Guerras se tornam filmes e filmes de guerra acabam virando a própria guerra. Leslie Norman (1911-1933) era um diretor obstinado. Em 1958, “A Epopeia de Dunquerque”, história sobre a retirada dos soldados britânicos da costa francesa depois que o comandante dos últimos guerreiros é morto, exalta o patriotismo de militares, lutando até a derradeira gota de sangue contra o exército de Adolf Hitler (1889-1945), que os encurralara, e civis, que deixavam o litoral inglês rumo a Dunquerque a fim de resgatar as tropas e seu moral. O britânico imprime a seu filme uma atmosfera de heroísmo, da qual se abstrai que o Corpo Expedicionário Britânico, malgrado a humilhação de se ver forçado a desertar, ainda teria de ser considerado um bastião de honra e virtude, por conservar a aura de esperança de toda uma nação.
Christopher Nolan também é um homem obstinado. O responsável por levar às telas excelências do calibre de “O Cavaleiro das Trevas” e “Interestelar”, para nos atermos só aos filmes de ação, parte do mesmo argumento, mas na direção oposta. Em “Dunkirk”, Nolan, igualmente oriundo do Reino Unido, aborda a saída dos quase 340 mil combatentes britânicos e franceses pelas praias de Dunquerque, em meados de 1940, graças à frota da Marinha e barcos domésticos, de pesca e usado para fins de lazer. Hitler e sua loucura avançavam, mas por alguma razão que historiador nenhum conseguiu ainda desvendar, o facínora mandara seus homens interromperem a ofensiva, tomado de possível delírio quanto a um armistício por completo infundado. O diretor emprega em “Dunkirk” o máximo de silêncio de consegue — o que poderia se constituir um paradoxo, visto ser este um enredo de guerra. Os tiros, gritos, aviões que rasgam o céu estão todos lá, mas os soldados, aqueles travam uma guerra já desvanecida, imaginária, perdida, falam o mínimo que conseguem, como se também o espectador os julgasse. Os integrantes das forças britânica e francesa aparecem em boa parte das sequências amuados, curvados, vítimas de uma subjugação que pensam não merecer. É quando cai a ficha e a vontade de largar aquela encenação toda cala mais fundo. Se algum herói em “Dunkirk” é por puro capricho da vida.
Outra vez contrastando com o olhar do veterano Leslie Norman, Christopher Nolan conta a história se valendo de um personagem que encarna não um indivíduo de carne e osso, corpo e alma, cioso de suas obrigações no campo de batalha, mas de um tipo que incorpora o zeitgeist, o espírito do tempo tal como ele se apresenta. O fio condutor do roteiro cabe ao soldado Tommy, por cuja boca fala o pelotão inteiro, cada vez mais desacoroçoado. As inúmeras tomadas nas franjas do mar, no céu e no navio que irá servir como o principal meio de transporte aos militares — amontoados uns sobre os outros, feito se viu quando da evacuação de cidadãos americanos e alguns afegãos depois da vitória do Talibã no Afeganistão, em agosto de 2021 —, são um achado, e vêm à guisa de respiro diante do caos e da carnificina que ainda imperam. Se Nolan dá alguma colher de chá aos compatriotas, é ao ocultar da narrativa os oficiais germânicos o mais que pode, preferindo se compenetrar mesmo na miséria a que os ingleses já haviam se condenado por si sós. Também não existe em “Dunkirk” as alusões sanguíneas do gore de pernas e braços voando pelos ares, como em outras fitas do gênero, caso de “Até o Último Homem” (2016), de Mel Gibson, por exemplo, e ainda tomando por referência o trabalho de Gibson, não há no filme de Nolan a “covardia” santa de um Desmond T. Doss. Em “Dunkirk”, o pânico dos homens é tibieza mesmo, sem adjetivos. Não há nada mais a fazer a não ser se resignar, enfiar o rabo entre as pernas e tentar se desvencilhar daquele inferno de desonra o quanto antes.
A despeito do orçamento de 150 milhões de euros, cerca de 566 milhões de reais, Nolan se estabeleceu a meta de recorrer a efeitos especiais apenas quando estritamente necessário, e que sábia decisão! Coalhado de aviões e barcos reais, e mesmo alguns originais da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), além de 60 navios ao mesmo tempo. A propósito de grana, o diretor reivindicou (e conseguiu) um dos maiores salários de Hollywood enquanto rodava o filme, 20 milhões de euros, ou 75 milhões de reais, e ainda abocanhou 20% dos 284 milhões de euros, o que equivale a 1,07 bilhão de reais, das bilheterias, isto é, embolsou como gratificação quase 60 milhões de euros, aproximadamente 230 milhões de reais. A guerra é divertida.
A opção por atores praticamente desconhecidos para os tantos papéis da história, a exemplo de Harry Styles, ex-vocalista de uma finada boy band, é outra aposta que Christopher Nolan também consegue bancar, pelo acerto quanto a se reforçar o anonimato e a desimportância que recaíram sobre a soldadesca, que não se anima nem mesmo com a famosa evocação do primeiro-ministro Winston Churchill (1874-1965). Churchill, dessa vez, não devia saber o que estava dizendo ou, por ser político — e dos mais tarimbados —, sabia, e o disse assim mesmo. Só em Dunquerque, foram 70 mil mortos, além dos feridos e dos que restaram prisioneiros de Hitler — de muitos desses, nunca mais se soube nada. A guerra é divertida.