A intuição de uma mulher pode, literalmente, mover montanhas. Ou quase. O passado e seus mistérios, vindos à luz graças ao processo de reviramento de uma vasta área de terra, são os verdadeiros protagonistas da trama enigmática de “A Escavação”, lançada em 2021 e dirigida pelo australiano Simon Stone, baseada no romance “The Dig”, publicado em 2007, do escritor e jornalista John Preston.
Edith Pretty encarna toda a delicadeza e poesia do filme. Edith, vivida com a dignidade que o papel exige por Carey Mulligan, é uma curiosa sobre assuntos que envolvem a doutrina espírita. A dona do terreno enviuvara há pouco, passa a criar sozinha o filho Robert e passa por um momento em que se faz necessário rever sua vida até então. O instinto lhe sopra que existe alguma coisa a mais sob o chão que pisa e que o destino pode estar lhe preparando uma surpresa.
Com a morte do marido, Edith toma coragem e embarca naquela que se vai revelar a maior aventura de sua vida. Está convicta de que realmente há algo a ser descoberto no solo da propriedade que Frank lhe deixara — e é aí que Basil Brown cruza o seu caminho. Brown, um arqueólogo diletante e autodidata, já se dedicava a xeretar os domínios da viúva, que acaba persuadida a autorizar que ele comece a revolver a terra em busca de indícios da presença da civilização viking na Inglaterra, conforme Brown, também se valendo apenas de elucubrações irracionais, concluíra.
O argumento da morte em “A Escavação” é explorado laboriosamente por Stone. Resta claro que o passamento de Frank não fora digerido a contento por Edith, que parece ainda estar casada, tamanha a influência que o finado exerce sobre ela. Eram um casal feliz, sem dúvida, mas Edith, apesar da leitura religiosa, sutil, que se pode devotar ao personagem, continua patologicamente aferrada ao marido, o que se constitui uma incoerência do roteiro, ainda que o todo fique preservado. A escavação para Edith se apresenta como o pretexto irretocável a fim de dar rumo novo à sua história. A ideia de tesouros enterrados, escondidos, obscuros, é a metáfora perfeita a fim de se esmiuçar as dores de uma mulher solitária, que já se resignava a simplesmente levantar da cama e ser um apêndice do filho, a única pessoa que lhe sobrara no mundo, mas que de súbito é sacudida por um ímpeto qualquer e reage.
Os trabalhos têm início e Basil, sozinho, acha três sepulcros num pequeno monte de terra. Cada vez mais absorvido pelas descobertas, Basil escava uma gleba maior e encontra o que fora um navio-fantasma, usado para armazenar junto com o féretro do rei Raedwald, morto, ao que indicam as pesquisas mais recentes, em 624, ainda durante o Império Bizantino (395-1453), miudezas e todo o séquito do monarca, que ia com ele para o além-vida — ainda que a natureza não lhes houvesse chamado até então. O hábito macabro remete de pronto aos costumes dos antigos faraós egípcios, pelo menos três mil anos antes de Cristo, e não por acaso Raedwald se faz conhecer pela alcunha de “o Tutancâmon britânico”. O déspota, que se dizia parte da descendência de Odin, deus da mitologia nórdica, se convertera ao cristianismo, o primeiro rei inglês a tomar tal decisão — e ainda hoje são raras as ocorrências de conversões públicas de britânicos à fé cristã, casos do ensaísta Gilbert Keith Chesterton (1874-1936) e do ex-primeiro-ministro Tony Blair —, mas, muito pragmático, seguia intrinsecamente vinculado aos rituais das divindades pagãs. Posteriormente, análises sobre o comportamento metódico de Raedwald permitiram aos historiadores defender que os anglo-saxões, ao contrário do que se pensava, eram uma sociedade estabelecida, que observava preceitos quanto à distinção entre o público e o íntimo, por exemplo, removendo a nódoa de um quase irrefreável barbarismo dos ingleses, supostamente filhos da Idade das Trevas.
Dois seres, cada qual a seu modo, à procura de aceitação, Edith e Basil lidam com seus fantasmas à medida que a escavação se adianta. A aristocrática Edith, não refeita da morte do marido, se descobre ela mesma com uma doença terminal, e lhe a assalta a culpa. Começa uma especulação dolorosa sobre se não teria responsabilidade acerca do novo estado, arrasada pela separação compulsória — e definitiva — do companheiro. A psicanálise até o momento apenas arriscava seus primeiros passos, às vésperas de mais uma morte, a de seu principal divulgador, Sigmund Freud (1856-1939), justo no primeiro ano da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), que já se avizinhava, portanto, mas o filme levanta a hipótese da somatização da perda, ou seja, Edith poderia ter atraído para si a enfermidade que vai matá-la, a fim de se reaproximar de Frank; no entanto, seu esforço é perverso, uma vez que Robert vai acabar, em tenra idade, completamente desamparado. No que diz respeito a Basil, seu empenho não é valorizado e, pior, é negado até: por não ter formação acadêmica, é forçado a deixar as buscas, mesmo que seja o mais habilitado a conduzir a pesquisa. Um reconhece o sofrimento do outro, um se identifica no outro. Registro da ternura que só o cinema é capaz de fazer.
Ninguém vence a morte — malgrado sua vitória não faça o menor sentido —, mas por meio de como se escolhe passar pelo mundo, pode-se perder de cabeça erguida. Viver vai muito além da superfície.
Filme: A Escavação
Direção: Simon Stone
Ano: 2021
Gênero: Drama
Nota: 9/10