No meu tempo era pior. Eu não sonhava em ficar rico. Agarrava-me às excentricidades dos projetos para quando eu crescesse: tornar-me um jogador de futebol, atirar-me de um precipício vestido com a capa do Batman, operar o prepúcio, destravar a glande, construir um disco voador, aprender a me tornar invisível. Então, jogava bola descalço na rua. Quebrava os dentes e os ossos. Tomava banhos de chuva. Embriagava-me com Biotônico Fontoura que ainda vinha batizado com generoso teor alcoólico. Maus tempos. Brincava na lama. Fumava escondido. Jogava finca. Domesticava as lombrigas. Fazia roupas para bonecas. Brincava com meninas. Em troca, ensinavam-me a beijar. Não resta dúvida de que, no meu tempo, as coisas eram piores. A vida passava devagar, quase parando. Dormia depois do almoço. Usava sempre o mesmo par de meias para ir à escola, até se quebrar. Escalava muros. Dormia sem tomar banho. Enganava mamãe deixando o chuveiro ligado e molhando os cabelos na pia, numa fraude terrivelmente patética. “Essas manchas no pescoço são apenas sujeira, minha senhora”, decretou o dermatologista, aquele traidor. Sentia raiva do meu pai, mas, só de vez em quando. Uma tolice toda aquela carnificina contra os calangos e os pardais. Matava amigos com revólveres de espoleta. Vivia pensando em fugir de casa com uma namorada, caso conseguisse alguma. Penetrava nas festas de debutantes. Esperava tocarem as canções lentas para dançar de rostinho colado, desavisado das pandemias. Lavava a cabeça com Phebo ou Carnaval. Naquele tempo — um tempo bem mais tenebroso, posso lhes assegurar — apenas ricos lavavam os cabelos com xampu. Jogava cu-de-boi. Apertava a campainha e saía correndo. Punha apelido em deus-e-todo-mundo. Fazia catequese. Escapulia dos padres pedófilos. Socava o meu irmão mais velho. Lia livros por obrigação. Comprava discos de vinil que terminavam sempre arranhados por agulhas de diamante, um verdadeiro inferno. Almejava entrar no céu. Mastigava hóstias. Observava as bundas e as pernas das paroquianas. Pensava em punhetas durante a missa. Lavava o carro da família no sábado à tarde para dar uma saidinha à noite, se papai permitisse. Já lhes falei que, às vezes, odiava o meu velho? Pois então. Época terrível. Era pior. Muito pior. Dose para leão. Tinha a ameaça comunista. Tinha a ameaça norte-americana. Tinham os russos. Tinha o meu pai nervoso — coitado — a me ameaçar com um cinto na mão. Tinha espinhas na cara. Os dentes desalinhados. A feiura inata. A timidez limitante. A inflação de quatro dígitos, galopante. Os militares da cavalaria montada deitando o cassetete no lombo dos estudantes. Alguém que sempre desaparecia depois de uma abordagem policial para checar os documentos. Marco Antônio, filho da Dona Maria, um líder estudantil que fora sequestrado por militares aos 14 anos e nunca mais a família teve notícias suas. The Saturday Night Fever. Calças boca-de-sino. Yoko Ono, a japa do mal. O fim dos Beatles. O Fla-Flu. O Silvio Santos. O Cid Moreira. O Chacrinha. As chacretes. Todo aquele sêmen desperdiçado em homenagem a Rita Cadillac e grande elenco. As peladinhas de final de semana. Os gols de placa. As prostitutas asseadas que cheiravam a Cashmere Bouquet. Boquetes perdulários pagos com as mesadas. A blenorragia. A penicilina. Uma vida inteira pela frente, ainda que ordinária, medíocre e pulsante. Um sopro, por assim dizer. No meu entender, no meu tempo, meus caros, não se iludam, a vida era bem pior, mas, eu até que gostava. Inclusive, do meu pai, de quem eu gostava bastante. Só que eu não dizia. Naquele tempo, eu não sabia amar. Eu era triste e não sabia.
No meu tempo era pior
Eberth Vêncio
É escritor e médico.