Ela estava comendo um pastel e vendo a vida passar. Seu ônibus sairia em uma hora e até lá ela poderia comer mais algumas coisas e fazer outra coisa que gostava muito: criar scripts para a vida das pessoas que ela observava. Rodoviárias, aeroportos e metrôs eram seus ambientes favoritos para devanear sobre a história, sobre as dores e os amores daqueles desconhecidos, cujas faces ela encarava tentando ser sutil.
Dentre todas as coisas que ela poderia estar fazendo na vida agora, a última delas seria malhar. Primeiro porque ela odiava e segundo porque a lista de coisas a serem feitas antes de morrer nunca incluem malhar. Até gostava dessa nova moda de correr porque correr implica em ir aos parques, ver paisagens, viajar (para correr), ver e fazer novos amigos (que correm junto). Essa ideia de correr ter virado moda é boa mesmo, mas também não serve para quem gosta de comer pasteis.
Na lista de prioridades dela, antes de malhar vinham ler, ouvir música, brincar com o filho, organizar o armário da cozinha, ir ao supermercado e comer muitos pastéis enquanto olha pessoas e fica imaginando scripts para a vida delas. Vinha também viajar e voltar a tocar piano.
Antes de malhar ela precisava de dinheiro para pagar uma babá para ficar com o filho e poder ir ao teatro e a todos os bares que ainda não foi, não só para experimentar os pastéis, mas também a caipirinha, a cerveja e ouvir o som ao vivo enquanto blasfema porque mais um músico brilhante, toca anônimo nesse país.
Se fosse malhar na academia, seria para conversar, para fazer amizades superficiais só para burlar o treino e pular as séries. Ficaria devaneando e disseminando as suas teorias sobre a barriga de tanquinho, acabaria com a esperança dos rapazes ao provar que só se consegue aqueles gomos carregando sacos de cimento. Colocaria medo em todos que usam suplementos, diria que sobrecarregam os rins e o fígado, faria terrorismo sobre morte precoce pelo aumento do metabolismo — enfim, acabaria com aquela instituição malévola que afasta as pessoas dos livros, da boa música e das tardes no sofá comendo pipoca.
Nem a sessão da tarde se assiste mais. E se Renato Russo desdenhou do Eduardo dizendo que ele “ainda estava no esquema escola, cinema, clube, televisão”, hoje ele seria considerado um nerd.
Ela poderia estar malhando, mas continua comendo o pastel, esperando o ônibus e vendo até onde seus pensamentos vão chegar. Serão duas horas dentro do ônibus e então talvez ela suba a pé até a sua casa e isso pode muito bem valer como malhação para os glúteos. Talvez ela pudesse ser menos preconceituosa e começar a nadar, e continuar devaneando enquanto faz o mais completo, eficaz e politicamente correto exercício físico já “inventado” pela humanidade.
Eis que seus devaneios são interrompidos pela moça que passa “com graça fazendo pirraça”. Ela saíra do quiosque onde trabalha e foi em direção ao outro pedir troco à colega. Deu para ouvir a rápida conversa delas e então ela volta, e passa novamente exibindo o corpo perfeito que tiraria o sossego de qualquer rata de academia, um corpo que poderia ter sido feito á base da tal malhação, mas não, ela não malha. Ela talvez nunca tenha pisado numa academia, apesar de aparentar já ter quase trinta anos. No script ela acorda cedo, pega um trem e um metrô até chegar ao trabalho na estação rodoviária, passa o dia todo em pé e enfrenta a mesma lotação de volta para a casa dentro do transporte público. Ela não se alimenta de frango com batata doce e nem toma suplemento algum. Deve se entupir de carboidrato simples depois das seis da tarde e nunca fez uma drenagem linfática na vida.
Mas naquela história, criada ali na rodoviária, pela devoradora de pastel, e na visão de qualquer um, ela tem o corpo da Venus de Milo, e nenhuma malhação é capaz de esculpir tamanha perfeição. Então ao conseguir álibi para comer mais um pastel e um donnut de doce de leite, vendido no quiosque da mulata escultural, ela caminha e pergunta se a moça tem filhos, e ouve um sim, para acabar de vez com a graça de quem malha, de quem come e de quem quase perde o ônibus por ser dada a devaneios.