a vida como podem, apesar das vicissitudes pela perda recente. Pequenos montes de terra na propriedade em que moram, em Suffolk, na Inglaterra, lhe despertam a curiosidade e ela recorre a Basil Brown, arqueólogo amador, a fim de saber o que pode haver ali. Brown de fato descobre algo importante, tanto que a notícia se espalha e até o Museu Britânico demonstra interesse pelo que existe de misterioso no terreno de Edith. Enquanto Brown conduzia as escavações, afloravam também sentimentos, igualmente plenos de relevância. Em meio a tantas reviravoltas, Edith, mãe extremada, retém o quanto pode a devastadora melancolia que a consome devido a uma grave doença, a fim de poupar o filho, mas ao mesmo tempo, teme pelo destino do garoto. A trilha, decerto mais um dos trunfos da produção, acompanha o processo de desgaste emocional a que a viúva se entrega, bem como a ambientação da história, que acertadamente opta por cenas pontuadas pelo cinza dos dias de tempestade e uma condução mais sutil. Se a intenção do filme foi transmitir alguma lição ao espectador, Stone pode se considerar realizado. Em “A Escavação” fica claro que a vida vai muito além da superfície.

O enredo desse drama sobre a Segunda Guerra Mundial — com tudo o que um filme sobre a resistência frente à dominação alemã tem de mais lancinante — gira ao redor de Francesc Boix, ex-soldado que servira durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), e fora feito prisioneiro em Mauthausen, um dos campos de concentração nazistas quando do advento de mais uma série de batalhas, dessa vez em escala global. Ele é requisitado para atuar como fotógrafo do diretor do campo, o oficial Paul Ricken, registrando o desempenho das tropas germânicas. Testemunha involuntária da história, Boix fica sabendo que a Alemanha não será páreo à contraofensiva dos Aliados, o que suscita nele a obsessão em manter a salvo tudo o que pôde documentar por meio de suas fotos, a fim de não permitir que os líderes nazistas tivessem qualquer tipo de benefício num futuro julgamento.

A partir de 1973, é instaurada uma ditadura civil-militar no Uruguai que se estende até 1985. José “Pepe” Mujica, Mauricio Rosencof e Eleuterio Fernández Huidobro, militantes dos Tupamaros, guerrilha de orientação marxista-leninista, passam a se destacar em ações como roubos a banco e logo são vistos como uma espécie de santos rebeldes, por distribuírem o espólio entre os mais humildes. As forças de repressão fecham o cerco e os três são capturados e levados a uma das unidades para confinamento de revoltosos, onde estão outros nove colegas, sem que seja possível a comunicação entre eles. Os anos se sucedem enquanto o grupo tenta não se entregar à sensação de alheamento.

Para Hannah Arendt (1906-1975), a capacidade de um indivíduo dito normal se sujeitar a ordens tresloucadas de um lunático e, assim, contribuir para um dos cenários mais monstruosos da história da humanidade tinha a natureza de um verdadeiro enigma que, em alguma medida, a fascinava. A filósofa alemã, uma das intelectuais de maior prestígio no mundo ainda hoje — passados quase 50 anos de sua morte —, tinha de averiguar o que de fato levara um homem comum a se tornar um dos maiores expoentes do nazismo na Alemanha de Adolf Hitler (1889-1945). Despachara-se para Jerusalém, a fim de acompanhar o julgamento do facínora, mas chegara à conclusão de que não havia nada em especial a se contar: Adolf Eichmann (1906-1962) era mesmo um sujeito como outro qualquer, com aspirações e necessidades de um sujeito como qualquer outro, cuja principal distinção se encontrava no aspecto peculiar de seu trabalho e em quem o chefiava. Arendt levou tudo o que apurara às páginas de um de seus livros, todos clássicos, “Eichmann em Jerusalém”, publicado dois anos depois do veredito que condenou o oficial à forca em 1961. Nele, a filósofa apresenta exatamente o que movia Eichmann, a banalidade do mal, conceito que correu mundo, ainda que repetido da boca para fora, sem que se saiba em profundidade o que se está tentando abordar. O braço-direito de Hitler era um funcionário modelo, que apenas cumpria ordens no intuito de conferir a sua tarefa a excelência que o caracterizava — e, igualmente, para permanecer ele mesmo vivo. Ao se dar conta de que a aventura do totalitarismo germânico fazia água, ele, num lance digno de filme mesmo, consegue fugir e se valer de um nome falso para começar do zero na Argentina. Eichmann vai levando a vida sem maiores sobressaltos, tampouco sem padecer de eventuais crises de consciência — e aí é que está o fulcro da questão —, até que sua figura arredia é revelada a uma equipe de pesquisadores judeus. A intenção de um insólito rapto é logo aventada pelo Mossad, o serviço secreto israelense, além da Shin Bet, agência responsável pela inteligência militar do país, para onde é conduzido. Adolf Eichmann é sentenciado à pena capital por enforcamento, na presença de membros da família das vítimas, em 1° de junho de 1962, depois de um julgamento que se estendeu por angustiantes catorze meses.

Com “Dunkirk”, Christopher Nolan conseguiu duas verdadeiras proezas. A primeira foi entregar um filme absolutamente distinto do que vinha apresentando em trabalhos a exemplo de “Batman: O Cavaleiro das Trevas” (2008) e “Interestelar” (2014). Por aí, já se vê que Nolan é um diretor plural e ambicioso, mas a cereja do bolo está mesmo aqui. Sua segunda façanha foi ter imprimido tamanho realismo e dramaticidade numa história carregada de significado. O filme conta, com o rigor intelectual necessário, como se deu o resgate de mais de 300 mil soldados britânicos na costa francesa, completamente sitiados pelas tropas de Hitler. Só o número de figurantes necessários para se emprestar credibilidade às sequências já é uma epopeia à parte, mas a força do talento de Nolan dá conta do recado direitinho. Sem nenhum exagero, “Dunkirk” comprova que Christopher Nolan se superou frente a todos os seus excelentes trabalhos anteriores e produziu a obra definitiva sobre operações militares arriscadas no decorrer de uma guerra. Os cinéfilos esperamos que ele seja vencido.

Em 1961, a República do Congo enfrentava uma grave crise. Grandes corporações brigavam pelos royalties do solo de Katanga, rico em minérios e pedras preciosas, e em meio a toda essa efervescência social, Moïse Tsombe (1919-1969) toma o poder, dando início a uma das ditaduras mais fechadas e sangrentas da história. A ONU envia tropas com 150 soldados irlandeses, liderados por Patrick Quinlan, a fim de restabelecer a paz na região. A inexperiência de Quinlan, aliada aos parcos recursos destinados à missão, redundam num fracasso ultrajante: o batalhão é rendido por três mil mercenários locais, sob a chefia de comandantes franceses e belgas ligados às mineradoras. Os irlandeses são despachados de volta para casa, tidos por fracos, covardes, desertores. Smyth contextualiza o enredo de “O Cerco de Jadotville” à luz da polarização cada vez mais acirrada entre Estados Unidos e União Soviética ao longo da Guerra Fria (1947-1991), em que todo o continente africano era disputado pelas duas potências. O embate entre americanos e soviéticos pelas riquezas do Congo mergulha aquela sociedade num processo de pauperização e confrontos armados em que até crianças ainda em tenra idade se incorporavam às fileiras dos regimentos, desde que tivesse o que comer no fim do dia, enquanto o ditador Tsombe enriquecia a olhos vistos. Por mais calculadas que se apresentem num primeiro momento, guerras nunca são inócuas, e com a agravante de se dar num país alijado da democracia, última trincheira contra a barbárie, até a ocorrência mais banal adquire tons de uma carnificina. Nada pode ser divertido na guerra.

A captura e posterior execução do terrorista Osama Bin Laden pelos soldados americanos talvez fosse o mote perfeito de uma peça de propaganda com o propósito de enaltecer o caráter combativo — e vitorioso — das forças de segurança dos Estados Unidos. Não nas mãos de uma diretora tarimbada, escolada e prevenida como Kathryn Bigelow, que tem se dedicado com especial atenção ao tema. Bigelow, auxiliada pelo magnífico roteiro de Mark Boal, consegue tirar todos os véus que pretendiam encobrir os bastidores da morte de Bin Laden, o UBL, como o chamavam os militares, desde os atentados contra as torres gêmeas do World Trade Center, no centro nervoso de Manhattan, em Nova York, e o pentágono, em Washington, em 11 de setembro de 2001, ao início dos trabalhos para pegar UBL, em 2011, no Paquistão. Para isso, a dupla concentra seus esforços na figura de Maya, analista da CIA que obtém a pista que faltava para liquidar o saudita depois de oito anos de um trabalho meticuloso. Aliás, a isso se resumiu a vida de Maya ao longo desse tempo. Fica clara a anulação total da protagonista quanto a tudo o que não tem relação com seu ofício: ela não sai, não tem amigos, namorado, nada. São raras as vezes em que o cinema retrata de forma tão contundente a obsessão de uma mulher por se superar no exercício de suas funções, como o fez brilhantemente em “Cisne Negro” e de maneira meio jocosa em “Uma Secretária de Futuro”. Talvez seja esse o grande recado que Kathryn Bigelow queira passar, ela própria uma obstinada como poucos. A propósito, “Guerra ao Terror”, também dela, faturou os Oscars de Melhor Filme e Melhor Diretor de 2008 contra nada menos que “Avatar”, de seu ex-marido, James Cameron.