A vida só é possível graças a um encadeamento de sinapses. Uma célula nervosa transmite à outra as informações de que o corpo necessita a fim de continuar sadio, se temos de comer, nos hidratar, ir ao banheiro, dormir, o que qualquer pessoa normal faz. Hábitos nocivos à manutenção do bem-estar do organismo, como o consumo excessivo de álcool, gorduras trans, frituras, açúcar refinado, cafeína, sal em demasia, o tabagismo, o uso de drogas em geral, a falta de atividades físicas, tudo isso, além do famigerado estresse, claro, contribuem para minar a saúde, inclusive a mental. Motivos para nos fazer perder a linha, soltar os cachorros no primeiro que aparece, chutar o pau da barraca — e ficar ao relento — é o que não falta na vida moderna nossa de todo santo dia, cada vez mais atravessada de tensão, apuros de dinheiro, doença… É difícil conservar a mente sã diante de tanta preocupação, tanta ansiedade, tanto conflito. Nos últimos 70 anos, desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o homem ficou viciado na comodidade venenosa de habitar os grandes centros, cada vez mais atolado de trabalho e, por conseguinte, cada vez mais enfastiado, desapontado, infeliz. E vício é a palavra exata para descrever a sinuca de bico das emoções humanas do ponto de vista biológico. O homem não suporta ficar indisposto, refém das descompensações químicas que ele mesmo fomenta. Qual a solução, rápida, por que não há tempo a se desperdiçar? Antidepressivos, ansiolíticos, sedativos… e o ciclo recomeça. Às vezes, a sensação de nó na garganta só se dissipa com a ajuda da medicina, mas na maior parte dos casos, há muitas outras saídas antes de se entregar aos tarjas-pretas da vida. Já pensou em ir a um lugar em que todo mundo tem o mesmo mal que você, discutir ali os seus problemas, ainda que o terapeuta falte? É o que fazem os personagens de “Toc Toc” (2017), do diretor espanhol Vicente Villanueva. Mas se nem na hora de relaxar você consegue se desconectar do batidão e olha para o relógio de meio em meio minuto, o roteiro enxuto, mas cheio de dados interessantes de “Polícia e Ladrão” (2020), de Arnon Manor e Timothy Ware-Hill, curtíssima de sete minutos, sobre racismo e intolerância policial contra pessoas negras, é a melhor pedida. Esses e mais cinco títulos, todos no acervo da Netflix, aliviam o cansaço da semana ao passo que igualmente nos fazem refletir sobre a própria fadiga, seja de que natureza for. É melhor assistir a algum deles que baixar hospital, vítima de um faniquito qualquer, concorda?
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

Ao participar de um cruzeiro que se desloca pela Patagônia, um tripulante acha um portal mágico sob o convés. A misteriosa passagem abre caminho para o apartamento de uma garota. Ao mesmo tempo, alguns homens tropeçam numa cabana nas Filipinas, o que deixa parte dos moradores assustados. As duas narrativas se ligam por meio de um labirinto, com gente que se perde de si e de seu mundo. Uns com estilo de vida tradicional, voltado ao consumo inteligente, e outros vivendo — e comprando — como se não houvesse amanhã, os dois grupos geram curiosidade sobre a forma como se relacionam com o mundo ao seu redor.

Apesar dos pouco menos de oito minutos, “Polícia e Ladrão” é um filme muito bem planejado. Os diretores Arnon Manor e Timothy Ware-Hill convidaram vários artistas a fim de desenvolver o conceito do curta-metragem, o que resulta numa produção rica esteticamente, sem prejuízo da mensagem, muito pelo contrário. Ao falar de intolerância racial por parte de agentes da lei nos Estados Unidos usando a linguagem escolhida, o curta parece ter a pretensão de chegar a diferentes públicos, dando preferência aos mais jovens. Aliás, um dos pontos fracos da narrativa decerto é ficar apenas no que ocorre na América, quando o tema é universal, ainda que velado em muitos casos.

O Mötley Crüe, uma das bandas mais autênticas do cenário roqueiro, deu cara e voz a adolescentes esquisitos e insubordinados como seus integrantes, Nikki Sixx, Vince Neil, Mick Mars e Tommy Lee, considerados meio chorões e afrescalhados, mesmo por outros músicos do gênero, mas que no palco se tornavam gigantes. O quarteto foi ao ápice do sucesso entre o final dos anos 1980 e meados da década de 1990, quando começaram a se deixar abater pela falta de disciplina e profissionalismo, além, por óbvio, de muita bebida, cocaína e drogas injetáveis. O Mötley Crüe encerrou a carreira definitivamente em 31 de dezembro de 2015.

A diretora americana Debra Granik é hábil em retratar adolescentes em meio ao bombardeio dos tantos conflitos típicos da idade. Em “Sem Rastros”, Granik traz a história de Will e Tom, pai e filha. Os dois são os únicos moradores de uma grande reserva florestal nos limites de Portland, e não têm o menor problema com o isolamento, questionado pelas autoridades — que nunca se importaram com eles. O serviço social os obriga a deixar a área, e agora Will e Tom passam a ser tutelados pelo governo dos Estados Unidos. Eles não se conformam com tanta interferência num assunto íntimo e tentam retornar à vida feliz que tinham, driblando as novas necessidades que as circunstâncias os impõem.

Se o atraso de um médico é capaz de provocar tensão entre pessoas ditas normais, quando se trata de gente com um parafuso a menos a situação resvala para a iminência de um verdadeiro pandemônio. A trama aparentemente banal de um grupo de pacientes com transtorno obsessivo compulsivo (TOC) que aguarda a chegada do psicoterapeuta que os atende tem o condão de revelar as muitas misérias do homem, perdido no mundo em busca de autoconhecimento, sem ser enfadonha, pelo contrário. Enquanto esperam, os pacientes passam o tempo falando sobre o dia a dia nada normal de cada um, se examinam entre si, avaliam quem está melhor ou pior e fazem força para tolerar as loucuras um do outro, sem saber por quanto tempo vão conseguir aguentar esse verdadeiro tormento. Mesmo o espectador mais certinho se reconhece neles em alguma medida, toma o lugar do analista e começa a também perscrutá-los, no intuito de avaliar suas possíveis pequenas insanidades.

Em “O Mundo como Vontade e Representação”, publicado em 1818, o filósofo polonês Arthur Schopenhauer (1788-1860), defendia a ideia da vida sob a forma de uma vontade de vida, isto é, a vida seria uma mera prospecção do homem acerca de seus desejos mais obscuros. O homem não sabe querer, pois ao querer já espalha destruição por todo lado, e, portanto, há que se negar toda vontade, mesmo (ou em especial) as que, aparentemente, possam induzir a supostas boas intenções. Depois de um discurso o seu tanto ácido na cerimônia da entrega do Prêmio Nobel de Literatura, com o qual é agraciado, Daniel Mantovani, um bem-sucedido escritor que saíra de Salas, na Argentina, onde nascera e vivera até os 20 anos e fora viver em Barcelona, na Espanha, começa a sentir os efeitos autodestrutivos de sua sinceridade indomável. Os compromissos mais importantes são cancelados, sobra um ou outro simpósio ou palestra menos insignificante, e uma série de homenagens que o prefeito de Salas, justamente de Salas, houve por bem lhe dedicar. Daniel não está à beira da falência ou passando algum apuro de dinheiro, não se trata disso: o que o move é um misto de vaidade — porque, como ele mesmo reconhece, um escritor é feito de pena, papel e vaidade —; orgulho por, depois de haver desdenhado do Nobel, sua cidadezinha ter se lembrado dele; e, quem sabe, alguma condescendência. Por mais que tenha vivido os últimos 40 anos dizendo a si mesmo que seu passado o incomodava, de maneira consciente ou não embarca para a Argentina, sequioso por reencontrar esse passado. E o passado de fato permanece lá, mas diferente, como ele próprio. Como se Salas tivesse dedicado quatro décadas a fim de arquitetar uma vingança contra o filho ilustre, mas soberbo, uma sucessão de eventos começa a se abater sobre Daniel, primeiro apenas vexatórios. O constrangimento logo cede lugar a situações que exigem dele posições mais duras, como artista e como indivíduo. O escritor é impingido a tomar parte em diversas polêmicas, ainda que involuntariamente em algumas circunstâncias, e sua permanência na cidade natal se torna insustentável. O sermão (mais um) com que ataca as “autoridades” salenses, inclusive um autoproclamado artista plástico, presidente de uma associação de classe, que manipula o resultado de um certame de pintura que recusara seu quadro a fim de ser um dos vencedores, é, já faltando pouco mais de vinte minutos para o encerramento, o ápice do enredo. Sua forma de compreender a política, a arte, a cultura — palavra que lhe provoca asco —, são lições de vida para qualquer um, a despeito da época em que se esteja, num roteiro que não demanda nem o mínimo retoque. No surpreendente final, a pergunta que resta nas cabeças e nas bocas é: que diabos ele foi fazer lá? Mas a conclusão é óbvia e vem de imediato. Valeu a pena.

Relações estabelecidas à custa de uma necessidade qualquer são dotadas de uma complexidade especial, e tanto pior se um dos lados se mostra particularmente inacessível, avesso a aproximações mais de perto, tomado por seus sonhos defuntos. Quando um ex-jogador de futebol vai morar num dos apartamentos de um edifício bastante peculiar, romances começam a sair da alcova, mistérios insuspeitos — e insepultos — vem à lume e, claro, o caos se instala de vez.