Publicado em 1651, “Leviatã”, do inglês Thomas Hobbes (1588-1679) versava sobre a incapacidade do homem quanto a conduzir um processo duradouro de evolução e ordem nos governos ao redor da Terra. Não exatamente um democrata — em se tomando a história ao pé da letra, Hobbes era um monarquista absolutista ardoroso; com um pouco mais de leitura, vê-se que apreciava o despotismo dos reinados por, próximo da família real, valer-se de privilégios impensáveis aos simples mortais —, o filósofo defendia que o homem, em sendo um animal feito qualquer outro, era um egoísta incurável, que jamais conseguiria respeitar hierarquias na escala de poder a fim de um bem maior, qual seja, a construção de uma sociedade igualitária, em que todos os cidadãos seriam detentores dos mesmos direitos e teriam de observar regras iguais.
O homem é mesmo o lobo do próprio homem, e Max Rockatansky sabe disso na pele. Aquele que fugia dos vivos — e dos mortos —, num mundo distópico que catalisa as profundas transformações (e as mais horrendas misérias) pelas quais passamos, Max, o louco, o bárbaro, o suicida, o revolucionário, tenta se manter vivo frente aos desmandos de um facínora que concentra todo o poder por ser o intermediário entre a humanidade e o recurso fundamental à sua preservação: a água. Max, viajante das galáxias caído do rabo de um cometa qualquer para a dureza da vida num planeta tornado um deserto sem fim, acaba cativo desse líder, o perigoso Immortan Joe.
Tudo em “Mad Max: Estrada da Fúria”, lançado em 2015, exatos 30 anos depois da última produção da franquia, “Além da Cúpula do Trovão”, de 1985, é uma alegoria do caos. O mundo, conforme já foi dito, virou terra arrasada, alguns homens valem muito mais que outros e, em sendo assim, numa terra sem Deus tudo é permitido. Por isso, Immortan Joe tem um harém a seu dispor, lhe é legitimada uma superioridade sobre todos os demais, o que o dispensa de julgamentos de fundo moral: é senhor de amas-de-leite cuja única razão de existir é alimentar os filhos que gera com as mulheres que aprisiona, mantidas exclusivamente para fins de reprodução. Nesse particular, o filme é riquíssimo. O argumento da vida depois do cenário do fim de tudo, inclusive das ilusões, é muito bem explorado por George Miller, que constrói um roteiro lindo só para falar das maiores abjeções do gênero humano. Apreende-se a completa falta de decoro do vilão, mas logo se entende que ele não está sozinho. Tirano algum chega a ter hegemonia sobre o que quer que seja sem a aquiescência de ampla margem da sociedade que visa a comandar, e a história é plena de exemplos. Foi assim com Mao Tse-tung (1893-1976), Josef Stálin (1878-1953), Adolf Hitler (1889-1945), Saddam Hussein (1937-2006), Muammar Gaddafi (1942-2011) e ainda está sendo com Kim Jong-um, há dez anos. A fim de dar azo ao propósito da formação do novo homem, premissa de que se lançaram todos esses lunáticos e tantos outros, em maior ou menor medida, tendo sido Hitler o que melhor se apropriou da “filosofia”, há que se garantir que aquela engrenagem esteja muito bem azeitada. Além de mulheres que deem à luz os filhos da sua revolução e os nutra, Immortan Joe precisa de sangue que, como a água e o petróleo, é agora um insumo de luxo, e por esse motivo Max é capturado. No cárcere, conhece Furiosa, a amazona biônica condenada a viver alijada de seu povo ao ousar desafiar Joe, o imortal, o que está acima de todos, o eleito, o próprio deus. Outro golaço de “Mad Max: Estrada da Fúria”: a anti-heroína fora privada do pouco de dignidade de que alguém ainda poderia se arvorar diante de tanta selvageria por ter tentado libertar as mulheres do bárbaro.
Nas passagens iniciais do filme, um comboio deixa a tribo rumo a outra forma de civilização, à procura de armamentos e gasolina, raros. O espectador não sabia, mas Furiosa levava dentro da lataria do tanque que guiava as Cinco Esposas, que servem de parideiras e escravas sexuais a Immortam Joe, e uma sequência de beleza tão pouco óbvia se torna o mote principal do enredo. Já extravasando de assuntos de que trata com excelência, George Miller arranja mais sarna para coçar. A proposição da liberdade que uma mulher deseja conceder a outras mulheres que não gozam desse direito — o hoje tão propalado conceito de sororidade —, e ela mesma, fracassando, passa a também não poder mais usufruir da autonomia de que desfrutara, é uma espécie de síntese de “Estrada da Fúria”. A anti-heroína abandona o prefixo de oposição, negação, e se apossa do caráter de redentora na história, heroína com todas as letras. O papel mais nobre num filme de macho feito esse cabe, perfeitamente, sem nenhuma condescendência, a uma mulher.
A tetralogia “Mad Max” deixa um gosto ruim na boca, um gosto de sangue, de ferro quente, um cheiro de pólvora no ar, mas nada desse incômodo se compara à mensagem que transmite, o quarto e último em particular. Tido por muitos sabidos como mero delírio da metafísica anti-imperialista, “Mad Max: Estrada da Fúria” é exatamente isso, a indicação de um caminho em que o homem pode se perder, de novo, mas dessa vez, dado o incremento de novos componentes destrutivos a uma conjuntura de aniquilamento já quase integral, de modo irremediável. Sem um leviatã, o monstro bonzinho da obra de Thomas Hobbes, ou uma Furiosa que nos valha.