Todos os dias, somos aterrados por informações dos mais diversos gêneros. Manter-se a par do que acontece mundo afora fomenta no organismo humano a sensação de pertencimento, de não se estar tão só, tão isolado, ainda em meio a quase oito bilhões de pessoas. Apesar de muitos preferirem continuar alijados de maiores interações com outros exemplares da mesma espécie, confinados em quilombos e assentamentos que reúnem indivíduos que professam uma fé em comum, por exemplo, a maior parte de nós sempre compartilhou os ambientes que frequenta com outras pessoas, seja por vontade própria, seja porque essa tenha sido a única alternativa. Há quem lide bem frente às muitas discrepâncias dos demais e, claro, igualmente existem aqueles que não suportam dez minutos na presença de gente que tenha hábitos (e manias) que destoem do que tomam por normal para si, e é nesse ponto que começam os problemas. Uma horda de pensamentos obsessivos se apodera de nossas cabeças, se espalha como vírus por todo o sistema e parasita o corpo todo, uma verdadeira praga. “As ruas são perigosas, há gente mal-intencionada por toda parte, vou me expor a um risco incalculável se tomar tal ou qual atitude e posso até morrer”, é só o que nos vem à mente. Começamos a nos precaver de ameaças que só existem no mais íntimo de nós, imaginando que dessa forma nos salvaríamos. A suspeita exacerbada acerca de circunstâncias as mais distintas dá origem a graus de ansiedade simplesmente intoleráveis ao ser humano, o que exige respostas. Os neurônios entendem que estamos em perigo, reféns de uma situação desfavorável qualquer, e precisamos de ajuda. A paranoia se instala. Claro que, em cenários bastante específicos, o prenúncio de que algo ruim vai mesmo acontecer tem toda razoabilidade e o temor se justifica — ainda que toda providência que se venha a tomar deva ser fundada em muito planejamento. O pânico que se alastra entre oito pessoas que não se conhecem, apresentadas a uma situação muito particular numa área exígua, é o argumento central de “O Bar” (2017), do diretor espanhol Álex de la Iglesia, cujo enredo parte de um confronto de verdade e se desdobra para o caos. No clássico do suspense “Tubarão” (1975), Steven Spielberg fala de um predador marinho que aterroriza uma cidadezinha, malgrado as autoridades do lugar achem que as consequências do enfrentamento do problema é que pode se tornar um grande enrosco. A lista da Bula, tem esses e mais cinco títulos, todos na Netflix, sobre o irracional a permear a vida do homem e ditar suas resoluções. Quem pode se dizer à prova de suas próprias neuroses?
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

Todos ou, pelo menos, 90% da humanidade, tivemos problemas com nossos pais, em especial naquele inferno interior chamado adolescência. Tudo nessa fase da vida nos fede a conspiração universal contra nossos sonhos e a orientação de pais atentos é fundamental a fim de se manter a sanidade. Mas, e quando se tem uma mãe completamente descompensada, que devota sentimentos muito além de mero amor e zelo? “Fuja” expõe sem nenhum pejo a relação de uma mãe superprotetora e sua filha deficiente física Chloé, a surpreendente Kiera Allen, portadora de necessidades especiais na vida real. Chloé quer provar para a mãe que pode ser independente e levar uma vida normal, mas não tem a mais pálida ideia de como sua vida seguiu tal curso, que tudo poderia ter sido muito diferente e, o principal (sem spoilers, fique tranquilo): em que medida sua mãe é responsável pelo que lhe aconteceu.

A vida pode se apresentar particularmente difícil logo nos nossos verdes anos. É assim para Jonas, cujos pais acabaram de morrer, o que o faz ter de ir morar com o avô. Jonas tem de se equilibrar entre a dor do luto e a necessidade de seguir vivendo, afinal há uma vida inteira pela frente. O amor, inesperado, ajuda, mas uma outra dificuldade se impõe: o desejo. Helena, a professora substituta de alemão que vai morar no vilarejo, vira a cabeça do garoto, que sequer se imagina como parte de uma maquinação dessa mulher cheia de segredos profundos, talvez até mortais.

Uma mulher acorda em uma cápsula criogênica, sem ter a menor ideia do que está fazendo naquele lugar. Completamente isolada do mundo, contando apenas com um dispositivo chamado MILO, para sobreviver ela precisa buscar no que resta de sua memória um jeito de se libertar antes que o oxigênio acabe. A história principia como um thriller de ficção científica, mas logo se mostra uma alegoria ricamente construída pelo diretor Alexandre Aja e a roteirista Christie LeBlanc de como está sendo a vida de muita gente ao longo da pandemia de covid-19, um cenário de mudanças indesejadas, incerteza, desespero e verdadeiro caos, em que nos vimos todos obrigados a repensar nossas prioridades a fim de não perder o fôlego.

O deslocamento aparentemente fácil de uma universitária por uma trilha torna-se uma prova de fogo quando a garota erra o caminho e se perde numa mata cerrada. O cenário se apresenta especialmente perigoso no momento em que ela dá de cara com dois bandidos tentando fugir da polícia. A fim de continuar viva, a estudante terá de se provar mais safa que seus novos adversários e se valer do que sabe a respeito da floresta, que vira um grande labirinto, repleto das armadilhas mais impensáveis.

Como num xadrez composto de peões, bispos, cavalos e rainhas humanos, o diretor Álex de la Iglesia brinca com as muitas emoções do espectador ao lançar mão das vidas dos personagens de “O Bar” da maneira que bem entende. Numa espelunca do centro de Madri, dez clientes pedem um café, uma omelete, jogam conversa fora, veem a vida passar. Um deles, já satisfeito de tanta monotonia, paga a conta e se encaminha para a saída. Na calçada, a dois metros da porta, leva um tiro que vem não se sabe de onde, não se sabe de quem. Os demais, claro, se desesperam. O homem ainda respira, e é socorrido por um segundo freguês do estabelecimento, que também é alvejado. Os oito que restam chegam à conclusão de que podem ser as próximas vítimas caso tomem partido; a fim de continuarem vivos, se determinam a ficar todos juntos, ainda que não tenham a menor ideia sobre com quem passarão as próximas horas, decisivas. A narrativa vai se sedimentando sobre a tensão de cada nova circunstância, que se intensifica entre eles, e conforme o pavor se dissemina, mais perigoso se torna o abrigo.

Aos poucos, Fede Alvarez galga o Olimpo rumo ao posto de diretor queridinho de Hollywood. Foi a partir do aclamado curta “Ataque de Pânico” (2009), em que robôs investem contra Montevidéu, que Alvarez se cacifou junto aos grandes do mercado cinematográfico e, em 2013, dirigiu “A Morte do Demônio”, produzido por Sam Raimi. Com “O Homem nas Trevas”, segundo longa-metragem do diretor, Alvarez mostra que está cada vez mais afiado, em cenas com a medida exata de suspense. Uma pequena gangue de assaltantes segue dando trabalho à polícia, graças à destreza com que realizam os roubos. Ao descobrir que um homem já entrado em anos, e cego, recebe uma vultosa herança por conta da morte da filha — e que guarda a bolada em sua casa —, eles vão para o tudo ou nada. E, pelo menos para eles, é nada. A vítima, um veterano de guerra, tem grande experiência com armas, e em combater inimigos. Esse aparentemente inofensivo velhinho, na verdade, guarda alguns segredos, e nisso a narrativa cresce. Bandidos assumem uma natureza vulnerável e quem passa a dar as cartas é o ameaçado. O espectador também cai, com gosto, na armadilha preparada por Alvarez, e se põe a conjecturar sobre quem é menos vil na história. Surpreendente, pleno de reviravoltas, filme em que se torna impossível calcular o próximo lance, como se não fosse suficiente, “O Homem nas Trevas” ainda pode se orgulhar de seu exíguo, mas bravo elenco, que à medida que apresenta performances diametralmente contrárias ao óbvio, sobe o nível desse thriller. Apesar de tantas cenas indigestas, “O Homem nas Trevas” desce redondinho. A direção de fotografia, irretocável, destaca o claro-escuro do ambiente, uma extensão da própria aura da história, fazendo do conjunto uma composição bastante harmoniosa.

Em tempos de negacionismo, a natureza se encarrega de gritar para o homem que não ignore as evidências, arroste os problemas, tenham a gravidade que tiverem, e resolva-os. “Tubarão”, tornado verdadeiro paradigma do suspense, atesta que o homem erra e segue errando quanto a compreender a ciência — e o próprio mundo —, sendo ele mesmo quase sempre o culpado pelas tantas catástrofes que o vitimam. Na produção de Steven Spielberg, um cult também por se valer dos mais insólitos recursos tecnológicos (recursos tecnológicos disponíveis à época, que se diga), um monstro em forma de peixe gigantesco, faminto e raivoso, começa a frequentar a praia de uma certa Amity, pequena cidade litorânea cuja economia tem por esteio justamente o turismo. O prefeito quer a todo custo abafar os ataques, mas o xerife não se submete e solicita a análise de um especialista e de um marujo com décadas de convés a fim de descobrir a provável razão do bicho ter resolvido passear por ali. Como se está falando de 1975 — e, principalmente, de ficção —, nem se cogitava citar manejo de espécies ou algum outro mecanismo científico mais ponderado: eles não admitem nenhuma outra solução a não ser dar cabo do tubarão branco. A tarefa, por óbvio, mostra-se muito mais complexa do que eles pretendiam, e a besta marinha vai levando a melhor na história, o primeiro blockbuster de que se tem notícia, que não deixa a atmosfera de consternação se dissipar nunca, muito por causa da lendária trilha sonora do mestre John Williams, por trás de outros sucessos como os da franquia “Guerra nas Estrelas”, criada por George Lucas, e a “Lista de Schindler” (1993), igualmente dirigido por Spielberg.