Quando conseguiu publicar sua primeira novela policial, em 1920, a própria Rainha do Crime decerto jamais imaginara quão longe o gênero poderia chegar. Agatha Christie (1890-1976) teve seu talento reconhecido de imediato, aplausos ao editor John Lane (1854-1925), que leu “O Misterioso Caso de Styles” de uma enfiada. Aos 29 anos, filha de um americano que constituíra fortuna na Inglaterra, Agatha Christie logo se tornaria uma verdadeira celebridade, tendo alguns de seus livros adaptados para o teatro e o cinema, muito graças a Hercule Poirot, o detetive tão enigmático quanto os casos em que se empenhava e dotado de um carisma que ainda hoje fascina leitores de várias gerações.
Tramas como as que consagraram a escritora britânica eram roteiros em potencial para filmes que tinham tudo para fisgar o espectador primeiro pelo olhar, depois pelo cérebro, e até pelo estômago, se se quiser, mas não por suas alusões culinárias. Alfred Hitchcock (1899-1980) certamente foi o diretor que conseguiu fazer do suspense uma grife, o que, aos poucos, acontecera com seu próprio nome: ninguém pensa em filmes que mantém a audiência pendurada na brocha por até muito mais de duas horas sem se remeter incontinente a Hitchcock, não por acaso também britânico — e artistas que se destacaram, de uma maneira ou de outra, por meio dessas histórias renderiam um ensaio à parte. Mas volto ao leito, para falar de outros artistas, de outra parte do Velho Mundo, que também chegaram lá com suas narrativas plenas de segredos.
O cinema feito na Espanha teve o condão de projetar gente de lume, a exemplo de Luis Buñuel (1900-1983) e Pedro Almodóvar, os dois não exatamente autores de suspense, mas que fizeram questão de pintalgar seus trabalhos, ainda que com golpes muito sutis, de anticlímax que inquietam e que incomodam. Em “O Alucinado”, lançado em 1953, o veterano parte de um argumento a princípio diáfano a fim de expor a paranoia e a loucura de um solteirão que finalmente se casa, mas apresenta uma postura de abusos sistemáticos contra a esposa, que não sabe como se livrar da armadilha em que caíra por sua própria culpa. Almodóvar, por sua vez, não deixa por menos, a exemplo do que se constata em obras como “Dor e Glória”, de 2019, em que o diretor aborda os descaminhos justamente de um cineasta valendo-se de suas reminiscências, distribuindo ganchos de direita e esquerda com toda a doçura. Esse não é o caso de Oriol Paulo.
Também espanhol e ainda mais identificado com o suspense, assumidamente um diretor de filmes de suspense, Oriol Paulo surpreende com “Um Contratempo”. A produção de 2016 lança mão de todos os clichês do gênero, mas, ao mesmo tempo, não se compara a nenhum outro, em especial no respeita à forma encontrada pelo diretor a fim de resolver a problemática da história. É evidente a vinculação de Paulo com Hitchcock e Brian de Palma, por exemplo. A premissa central de “Um Contratempo” chega às raias do simplório: um sujeito diz ser acusado de um crime que não cometeu e procura a melhor advogada da praça. Ela, por dever de ofício, mas também por vaidade — já que nunca perdeu um caso, como faz questão de ressaltar — e uma generosa porção de sadismo, exige conhecer a história em todos os seus detalhes mais abjetos (e o episódio é mesmo todo permeado pelas mais diferentes gradações de torpeza).
Empregando o batido recurso do flashback, mas de um jeito totalmente orgânico, natural, Oriol Paulo vai aclarando a trama. Indo e voltando ao longo da narrativa, o diretor começa pelo apartamento do protagonista, Adrián Doria, vivido por Mario Casas, onde este recebe a visita da tal advogada, a austera Virginia Goodman, arrumada para o encontro de um modo tão irretocável que só isso já consegue impactar quem assiste. A sequência já soa como uma espécie de julgamento, em que a magistrada, implacável — com toda a razão, como se vai corroborar depois —, não parece nada disposta a aliviar o peso na consciência do assassino por acaso. O espectador é convidado a tomar parte na cena e simpatizar por uma ou pelo outro, faz parte do show de Paulo.
A ideia do crime perfeito é, por si, um paradoxo, já que, em se tratando de homicídios, não há delito sem cadáver, e se não há cadáver, julgamentos dessa natureza não fariam sentido, mas seguem acontecendo — e com frequência crescente — ao redor do mundo, devido a avanços tecnológicos como a invenção do luminol, em 1928, substância capaz de reagir ao ferro da hemoglobina e, assim, detectar a presença de sangue, ou o exame de DNA, desenvolvido em meados da década de 1990. Ou seja, pode não haver corpo, mas em havendo a presunção da morte violenta, obviamente também há o corpo e, por evidente, o crime e o homicida. Todavia, nada disso é necessário em “Um Contratempo”, aqui é tudo na conversa: o enrosco se dissolve às custas do ardil da cabeça diabólica de Virginia. E que cabeça!
Oriol Paulo, com trabalhos primorosos, da grandeza de “Um Contratempo”, está mesmo disposto a reivindicar sua parte no latifúndio cada vez mais exíguo do cinema espanhol, mesmo no ramo do suspense, mas tem enfrentado a batalha com galhardia, conforme se vê em “O Inocente”, de 2021. Não se interponham contratempos na sua jornada.