Negros frequentam pizzarias? A questão racial é a pedra no sapato dos Estados Unidos desde muito antes de sua fundação, em 1776. A escravidão na América do Norte já vinha de dois séculos e meio antes de o país de se tornar uma nação independente, quando os primeiros escravizados, capturados como bichos, alijados de seus hábitos, seus costumes, sua cultura, sua vida, enfim, sem a menor cerimônia, vieram de uma desconhecida África, ainda hoje manancial de uma infinidade de riquezas que, por espoliadas, nunca resultam em progresso para sua gente. O desembarque dos cativos na América tivera início em 1526, por sua vez mais de 30 anos depois do envio do italiano Cristóvão Colombo (1451-1506) ao Novo Mundo pela Espanha. O regime escravocrata só foi abolido depois de uma sequência de conflitos armados entre americanos do norte contra os separatistas do sul, os maiores entusiastas do regime. Ao longo dos quatro anos da Guerra de Secessão (1861-1865), o argumento da manutenção do trabalho de seres humanos à custa de alimentação precária e uma esteira de feno para dormir, tratados como a escória do mundo, humilhados, torturados, mortos, foi usado a fim de justificar os bons índices da economia americana. Os sulistas perderam, mas a segregação étnica, guardadas as justas proporções, resiste.
Lançado em 1989, “Faça a Coisa Certa”, foi objeto de uma montanha de prêmios de entidades classistas, entre as associações de críticos de Los Angeles e de Chicago, duas das mais respeitadas dos Estados Unidos. Sem desfazer dos colegas angelinos e chicaguenses, ninguém do mainstream deu a menor bola para aquele rapaz um tanto pretensioso que aos 25 anos começava a escalar uma carreira de sucesso na indústria cinematográfica americana, nem Cannes, nem Globo de Ouro e Oscar, então, era um sonho distante.
Shelton Jackson Lee, o Spike, o “espeto”, conscientemente ou não, fez da projeção que conquistava no mercado de filmes o alicerce para a defesa da igualdade de direitos entre cidadãos brancos e as “pessoas de cor” — termo mais afinado à mofa que à luta por cidadania, empregado por negros e pretos, inclusive, hoje, com razão, esquecido —, e vice-versa. Talvez o tenha feito por querer mesmo, uma vez que a avó, Zimmie Lee, ex-escrava, conseguira se graduar como técnica em artes e assim ganhara a vida, por meio século. Decerto foi em exemplos como o da velha Zimmie que Lee se inspirara. Na mesma toada de “Faça a Coisa Certa” vieram “Malcolm X” (1992), “A Hora do Show” (2000), além de trabalhos avulsos em curtas, vídeos institucionais e episódios de séries, num total de impressionantes 80 incursões como diretor no decorrer de 40 anos.
A história de um policial negro que se passa por um homem branco a fim de investigar como funciona a Klu Klux Klan, um grupo que se notabilizou por difundir ódio racial é tão absurda que só poderia mesmo ter acontecido de fato. Foi com “Infiltrado na Klan”, de 2018, que finalmente Spike Lee ganhou um Oscar, o de Melhor Roteiro Adaptado. Ron Stallworth, até então o único policial negro de sua cidade, Colorado Springs, se depara com um anúncio da KKK publicado sem nenhuma cerimônia num jornal. Entre intrigado, tomado pela revolta e pelo dever cívico e de ofício de averiguar do que se trata, ele telefona para o número divulgado ali. A primeira aproximação é convincente e Stallworth estabelece um vínculo com David Duke, líder da agremiação segregacionista na área. Por mais destemido que seja, ele não vai poder levar sua missão a cabo sozinho, por razões óbvias. E é aí que entra Flip Zimmerman, judeu, seu parceiro na polícia. Zimmerman assume a identidade de Stallworth e se mistura ao bando, ainda que provoque a desconfiança de um dos fanáticos, que não lhe dá refresco.
Spike Lee, por uma das muitas estúpidas ironias da vida, chegou a ser tachado de, vejam só!, racista ao se valer da conjectura da necessidade de um branco para socorrer o colega negro em sua missão. Essa gente apressadinha, que corre para as redes sociais ao farejar carne fresca pronta para ser devorada, não atentou para o fato, óbvio, de que Stallworth, conforme já se insinuou acima, é negro, isto é, nunca lhe seria possível sequer se aproximar dos fanáticos. Seguida pela burrice, vai sempre a falta de estudo e o desapreço pela história: judeus, malgrado a pele clara, nunca foram considerados brancos, muito menos pela Ku Klux Klan, o que evidencia a natureza particularmente delicada de sua história.
A sétima arte mesmo deu sua contribuição quanto a consolidar o opróbrio da discriminação motivada por questões raciais. “O Nascimento de uma Nação” (1915), dirigido por D. W. Griffith (1875-1948) e baseado na novela de Thomas Dixon Jr. (1864-1946) sobre a ascensão da Klan, produção ainda dos tempos do cinema mudo, é o exemplo maior do quão arraigado o racismo estava na sociedade americana. Um filme que falava de busca por igualdade entre brancos e pretos tinha atores negros, certo? Não! Os negros eram representados por brancos cuja pele era enegrecida à custa de generosas camadas de um unguento viscoso, o que dava ao ator um aspecto, por óbvio, artificial, farsesco, caricato e mesmo repulsivo. O tiro saía pela culatra, todo mundo fingia que estava tudo certo e o preconceito se tornava uma política de Estado. Coincidência? Spike Lee não deixaria a força da imagem — e da ideia — lhe escapar e cita o episódio em “Infiltrado na Klan”.
Spike Lee, é verdade, nunca se furtou a uma boa polêmica, e, felizmente, replica os tantos anos de luta renhida por dignidade, por cidadania, por igualdade racial, por justiça, em “Infiltrado na Klan”. Em assistindo ao filme, mesmo quem porventura pode ter chegado de Plutão há meia hora, sente que há alguma coisa de muito errado com a forma como o mundo (não) se dedica a um problema que já deveria ter sido erradicado faz tempo. A crueza de sua mensagem, mesmo embalada num roteiro leve, cômico até, mas às raias do genial, nos apresenta um cenário absurdo, inaceitável, que só prospera graças à inércia dos justos e ao oportunismo dos pusilânimes. Todos deveríamos ser Ron Stallworth.