O nascimento da América Latina da forma como a concebemos é recente. A política externa de Napoleão III (1808-1873) visava ao estabelecimento de um reino na região setentrional do continente, no México, para se usar a maior exatidão possível. Designaria para comandar o futuro império, a partir de 1864, o arquiduque Maximiliano, da Áustria. O líder, sobrinho e herdeiro do homem que já fora o mais poderoso sobre a Terra, detentor de governos autocráticos em vários países ao redor do globo, fracassara. Em 1867, uma rebelião chefiada por Benito Juarez, tratou de deixar claro que os locais não acatariam interferências do Velho Mundo, e o candidato a tirano terminou abatido por balas de fuzil. A ideia de um vastíssimo território que abrangeria todos os países de língua derivada do latim, do México à Patagônia, não fenecera com a morte de Maximiliano. O segmento mais austral do torrão é, decerto, o que melhor representa a diversidade étnica, cultural e artística latino-americana. A América do Sul foi se firmando como um manancial de intelectuais e artistas mundo afora, autores respeitados, cuja obra ecoa junto aos demais pensadores e consegue a proeza admirável de chegar ao grande público. Segundo “Formação da Literatura Brasileira”, obra clássica em que o crítico Antonio Candido (1918-2017), carioca radicado em São Paulo, disserta sobre o que de mais relevante acontecera nas belas letras do Brasil, a produção de literatura de modo regular remete aos árcades dos 1700 e tomara corpo mesmo a partir das publicações dos românticos, já no decorrer dos anos 1850. A evidência incontestável de que a literatura pátria se revestia, enfim, de uma natureza própria, genuinamente sua, e, de pouco em pouco, evitava macaquear estilismos doutras terras é “Instinto de Nacionalidade”, ensaio publicado em 1873, no qual Machado de Assis (1839-1908), determina os vínculos e os cismas que envolviam os autores brasileiros dos séculos 18 e 19. Os livros brasileiros começaram a correr mundo, por óbvio, muito tempo depois, graças, em alguma medida, a processos sociológicos de fundo também econômico, como a globalização, que trouxe em seu bojo o interesse cada vez maior pelo que se passava nos países periféricos. Os textos vertidos para um idioma que não o original sempre perdem alguma coisa, conforme atesta Rubens Figueiredo, respaldado por Boris Schnaiderman (1917-2016), um dos maiores no ofício. Em toda a América do Sul, se destacam escritores prestigiados por leitores que praticam em seu cotidiano outras línguas além do espanhol e o português. A saga dos Buendía, família antes rica e influente que se vai fragmentando e resta insignificante como qualquer outra, contada em “Cem Anos de Solidão”, de 1967, pelo colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), prêmio Nobel de Literatura de 1982, é dessas tramas que se eternizaram no inconsciente coletivo da humanidade em 36 versões. Um prostíbulo, inaugurado por um tal Don Anselmo, despertou a atenção de gente interessada por literatura de todo o planeta, graças ao talento do escritor peruano Mario Vargas Llosa em “A Casa Verde”, vindo à lume em 1966. Esses e outros nove títulos foram os livros que mais contam com traduções, segundo levantamento da Preply Inc., plataforma que localiza transcrições de obras no universo digital. Nada substitui o prazer de se fruir uma leitura do mesmo modo como foi pensada, mas como é impossível se compreender todos os signos linguísticos, a transposição literária é essencial.
Argentina

Um Borges atormentado, às raias da loucura, é o narrador-personagem em “O Aleph”. O protagonista adquirira o hábito de visitar a casa de Beatriz, a mulher que amava — e já morta — no dia de seus anos, costume que se arrasta no tempo. Num desses encontros, para os quais sempre tem de se convidar, sabe por um primo de Beatriz que o imóvel será colocado no chão. O sujeito, que também ganha a vida escrevendo, confidencia a Borges que no porão há um mistério. O autor desce, e ao chegar ao décimo nono degrau, acha uma esfera, no interior da qual se insere o mundo inteiro. Borges, cego, é capaz de viajar para onde quiser fitando o Aleph por dentro: cidades, espelhos, pessoas, tudo ao mesmo tempo. Pensa ter enlouquecido de vez, mas esquece tudo o que vivenciara, e, de novo, fica surpreso. Existiriam mesmo alephs espalhados por toda parte, à espera de quem os desvendem?
Brasil

Santiago, um jovem pastor da Andaluzia, tem sonhos recorrentes com as pirâmides e resolve viajar ao Egito. No caminho, precisa lidar com situações difíceis, conforme encontra três personagens essenciais na narrativa: um rei, um homem inglês e uma mulher que vive no deserto. Em chegando a um oásis, é apresentado ao alquimista daquela terra, responsável por conduzir seu destino e ensiná-lo a se comunicar. Ao longo da trama, Santiago parece andar pelo mundo inteiro, sem jamais se render ao cansaço, encarniçado em seus objetivos, ao que regressa ao lugar de origem de sua trajetória. Seu vaivém existencial, entretanto, não o impede de evoluir, fato de que se dá conta ao se postar diante da igreja em que tinha se imaginado de passagem pelo Egito.
Chile

“2666”, o canto do cisne do escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003) e seu melhor trabalho, foi publicado postumamente, um ano depois de sua morte, em 2004. Bolaño tinha em mente que os tomos da novela chegassem às livrarias em cinco livros, o que Jorge Herralde, o editor, e Ignacio Echevarría, seu testamenteiro literário, julgaram uma temeridade. Felizmente, não foi necessário. A história oscila em torno de Benno von Archimboldi, escritor desaparecido que suscita uma reunião de críticos em que ele é a figura central. A partir de então, um quadrângulo amoroso se fecha entre eles, velhos conhecidos de congressos e eventos afins, e vem à cena o passeio a Santa Teresa, no México, onde mulheres são mortas. Na vizinha Ciudad Juárez também acontecem crimes hediondos, segundo pesquisa do jornalista mexicano Sergio González. Ao se deslocarem rumo a Santa Teresa, os críticos observam uma contradição: a cidadezinha é pacata, conforme enuncia a epígrafe de Charles Baudelaire (1821-1867) no início da publicação, mas, ao mesmo tempo, violenta. Como a vida.
Colômbia

A América Latina no divã de um escritor sul-americano, que disseca o subcontinente à luz de uma família, habitante de um povoado perdido no nada e no tempo. Só se compreende “Cem Anos de Solidão” se se entender os Buendía e sua numerosa prole. Por meio dela, o leitor torna-se capaz de concluir, com a ajuda do texto fluido de Gabriel García Márquez, repleto de períodos caudalosos, o que era viver num lugarejo pelo qual ninguém se interessava, isolado, atrasado, violento, exatamente como seu prócer maior, o coronel Aureliano Buendía, anti-herói das perdidas ilusões, tão próximo da alma da cidadela de Macondo, essa ilha dentro da ilha dentro da ilha, com seus golpes, revoluções, tudo tão sem razão de ser e tão falso. Dom Quixote colombiano, o coronel Aureliano Buendía, trava batalhas contra inimigos que só ele vê, no mundo mágico — e solitário — de Márquez.
Equador

Escritor fundamental da literatura e da história equatorianas, Jorge Icaza (1906-1978) é autor de novelas e peças de teatro, publicadas e encenadas entre 1931 e 1972. Crítico ao poder em “El Dictador” (1933), o livro implicou em audiência pouco satisfatória, cenário que Icaza reverte no ano seguinte com “Huasipungo”, que lhe assegura prestígio mundial graças à tradução para diversos idiomas. “Huasipungo”, palavra indígena para “lar”, remete à vida na povoação de Cuchitambo, no Equador, habitada por índios, como Andrés, e latifundiários, caso de Alfonso Pereira. O primeiro é conhecido dos lavradores de matriz pré-colombiana; já Alfonso Pereira é o homem branco que emprega os índios e os explora sem qualquer pejo, perpetuando o ciclo de barbáries começado ainda no século 15.
Guiana

Primeiro romance do escritor guianense Wilson Harris (1921-2018), a narrativa de “Palace of the Peacock”, de 1960, transcorre durante o século 16. Indivíduos de etnias diferentes sobem um rio de correnteza forte nas florestas da Guiana. A empreitada tem por chefe Donne, filho de colonizadores europeus que procura Mariella, sua cativa que fugiu. Os homens já se lançaram à aventura de enfrentar o curso d’água antes e por pouco não levaram a pior. Harris insinua que são todos seres entre o mundo real e o além-túmulo. A trama é conduzida por um narrador que usa a primeira pessoa, o Sonhador, apresentado logo no início da história. A presença desse tipo misterioso torna-se cada vez mais nebulosa conforme o enredo se adianta, personificação da própria natureza do povo e do lugar.
Paraguai

Novela inaugural da carreira do poeta Augusto Roa Bastos (1917-2005) na literatura, “Hijo de Hombre” retrata os embates que envolviam poderosos e desvalidos no Paraguai entre 1912 e 1936, na esteira da Guerra do Chaco (1932-1935), contra a Bolívia, pelo controle da parte norte, limítrofe dos dois países. Roa Bastos lança mão de figuras de linguagem amparadas na doutrina cristã a fim de dar azo a uma narrativa de realismo fantástico inspirada pelo barroco que escarafuncha o drama de se nascer paraguaio. Miguel Vera e Cristóbal Jara são os narradores, sendo que Vera, predominantemente, conduz os capítulos ímpares. Tipo romântico, sem apuros de dinheiro e bem-educado, é incapaz de se situar concretamente na luta pelo que diz acreditar — e, na verdade, não crê em coisa alguma. Jara, por sua vez, é a própria força da natureza, líder inconteste da gente do Paraguai, que intermediará seu caminho à redenção.
Peru

“A Casa Verde”, de 1966, é a segunda obra de autoria do peruano Mario Vargas Llosa. No início da década de 1920, Don Anselmo, vindo não se sabe de onde, inaugura um lupanar em Mangachería, bairro de Piura, cidade próxima ao litoral. Já em Santa Maria de Nieva, sede da missão religiosa que serve na Amazônia peruana, trabalhadores dão expediente numa feitoria. Em cada uma das quatro partes de “A Casa Verde”, a narrativa tem início com períodos redigidos à moda impressionista, sem divisão por parágrafos. Dá-se uma partição por capítulos, sendo os capítulos segmentados em cinco braços: Bonifácia, na região da selva; Fushia e Aquilino, no Marañón; Anselmo, em Piura; e vários personagens envolvidos em disputas pela hegemonia na selva e Lituma e Bonifácia, em Piura. O desfecho da novela é um epílogo de quatro capítulos, que arrematam o vigor da história, amalgamando passado e presente a fim de insinuar a eterna vileza, senhora desse lugar.
Uruguai

Em 1971, o jornalista Eduardo Galeano (1940-2015) analisa a história da América Latina partindo da colonização do europeu e chegando à contemporaneidade. Galeano tece verdadeiras diatribes em que denuncia a exploração dos recursos naturais e a subjugação política do continente, antes pelos homens do Velho Mundo, e, na sequência, pelos Estados Unidos, num e noutro caso com o morticínio de milhões de indígenas. A virulência do autor contra o império foi tamanha que seu livro acabou banido na Argentina, Brasil, Chile e Uruguai ao longo dos intermináveis ciclos de administrações totalitárias civis-militares. Numa entrevista algum tempo depois, Eduardo Galeano chegaria a admitir que queria ter escrito um tratado de economia política, mas não era dotado de bagagem intelectual para tanto.
Venezuela

Na história de Rómulo Gallegos (1884-1969), publicada em 1929, Bárbara sofre um estupro violento por uma gangue, é socorrida por integrantes de uma comunidade indígena da região, e, de uma moça assustadiça e até meio pueril, torna-se uma mulher beligerante e ardilosa, a Dona Bárbara. Gallegos alude à natureza sensual da mulher latina — a mestiça, em particular —, a fim de compor o arco dramático da lascívia da personagem, o que lhe valeu acusações de misoginia e racismo, mesmo passados mais de noventa anos. A protagonista se converte numa genuína devoradora de homens, vamp da pior espécie, que usa de seus atributos para subir alto na vida. “Dona Bárbara” foi adaptada para a televisão e exibida em formato de telenovela no Brasil entre maio e dezembro de 2011.