A vida se nos apresenta todos os dias sob a forma de um quase invencível desafio — e quem o supera pode reivindicar essa vitória. Diariamente, temos de passar por situações as mais complexas, que nos exigem muita inteligência emocional — o bom e velho jogo de cintura —, aptidões técnicas, destreza, agilidade de raciocínio e, claro, sangue frio na medida certa. As relações que somos forçados — e, malgrado pareça indelicada, a palavra é exatamente essa – a estabelecer uns com os outros, de empregado para chefe e vice-versa, de colega para colega, de um vizinho para o outro, não raro demandam de nós qualidades de que não dispomos ao natural, que precisamos cultivar. Não há mal algum nisso, pelo contrário. Ao nos reconhecermos diferentes uns dos outros, ao nos sabermos propensos a reações desproporcionais se expostos a uma carga de estresse um tanto mais elevada, tomamos a atitude consciente de refrear nossos impulsos, procedimento que só se torna viável graças a uma malha de neurônios criados com o intuito de armazenar o maior número de informações possível, ocupando um emaranhado de feixes musculares cuja capacidade de se moldar e de se rearranjar ao sabor das conveniências nunca parou de impressionar cientistas mundo afora. O cérebro humano foi desenhado com a finalidade de adequar-se a cenários que entende impróprios à manutenção da vida, justamente a fim de, num tempo infinitesimalmente limitado, oferecer alternativas de solução. Os problemas surgem quando esses episódios começam a se suceder com regularidade, em intervalos cada vez menores, exigindo reflexos mais e mais eficazes e naquele tempo exato, automáticos mesmo. Nosso cérebro é treinado para distinguir as situações de perigo iminente de ameaças fantasiosas, provocadas por estímulos artificiais ou mesmo que poderiam ser interpretados como reais, dada a forte convicção que despertam, caso dos delírios e da paranoia. Contudo, a evolução cobra um preço. Temos de nos livrar de toda aquela descarga de hormônios e enzimas liberadas em quantidades industriais que, não tendo serventia, decerto podem provocar danos ao sistema, expediente que degenera em sensações nada prazerosas a exemplo de tonturas, enjoo e mesmo perda da consciência, em casos extremos. Submetida a sevícias as mais desumanas, usada como moeda de troca, rejeitada por quem deveria fazer qualquer coisa para assegurar sua integridade, a protagonista de “Sequestrando Stella” (2019), do diretor alemão Thomas Sieben, sabe o que é se sentir como lixo — e contamina a plateia com os resultados de sua descoberta. Outra garota literalmente em maus lençóis é a soturna personagem central de “O Mistério de Grace” (2014), do sino-americano Jeff Chan, que igualmente tem seus encantos com sinal trocado. Os dois filmes, e mais três, produzidos entre 2014 e 2019, com outras três mulheres à beira de um ataque de nervos, estão ao dispor do assinante da Netflix. Stella, Grace e o restante dessa turma nada convencional aguardam você. Tem coragem?
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

Charlotte já foi uma virtuose do violoncelo, mas hoje a audiência só se interessa por Elizabeth. Tomada de inveja — e de fúria —, Charlotte vai conquistando a simpatia de Elizabeth, e elas logo se tornam amigas. O propósito da vingança de Charlotte é explorado de maneira sutil pelo diretor Richard Shepard, que manipula as emoções do espectador como bem quer, de modo que o público ora se indigna com as maquinações da preterida, ora se compadece de seu ostracismo, ainda que Charlotte se livre mais e mais de qualquer pejo e verdadeiramente se entregue à falta de moral imbricada nas atitudes que toma contra a nova adversária. O diretor Richard Shepard propõe uma brincadeira sinistra quanto a saber no final se Charlotte estaria de alguma maneira autorizada a se valer dos expedientes que usou a fim de suavizar seu opróbrio. Preciso, quase calculado, “The Perfection” é música para os ouvidos de quem aprecia narrativas com tempo próprio, mas nem por isso menos vigorosas.

Tudo na vida de Stella era uma grande farsa — e ela teve de sofrer a violência inominável de um sequestro para se dar conta disso. Andando pela rua, distraída, é raptada por Vic e Tom, seu ex-namorado, e alguém que namora um sujeito capaz de se tornar também seu algoz não pode ser de todo normal. Stella é levada para um cativeiro imundo como qualquer outro, mas que obedece a certas medidas de segurança, que apresenta certa ordem — a favor dos bandidos, que reste claro. Os cuidados quanto a eventuais imprevistos são de tal ordem que mesmo as funções fisiológicas da cativa só vão a termo sob condições previamente estudadas, a fim de não deixar a Stella nenhuma alternativa de subterfúgio. Mesmo assim, é justamente numa dessas tão particulares ocasiões que a protagonista consegue virar o jogo pela primeira vez: antes tendo de se conformar em ser subjugada por dois marmanjos cuja identidade ficava resguardada graças a uma máscara, passa a saber, com a ajuda imprescindível da arma que consegue tomar de um deles, Tom, que está diante do ex-parceiro. Ele volta ao comando — e nisso “Sequestrando Stella” é magistral: as reviravoltas se sucedem, uma após a outra, sempre na exata medida do enredo, até o final — e agora tem de lidar com a desconfiança do cúmplice, para quem nunca revela nada, mas que sabe que há alguma coisa de podre ali. Stella é tão desgraçada em sua natureza de anti-heroína que, não bastasse ser surpreendida pela revelação de que o ex-namorado é um de seus sequestradores, se vê obrigada a processar a rejeição de um pai que, mesmo rico, se nega a pagar o resgate de pronto. Vic, o manda-chuva da dupla, passa o tempo todo indo e vindo ao longo da narrativa, o que não compromete em nada o desempenho de Clemens Schick. Aos poucos, se denota a tensão sexual entre seu personagem e Tom, que se conheceram na cadeia e a quem este deve favores. O resgate é finalmente destinado aos dois, e na sequência final, novos fatos vêm à tona. Vic passa a saber do envolvimento entre Tom e Stella, mas não demonstra ciúme, seu problema é mesmo a traição no que diz ao respeito ao andamento do rapto. No desfecho, eletrizante, a mocinha, enfim, parece ter uma chance de redenção. Sem ex-namorado, sem ex-namorado de ex-namorado, e sem nem mesmo o próprio pai, mas indiretamente ajudada por ele.

Distopia cuja história se passa num futuro em que o mundo resta completamente arrasado, os antropófagos de “Amores Canibais” vivem num paraíso particular nas entranhas do Texas. Miami Man, uma espécie de líder nessa falange de insanos, passa a demonstrar um interesse especial por Arlen, uma das cativas usadas como alimento, o que suscita em cada um emoções dicotômicas, líricas e perversas. O filme da iraniana-americana Ana Lily Amirpour fala de possibilidades nada animadoras para o homem, cenário que ele mesmo se empenha em fomentar, mas também de como, mesmo em um estado de flagrante degenerescência, sempre resta nos indivíduos alguma coisa que os lembre de sua natureza humana e, portanto, igualmente divina. A trilha sonora, com clássicos dos “apocalípticos” anos 1980 e 1990, essa, sim, é um legítimo acepipe ao ressuscitar Boy George e Ace of Base. Por uma razão ou outra, o enredo desperta o amor da plateia, sempre ávida por carne fresca.

A adolescência é quase sempre marcada por transformações profundas na vida de um indivíduo. Verónica, apesar de estar longe de ser adulta é até uma garota muito ingênua, já tem de lidar com responsabilidades de gente grande, o que faz o público lhe sentir pena. E essa é uma premissa fundamental no filme de Paco Plaza: a total vulnerabilidade, emocional e mesmo econômica, é o que faz o enredo tão verossímil, a despeito de baseado num caso registrado pela polícia madrilenha em 1991. Plaza desarma o espectador, ora dando-lhe material para que creia na protagonista, ora lhe dizendo que ela não passa de uma menina meio histérica, que sobrecarregada por afazeres que não deveriam lhe caber, encontra um pretexto, ainda que inconscientemente, para que prestem atenção à vida miserável que leva, com a brincadeira da tábua de Ouija — o jogo dos espíritos que falam mediante o movimento de copos — servindo de pano de fundo à história, inventiva, bem-contada e ainda relevante do ponto de vista sociológico.

Adolescentes são um misto de inadequação, ansiedade, fúria, paixões, sentimentos muitas vezes regidos por hormônios descontrolados que borbulham num organismo em constante mudança. Pode parecer contraditório, mas esse não é o caso da protagonista da nova aquisição da Netflix. No suspense de terror “O Mistério de Grace”, dirigido por Jeff Chan, cuja estreia se deu no já distante 2014, Grace é uma garota comum, que, como toda garota comum, como qualquer indivíduo, tem seus questionamentos íntimos, seus problemas pessoais, seus demônios internos, sem que isso em nada lhe diminua a alegria da vida. O conflito de Grace reside num lugar muito específico de suas vivências. Grace perdera os pais ainda bebê e fora criada pela avó materna, católica fervorosa e superprotetora. Vai para a faculdade a contragosto dessa avó que, acertadamente, sugere que a protagonista vai conhecer muita gente que não deveria — fato a que estamos todos sujeitos, mais cedo ou mais tarde, ao longo da vida, e um processo fundamental para o amadurecimento e o autoconhecimento de cada um —, participa de festas, mas resiste o quanto pode às tentações. Começa a ser vítima de alucinações motivadas por desejos do que ela gostaria que acontecesse, mas seu superego encontra nos delírios a maneira de avisá-la de que está na banda errada da trilha. Seu comportamento inadequado motiva a interferência da avó, Grace volta à cidadezinha onde morava e é impedida de retomar os estudos. Logo entra em cena, por óbvio, o componente religioso: a garota estaria possuída. Na verdade, Grace é apenas uma menina meio perdida — meio ingênua demais também — tentando se livrar de seus demônios. E isso nada tem a ver com religião.