Quando perguntadas sobre que ideia fazem da vida, grande parte das pessoas irá responder algo como o surrado clichê que diz que a vida ensina — e a voz rouca das ruas quase nunca se engana. Fomos programados para reagir aos mais insólitos cenários de adversidade, a fim de que permaneçamos com algum cacife no jogo da vida, que cobra de nós a resolução desses problemas, no menor tempo possível, porque não demora e outras questões tão ou mais vultosas irão se impor. Nelson Rodrigues (1912-1980) foi um dos escritores mais geniais da história do Brasil. Observador arguto dos costumes — e da hipocrisia — de nosso povo, Nelson centrava fogo no que considerava de mais nocivo na natureza do homem — e do brasileiro, em particular: sua sanha por poder, por subjugar o semelhante, por se achar melhor que os outros, por querer se dar bem a qualquer custo, tomando por premissa a mediocridade e a baixeza da classe média. Na lendária compilação de história curtas “A Vida Como Ela É”, publicadas ao longo dos anos 1950 na coluna de mesmo nome do jornal carioca “Última Hora”, dirigido pelo russo Samuel Wainer (1910-1980), o pernambucano com o Rio no sangue se valia de narrativas plenas de acidez, que por muito pouco não resvalavam na pornografia mesmo, no intuito de expor as tantas misérias da vida — o que levava os leitores ao êxtase, justamente por se reconhecerem naqueles enredos. As colunas de Nelson eram um bálsamo ao falar coisas que até as pedras da rua sabiam, mas em que ninguém ousava sequer pensar. Bons tempos em que as pessoas tiravam ensinamento até da vulgaridade de uma folha de jornal, sobre a vida, mas também acerca da morte. Aliás, a indesejada das gente intriga a humanidade desde que o mundo é mundo. Lidar com a finitude nunca é tão simples, e quanto mais cheio de particularidades doloridas o cenário se apresenta, mais insustentável a morte se torna. Martha Weiss tem de encarar a perda inesperada da filha que acabou de nascer e logo percebe que as tantas complicações que a tragédia suscita podem ser igualmente perversas. A protagonista de “Pieces of a Woman” (2020), do diretor húngaro Kornél Mundruczó, literalmente incorporada pelo talento de Vanessa Kirby, come o pão que o diabo amassou, mas ninguém sabe se o digeriu. A senhora que fecha todas as portas se revela em toda a sua feiura numa guerra, arrasando tudo o que encontra pela frente, a começar pela verdade, até chegar à honra. É o que se vê em “Dunkirk” (2017), do britânico Christopher Nolan, que narra a história dos mais de 300 mil soldados que lutavam contra Adolf Hitler (1889-1945) na costa francesa durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), mas são encurralados pelas tropas do facínora. “Pieces of a Woman”, “Dunkirk” e mais três títulos, lançados entre 2020 e 2015, todos no acervo da Netflix, deixam claro que a vida ensina mesmo. Só nos resta aprender.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

É muito difícil um casamento resistir à perda de um filho — e o casal que consegue tal proeza pode reivindicar essa vitória. Ao se sobrepor à vida, a morte reafirma seu inesgotável poder sobre os homens, por mais escondida que esteja. A frustração, a tristeza, o desespero de ver morrer um filho, a vida tendo desrespeitado seu sentido mais primevo, é o que se absorve da maneira mais brutal em “Pieces of a Woman”. Ao espectador, é concedido o direito de observar de perto — perto demais — o trabalho de parto de Martha Weiss, ao longo de sombrios 25 minutos — e só ao fim dessa agonia o nome do filme surge na tela. Com essa decisão artística, o diretor Kornél Mundruczó quis fazer o público tomar parte no tormento da personagem principal, fazê-lo perceber que havia uma vida se abrindo para o mundo e essa vida, por alguma razão, escapou. Martha é absorta por uma espiral de sentimentos múltiplos: a alegria fugaz de se sentir mãe logo é substituída por um luto que se prolonga na vida da protagonista indefinidamente, estado do qual ela não consegue se livrar, e que vai impactar de modo decisivo seu relacionamento com o marido, Sean, e a mãe, que reconhecem sua dor, insistem para que ela redescubra o prazer na vida, mas não sabem como persuadi-la, e metem os pés pelas mãos. Sean, em particular, passa a demonstrar uma ligeira indiferença, primeiro pelo sofrimento da companheira, depois pela própria Martha, que por sua vez perde completamente o interesse pelo parceiro. O roteiro faz com que se entenda que também ele padece com a tragédia, mas que isso não lhe serve de licença para sua covardia. Enquanto isso, Martha se desintegra ao ponto de nem ostentar mais qualquer coisa de humano. Torna-se uma criatura algo transcendental, como um espectro que ronda a matéria que lhe compunha, ansiando por voltar àquele corpo, impressões que a audiência só nota graças ao espantoso talento de Vanessa Kirby. Sua Martha Weiss é um dos retratos mais pungentes de um personagem em sua condição mental, uma mulher despedaçada que possivelmente nunca volte a estar por inteiro outra vez, ainda que o final empenhe uma promessa de felicidade.

A fantasia épico-dramática dos diretores Liang Xuan e Chun Zhang impressiona, tanto mais por se tratar de gente nova no ramo. A qualidade técnica, a forca da mensagem, a precisão poética do roteiro, tudo conspira para que “Big Fish e Begônia” tome o espectador de assalto e fique por ali, cavando um espacinho no coração do público. O filme começou a ser pensado 12 anos antes do lançamento, e cada minuto parece ter sido crucial. O que se vê na tela é a realização de um sonho, e aqui não vai nenhuma metáfora gasta. Liang Xuan vira enquanto dormia a história de um peixe que ia crescendo até não caber mais em lugar algum se não o mar. O parceiro entendera a mensagem, que poderia dar em enredo para um bom filme sobre liberdade, escolhas, amadurecimento. Em 2004, começaram a trabalhar, primeiro sob a forma de curta-metragem. Chun é uma espécie de criatura mitológica, habitante de um mundo paralelo logo abaixo da superfície do oceano. O céu de Chun é a parte mais abissal do mar. Ao completar 16 anos, é submetida ao rito de passagem para a vida adulta de seu povo. Sob a forma de golfinho vermelho, é despachada para observar os homens — e esse é o verbo adequado. Não é permitida nenhuma aproximação, a fim de que se preservem as duas espécies. Mesmo considerando a regra temerária demais, Chun cumpre as ordens e se deslumbra com o que pode vivenciar. Já no caminho de volta para o seu mundo, fica presa numa rede de pesca. Quem a salva é o menino que havia conhecido ao chegar, que corajosamente se lança ao mar a fim de salvá-la. Chun se desprende da rede, mas o garoto morre. Num terrível drama de consciência, ela o resgata, e vai atrás do guardião de almas, um ser meio demoníaco com quem negocia a ressurreição dele, sob a condição de que lhe reserve metade de sua vida. Transformado num peixe, chamado de Kun pela nova amiga, será assistido pela menina até que possa retomar sua vida. Como o guardião lhe advertira, a presença de Kun num mundo que não é o dele traz complicações, como o desequilíbrio no ecossistema. O intruso passa por situações vexatórias e até repugnantes. A situação torna-se ainda mais delicada quando Chun e Qiu, o amigo que nutre uma paixão secreta por ela, sabem que Kun, na verdade, fora renegado por seu povo, que o queria fora da comunidade, e agora que ele começa a se recuperar, não o quer de volta. À luz da filosofia oriental, mais precisamente o taoísmo, no caso do filme, a história serviria como uma espécie de alerta sobre como o homem será encarado no além-vida, ou seja, de acordo com seu comportamento no mundo da matéria. A desdita de Kun talvez fosse mesmo o que lhe reservara o mundo divino, e Chun fora imprudente ao se envolver. Desde o princípio dos tempos, o homem sempre teve a possibilidade de fazer a escolha que lhe conviesse, desde que fosse capaz de arcar com as consequências de seus atos. A aura de fantasia aliada ao místico é um dos grandes momentos de “Big Fish e Begônia”, um filme que ensina, ainda que passe a impressão, à primeira vista, de ser só mais uma das muitas animações de algum país distante.

Com “Dunkirk”, Christopher Nolan conseguiu duas verdadeiras proezas. A primeira foi entregar um filme absolutamente distinto do que vinha apresentando em trabalhos a exemplo de “Batman: O Cavaleiro das Trevas” (2008) e “Interestelar” (2014). Por aí, já se vê que Nolan é um diretor plural e ambicioso, mas a cereja do bolo está mesmo aqui. Sua segunda façanha foi ter imprimido tamanho realismo e dramaticidade numa história carregada de significado. O filme conta, com o rigor intelectual necessário, como se deu o resgate de mais de 300 mil soldados britânicos na costa francesa, completamente sitiados pelas tropas de Hitler. Só o número de figurantes necessários para se emprestar credibilidade às sequências já é uma epopeia à parte, mas a força do talento de Nolan dá conta do recado direitinho. Sem nenhum exagero, “Dunkirk” comprova que Christopher Nolan se superou frente a todos os seus excelentes trabalhos anteriores e produziu a obra definitiva sobre operações militares arriscadas no decorrer de uma guerra. Os cinéfilos esperamos que ele seja vencido.

Um homem, um destino, uma razão para seguir. Esta poderia ser a frase usada para trabalhar a divulgação de “O Livro de Eli”. O homem, o Eli do título é um andarilho perdido numa América destroçada, depois de sucessivos anos de guerras; o destino, reencontrar o lugar de onde foi tirado o livro que carrega consigo. Quanto à razão para continuar sua jornada, bem, o livro foi tudo que lhe restou na vida — e Eli não parece disposto a abdicar de suas convicções, ainda que as circunstâncias não sejam das melhores. Em falando nisso, por óbvio ele se depara com inúmeros tipos que tentam subjugá-lo e detê-lo em seu propósito. O protagonista responde à altura, brandindo a única arma com que pode contar, um facão afiado com esmero, mas parece confiar demais em seu destemor. O medo serve para o homem como um sistema de freios morais: quanto mais se teme alguma represália, mais se evita passar por cima do estabelecido, do sistema. O caráter anti-utópico da história é digno de nota ao sugerir um mundo em que o desprezo por princípios éticos mais do que desejável, é obrigatório. Todos nós já vimos esse filme e sabemos como ele acaba.

“Um Amor Verdadeiro.” Este também poderia ser o nome do filme de Tom Hooper que conta a peculiar história do casal de pintores dinamarqueses Einar e Gerda Wegener. Ele, um artista cujo talento já era ampla e merecidamente reconhecido, faz de tudo para incentivar Gerda, que ainda tropeça na carreira. A fim de ganhar tempo e economizar uma ninharia qualquer que pode fazer falta, sugere a Einar que pose para ela, o que não constituiria problema algum, excetuando-se o fato de que Gerda retrata um tipo feminino. Ele, a princípio constrangido, acata a ideia, e logo começa a questionar sua vida até ali. A experiência se repete e Einar chega à conclusão de que estaria sendo impiedosamente perverso consigo mesmo se não encarasse a realidade que sua própria alma lhe revelava: ele é na verdade o que a ciência hoje denomina como uma mulher transexual, um homem que não se adequa à sua condição biológica, trocando em miúdos. Apesar de devastada por saber que, cedo ou tarde, vai perder o grande amor de sua vida, Gerda retribui todo o apoio que Einar sempre lhe devotara e aceita que o marido assuma publicamente a nova identidade. Quando ele, enfim, decide se submeter a uma polêmica — e arriscada — cirurgia de redesignação de gênero no hospital em que clínica o doutor Warnekros, na Alemanha, Gerda o acompanha. Na primeira etapa da intervenção tudo corre bem, mas o fim de Lili — o nome que Einar adota na vida que passa a ter —, é infausto. “A Garota Dinamarquesa” é o típico caso de filme de ator, em contraposição à pletora de filmes de autor que o cinema produz ano após ano. Eddie Redmayne talvez seja o maior representante da arte dramática de sua geração. Em todos os trabalhos a que se dedica, Redmayne deixa a marca de um artista que leva o personagem para a cama sem qualquer prurido de melindrar os brechtianos de plantão (profissional até o osso, como não mencionar a sua interpretação mediúnica do físico britânico Stephen Hawking em “A Teoria de Tudo”?). “A Garota Dinamarquesa” é lindo, emocionante, alentador, vibrante. Mérito quase integral de Eddie Redmayne.