A cada homem que nasce, um universo se ilumina. O gênero humano se caracteriza por suas tantas dúvidas, seus muitos sonhos, seu inescapável destino, suas exatas inadequações. Os dilemas existenciais, tão comuns na vida do mais ordinário dos ordinários, nos tiram do prumo ao se prestar como uma espécie de prova de fogo, a fim de descobrir onde somos capazes de chegar em busca de um ideal, de uma convicção, de um sonho. A pobre natureza humana tem a necessidade de que lhe permitam deixar o rigor do mundo, a austeridade da existência, e partir para uma dimensão em que tudo soe mais genuíno, mais racional, em que a vida mesma faça mais sentido — ainda que por um tempo limitado, ainda que esse cenário só exista para aqueles que o planejam. As grandes transformações sociais começam dentro de cada homem, daí ser impossível, à luz do pensamento de gênios como o sociólogo alemão Max Weber (1864-1920), uma pretensa salvação da humanidade. A humanidade só se salvaria, irredutivelmente, se cada um de nós se desse conta de suas faltas e se emendasse, o que, é uma lástima, nunca vai acontecer. Cada um é responsável por sua própria redenção — ou sua própria desdita —, sendo sempre possível, evidentemente, arrepender-se, de coração, até o último segundo, tomar um caminho diferente e refazer a vida tanto como possível. No entanto, nunca satisfeito com o mundo da forma como se lhe apresenta, o ser humano se devota a combater os demônios que o atacam, tenham a cara que quiserem ter. A injustiça social, a fome, a ira santa motivada pelo cinismo e o desdém de quem teria por função primeira defender a população disso, a sede nunca saciada por uma utopia que nunca se concretiza, as quimeras que se perdem na grossa bruma do tempo… mas que algumas vezes, passados muitos anos, se tornam realidade. Visando a libertar o povo de seu país de uma sucessão de governos autocráticos, um homem se torna membro de uma guerrilha, com o propósito de assaltar bancos e repartir o dinheiro entre quem precisa. O uruguaio José Alberto Mujica Cordano, ex-paramilitar, ex-preso político, ex-mandatário maior de sua terra e hoje apenas um humilde agricultor familiar e sossegado octogenário, retirado ao bucolismo de seu pequeno sítio, é o protagonista de “A Noite de 12 Anos” (2018), do diretor Álvaro Brechner. Determinado a salvar o destino não de uma pátria, mas de sua própria filha, o protagonista de “Cargo” (2018), de Ben Howling e Yolanda Ramke, corre contra o tempo a fim de manter a salvo a pequena. Esses e mais oito títulos, lançados entre 2021 e 2014, todos no acervo da Netflix e com alguns prêmios na algibeira, não merecem ser relegados ao ostracismo. Quem não viu tem que ver.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

Bob Ross (1942-1995) era dono de farta cabeleira de indomáveis fios crespos, timbre de voz de quem acabara de ser visitado por uma legião de querubins, talento indizível para as artes plásticas e o indefectível carisma, que o catapultou ao estrelato na televisão americana. Pelo desdobramento do nome do documentário que faz menção a seu nome e presta uma homenagem muito devida à sua figura, se constata que a vida para Ross, apesar de sem maiores sobressaltos, não fora um mar de rosas. Depois de sua morte, em 1995, devido a um câncer linfático, o espólio de Bob Ross foi alvo de uma intensa batalha judicial entre seus parentes e Annette Kowalski, ex-empresária do artista.

Se existe alguém que aproveitou o confinamento obrigatório por causa da pandemia de covid-19, desde março de 2020, essa pessoa chama-se Bo Burnham. O comediante se valeu justo da falta de interação com o público a fim de desenvolver novas técnicas e novos propósitos para a carreira. Em cartaz desde maio na Netflix, a comédia musical com DNA de documentário tem sido aclamada por crítica e espectadores graças à originalidade. Artista multitalentoso, Burnham dirigiu “Oitava Série” (2018) e está no elenco de apoio de “Bela Vingança” (2020), vencedor do Oscar de Melhor Roteiro Original de 2021.

Andy foi mordido por um zumbi e agora está infectado por um vírus mortal. Ele tenta desesperadamente salvar a filha Rosie do mesmo destino e, para tanto, tem apenas 48 horas para encontrar um lugar seguro e assim garantir a vida da menina. A solução talvez seja ir para uma tribo aborígene isolada, mas para poderem ser incorporados ao grupo, ele terá que ajudar uma jovem indígena a vencer um perigoso desafio. Apesar de este ser um filme de zumbis, o roteiro vai mais além e aborda questões não muito assíduas do gênero, como compaixão, perseverança e fé. Andy é o típico herói de tramas desse filão, carismático, confiante e disposto a sacrifícios sobre-humanos quando a vida de quem ama está em jogo.

A partir de 1973, é instaurada uma ditatura civil-militar no Uruguai que se estende até 1985. José “Pepe” Mujica, Mauricio Rosencof e Eleuterio Fernández Huidobro, militantes dos Tupamaros, guerrilha de orientação marxista-leninista, passam a se destacar em ações como roubos a banco e logo são vistos como uma espécie de santos rebeldes, por distribuírem o espólio entre os mais humildes. As forças de repressão fecham o cerco e os três são capturados e levados a uma das unidades para confinamento de revoltosos, onde estão outros nove colegas, sem que seja possível a comunicação entre eles. Os anos se sucedem enquanto o grupo tenta não se entregar à sensação de alheamento. A espera leva 12 anos para acabar e um quarto de século depois, Mujica, aos 75 anos, é eleito presidente do Uruguai.

Às vezes, os astros convergem, o universo conspira a favor e o cinéfilo, especialmente o que se dedica a cascavilhar filmes no campo árido do mundo digital, se depara com algumas boas surpresas. “Divinas”, da neófita Houda Benyamina, passa batido do grande público, apesar de ter vencido o prêmio de Melhor Filme de Diretor Estreante em Cannes. Merecidamente, a produção teve o fôlego renovado ao ser indicada ao Globo de Ouro, como Melhor Filme Estrangeiro de 2016. “Divinas” parece uma releitura de “Cidade de Deus” (2002), de Fernando Meirelles, ao retratar pessoas com uma origem em comum, mas que optam — e perseguem — uma trajetória distinta. Em “Divinas”, há Djigui, o garoto que não se seduz pela vida nem tão fácil do tráfico e se torna um artista, como o Buscapé do longa brasileiro, mas há também Dounia, que aspira à vida de crime e ostentação, à medida que convive com Rebecca, traficante já estabelecida no gueto em que vivem. É claro que a protagonista não tem a mais pálida ideia do que seja viver do tráfico, dos perigos a que se sujeitaria, de que pode se dar mal, muito mal, e que viver à margem da lei é, geralmente, um caminho para o qual não há retorno. Numa conjunção perfeita de roteiro, trabalho de atores, direção, montagem e trilha sonora, Houda Benyamina constrói cenas de impacto, ainda que sutis, e mesmo leves, explorando recursos aos quais o cinema já recorreu infinitas vezes, mas sempre de um ponto de vista inegavelmente original. Como a própria condição humana, “Divinas” é complexo, é denso. Onde floresce a desdita, transborda a graça.

Depois de um grave acidente de carro, uma jovem acorda no porão de um desconhecido. O homem diz tê-la salvado de um ataque químico que arrasou todo o mundo, o que a obriga a ficar isolada com ele. A garota não acredita na história e tenta se libertar, mas isso implicaria em experimentar situação muito mais perigosa do que permanecer refém de quem a teria ajudado a escapar da morte. Cada vez mais confusa, ela tem de decidir se sua liberdade vale tamanho risco.

Em “Sicario: Terra de Ninguém”, continuação do aclamado “Sicario: Dia de Soldado”, o diretor Denis Villeneuve, como sempre, deixa sua marca: um filme de acordes vibrantes, seja pendendo para o suspense clássico, seja o misturando ao terror e dando matizes mais pronunciados a este. O soberbo roteiro de Taylor Sheridan conta a história de Kate Macer, agente do FBI escalada para uma força-tarefa a fim de deter o mandachuva do tráfico no México, que administra um poderoso cartel. A operação está envolta em uma densa névoa de mistério, conduzida por policiais de conduta duvidosa, e é em meio a este cenário que Kate terá que combater o sangrento tráfico internacional de drogas, sem se deixar esmorecer nem se seduzir por ele.

Graças aos costumes atrasados de sua fé, Jalila está ocupada com os preparativos do casamento de seu marido com outra esposa. Está humilhada, mas não se importa: para ela, a vida resta perdida mesmo e não há mais margem para reparação — o que a apavora é que a filha tenha o mesmo destino. Layla está apaixonada por Anuar, membro de outra tribo, o que a aflige e enfurece o pai que, temendo a má reputação do clã, quer vê-la casada o mais depressa possível com um integrante do mesmo grupo. Agora, Jalila se divide entre os princípios de uma fé em que no fundo não acredita mais e a felicidade da filha, ameaçada para sempre.

Depois de sangrar por causa de quatro fracassos de bilheteria recentes, em “Aliança do Crime” Johnny Depp volta aos áureos tempos de “Edward Mãos de Tesoura” (1990) e “Sweeney Todd — O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet” (2007), ambos dirigidos por Tim Burton — este último responsável por uma indicação ao Oscar, a de número três ao longo da carreira. Aqui, Depp é Whitey Bulger, irmão de um senador americano e um dos bandidos mais infames do estado de Massachusetts. Bulger começara como agente duplo do FBI, atuando no combate a uma família de gângsters, mas cai em desgraça e logo se vê caçado por mafiosos e pelos federais.

Crítica social às religiões, em “PK” Rajkumar Hirani mostra a Índia como ela é: imensa, revoltantemente estratificada, caótica. O país é tão pantagruélico que abriga hindus, muçulmanos, budistas, cristãos, todos fiéis, todos crentes num Deus e nas esperanças que Ele suscita no homem por meio da observação de Suas regras. Na Índia, a despeito de uma população de cerca de 1,4 bilhão de habitantes, a porcentagem de quem ou não acredita em Deus — os ateus — ou não consegue acreditar — os agnósticos — é irrisória. Hirani aborda a dúvida teológica a partir da chegada de um alienígena que, atônito frente ao que considera uma pletora de contradições, não entende a razoabilidade de se valorizar o que não se vê em detrimento daqueles em quem se tropeça pelas ruas. Deus está nos detalhes e, destarte, na sutileza. Quem não entende isso é mesmo incapaz de acreditar, em Deus ou em qualquer outra coisa.