Central do Brasil, de Walter Sales: uma bula para o Brasil

Central do Brasil, de Walter Sales: uma bula para o Brasil

Para Fernanda Montenegro

Dora, personagem de Fernanda Montenegro em “Central do Brasil”, filme de Walter Salles, é uma de nossas maiores alegorias, e talvez a mais anedótica. A personagem, criada pelos roteiristas João Emanuel Carneiro e Marcos Bernstein, e pela direção de Walter Salles, é, sobretudo, uma composição sofisticada da atriz Fernanda Montenegro, que captou e ampliou todos os relevos desta personalidade sui generis.

Dora é uma escrevedora em um país de analfabetos. Mais: escrevedora de almas para analfabetos de letras e doutores da alma.

Ela tira de uma realidade para a outra aqueles que ela escuta (saem do mundo físico e vão para as palavras, emoldurados no papel, à mercê dos gostos e substâncias da escrevedora: poderosa e soberba como são os narradores, ela descreve e narra ao seu gosto e estilo). Eles têm muitas teses dentro deles, foram submetidos à banca rígida do tempo. Aprovados, puderam continuar. No final, Cartola lê a sua “Ata de Aprovação” dessa avaliação das peripécias de uma vida que foram transubstanciadas em linguagem, e diz que o mérito da aprovação não cessa a pesquisa, já que a ordem é continuar pesquisando: “Deixe-me ir, preciso andar, vou por aí, ‘a procurar’, rir pra não chorar”. A canção, ali, soa como sentença ambígua, que prende e liberta: somos livres para sermos quem somos, e somente para isso. Ouvimos, enquanto os créditos sobem pela tela e correm como o menino, Dora, o ônibus, o tempo.

A busca é pela subjetiva felicidade, mas não na esperança vazia, e sim na metodologia do teste, peso e contrapeso, tese e antítese: eles querem não um sonho, mas um método: “ande sempre de ônibus, nunca táxi. O ônibus tem um caminho certo, linha exata. O táxi, não”, diz Dora para o menino Josué.

São assim os que contam histórias para Dora. Ela, ao escutá-los no primeiro tempo da narrativa, coloca nos olhos milhares de anos em que pessoas tinham o papel essencial da escuta; mas na abertura, seus olhos têm mágoa e desprezo, deserto de esperanças, simbolizando que tiramos a humanidade do outro quando o ignoramos: ser alheio é uma forma de assassinato.

Por todos os enunciadores falarem de suas vidas de forma única e especial, num enfoque original e fruto de experiências e testagens ao longo da vida, as aporias e axiomas de Dora têm fundamentação e demonstração, teóricas (geralmente a Bíblia, único livro ao qual os poucos alfabetizados têm acesso, ou outro código moral/religioso) e práticas (seus traumas e o das histórias vazias e sem luz que recebe, também escuras por dentro). Uma tensa harmonia se arma num encontro de abismos.

Todo o material humano que Dora coleta vem da tecelagem do conflito e da trajetória, típicas do ato de narrar. É a trajetória da experiência que aparece nas cartas que ela escreve, trajetórias sintetizadas sempre em cartas que se tornam microcontos e têm, na expressão da voz, um coadjuvante autoral de verdades enunciadas. Escrevedora? Autora.

O modo performático confere à inflexão e ao contorno vocálico dos timbres de voz, precisamente colocados por Fernanda Montenegro, elementos de tenacidade, desprezo, esperança, conformismo, indignação, gratidão, amor. Nesse ângulo, Dora passa de escrevedora a tradutora/intérprete, e por tabela, criadora: faz a passagem, guiada por escolhas morais, filosóficas e de certa poética, de um idioma para outro: da língua morta da realidade para a língua viva da fabulação.

Dora molda o real, com a autoridade e o poder do narrador. Ela omite o que deseja e acrescenta o que convém, sem ter por objetivo a precisão e a estética, mas dando enfoque ao sentido. Não é o que eles vivem o que importa, mas sim o que essas historietas revelam a respeito das leis gerais da vida. Não se trata mais de conquistar o pai (ou o país), mas de suportar viver sem ele (o pai) ou nele (no país): só na linguagem existe essa esperança. Só com a linguagem esta esperança tem acolhimento no campo do possível.

É mesmo uma tradução simultânea o que Dora faz. É no transpor o registro da fala para o da escrita que se realiza a formação, por via da linguagem; como se escrever, narrar, ou falar das suas experiências fosse a negociação possível para dar ordem e sentido à vida.

As cartas vão marcando etapas e dizem: até aqui foi assim, e agora será diferente. Não pelo que está nelas, mas pelo que não está, pois o que não temos revela mais de quem somos do que as coisas possuídas, que mascaram o interior do vaso vazio da existência. Há um recado aí: apegados ao que temos, somos ludibriados por enfeites e badulaques, e não conseguimos mais dizer como é o vaso da existência por dentro.

O papel de quem lê e escreve é esvaziar o vaso, mostrar como é o vazio, para suportá-lo, tornando a vida mais densa, porém mais digna e cabível.

Pessoas pobres de existência não suportariam Dora. Nem Dora a elas. Elas se mostrariam demais: Dora veria o tempo todo que há muito em seu vazio, e o eco do nada das coisas superficiais tornaria a escuta de Dora, carregada e densa, difícil de suportar. A força dos olhos de Fernanda Montenegro, que faz com eles o que quer, potencializando-os a um ponto impossível aos humanos comuns, denuncia o que tem em Dora e no mundo todo, pois ela vê o mundo, os seus tudos e os seus nadas, nos outros. Composição orgânica de uma atriz que, antropofágica, não interpreta o texto, come-o e o regurgita, mas controlando cada movimento dos lances de retorno.

Há muita humanidade nos temas das cartas, no texto, na atriz, na direção, no menino — ainda não é um ator, e essa desvantagem de Vinicius de Oliveira acresce ao filme, pois Fernanda não contracena com o então garoto: Dora vem nua, com seus matizes em saturação máxima, para a cena, para que a relação se dê direta, sem intermédio de um personagem composto, que seu par em cena poderia não atingir. Como o menino pobre poderia esquecer, senão assim, que estava com Fernanda Montenegro, e pudesse odiar, estranhar e amar Dora?

Dora é uma mulher só. Pelo mesmo motivo de Hamlet, ela deseja o real mais denso vinte e quatro horas por dia. Quem suporta isso? Os homens não a quiseram; o pai, quando a encontrou nas ruas do Rio, anos depois de abandonar a família, tragicamente grego, não a reconhece.

O pai, ao ser abordado por ela com entonação pueril, flerta, edípico, com a prole, num episódio aparentemente banal, mas seríssimo: drama histórico surge ali, mostrando que se não sabemos da verdade, monstruosidades podem acontecer: Édipo, por não saber que era o seu pai o homem com o qual se desentende, comete o terrível crime de parricídio e o pervertido coito com a mãe. Dora, se não tivesse sido salva por um conceito aristotélico, o do reconhecimento, carente como sempre fora poderia — por que não? — ter caído no flerte do pai. Mas ela, se não tem sensibilidade, inventa-a e a azeita, ao seu modo, com memória: “tenho saudade do meu pai. Tenho saudade de ‘t u d o’.”.

Reconhecer é conhecer duas vezes. É ver que o pai, por não sabê-la sua filha, não pode amá-la como tal. Sua humanidade se perde pela falta da palavra (filha), e o faz, como um animal irracional que copula com qualquer fêmea, seja irmã ou mãe, desejar a filha.

Se falta palavra, falta humanidade. O filme é uma ode à força da palavra.

O filme grita esta mensagem: o que nos salva da aspereza e bestialização, dando sentido à existência, é a palavra, porque nenhuma evidência biológica impede o coito de uma mãe com o seu filho. É um fator semântico/simbólico que faz isso. Dora não era mulher, era filha, mas é desumanizada pela falta da palavra certa.

Em sua narrativa, a ausência do pai fugitivo do lar e de suas responsabilidades ganha um sentido mais amplo. A recusa do pai e sua incapacidade de amar roubam da vida de uma mulher a sua existência de filha e esvazia, para ela, o sentido de pai: por isso a história de Ana, a mãe de Josué, desde o início lhe causa repulsa. O vazio de seu pai a preenche com mais nadas insuportáveis para quem vê e entende a sua dor, e é mais duro para ela, pois sendo escrevedora/autora/tradutora, é capaz de compor, a partir dos mesmos vazios desumanos que conhecera com o pai, outros nadas existenciais. Quantas vezes ela não terá ouvido história semelhante à sua, atrás de sua mesa amarga, na Estação Central do Brasil?

Mas o filme nos convida à esperança, e não à negatividade. O filme se estrutura muitas vezes em pares análogos: Pai/País ou Dora/Irene.

Irene poderia ser um espelho de Dora, mas é o primeiro chamado para a esperança. Ambas professoras aposentadas, solitárias, habitantes do mesmo prédio, atormentadas pelo ruído do trem (o pai de Dora era maquinista. O ruído que vem da janela não permite ao seu coração um suave esquecer ou perdoar: grita não o que ela tem, mas o que lhe falta. A falta é o que nos faz, mas é possível viver de outra forma.

Irene é um “apesar de” na história. Apesar de tão semelhante, é completamente diferente de Dora: uma lista do IBGE as iguala; uma imagem das duas lado a lado as transforma em cúmplices e estranhas uma para a outra. Espécie de releitura do par de Cervantes: Don Quixote e Sancho Pança. Irene, em sua modesta linguagem, chama Dora para o limite moral de suas ações quando a protagonista vende o menino Josué. Sem ela, Dora não fugiria com ele e a história não existiria: Irene, como diz Paul Ricoeur em “Tempo e Narrativa”, faz a “armação da intriga”, e põe a história para andar. Irene é a primeira evidência do filme como obra que mira em uma visão positiva, mas não ingênua da vida. Outra é o final, nada melancólico, mas conciliador. Tão conciliador que os símbolos pululam, e só vendo muitas vezes o filme podemos perceber, de pouco em pouco, tudo o que traz. A conciliação vem de quem passa o filme a escrever cartas, e quando principia a sua própria, diz: “Josué, faz muito tempo que eu não escrevo uma carta para alguém, agora eu vou escrever esta carta para você”. Josué não lê. É analfabeto como a mãe, o pai e os irmãos. É para Josué a carta? Ou para ela mesma? O papel é um divã. A caneta é um analista. A escritura da carta é uma sessão de terapia.

Vinícius de Oliveira em Central do Brasil l Foto: IMDb/Divulgação

O retrato, apontado por Dora no meio do filme como algo negativo, porque nos obriga a lembrar, é convocado agora para salvar o passado. Despudorada no uso de diminutivos que revelam afetos que a fazem rir e chorar ao mesmo tempo, ela pede: “quando quiser se lembrar de mim, dê uma olhada no retratinho que a gente tirou”. E completa, num relato tão explícito que paira entre a confissão religiosa e a fala em consultório psicanalítico: “digo isso porque eu tenho medo que um dia você também me esqueça”. Também? Como quem? Como o pai? Como o país? Como os dois, que se esqueceram de ambos?

Preso ao filme, não ao simbólico que dele emana, é do pai que ela fala, o pai que a colocava no apito do trem quando criança e dela se esqueceu, confundindo-a com uma mulher qualquer, na Avenida Rio Branco, no Centro do Rio, mesma região da Estação Central.

A torrente de confissões não cessa: “quando você cruzar as estradas no seu caminhão enorme, eu espero que você se lembre que fui eu a primeira pessoa a te fazer botar a mão no volante”. Revelação “in finis res”: foi mais por si própria do que por ele que ela fez o pedido ao motorista, outro homem fugitivo de seu amor, como o pai. O motorista talvez pese ainda mais. Foge justamente quando ela começa a acreditar novamente, em si e na vida: vai ao banheiro, pede o batom para uma estranha, e com timidez desconcertante diante de si mesma, a senhora vivencia a delícia do flerte, provavelmente ceifado na adolescência, pois já temia, ali, a penalidade do abandono.

A carta prossegue, e a última fala fecha a reconciliação com o passado: “Tenho saudade do meu pai. Tenho saudade de tudo. Dora”. Poderia ser traduzido por “eu os amo, a todos, apesar de”. Neste filme, e na vida, o amor se faz pelo que nos falta e não pelo que possuímos, seja com relação ao pai ou ao País: o Brasil é amado e procurado por este filme, carente de amor e responsabilidade daqueles que dele devem cuidar. Todos somos como Josué, e queremos ser amados por nosso pai/País, e o amamos, mesmo que este não mereça, como os dois pais amados neste filme.

Encontra-se no ser amado alguém para dividir silêncios, e não sentenças. É um império de intimidades grande demais para ser traduzido ou conceituado o tempo todo. Neste filme o amor é o território de um País, do qual nós nos sabemos donos, e nem por isso conseguimos ver integralmente, pois a visão não alcança a medida de sua grandeza. Essa incapacidade de ver tudo deve levar a um desejo por conhecer para se reconhecer, e não a um ensimesmar-se. Paralelo ao conhecimento do Brasil, Dora conhece a si, assume-se e o último close em sua face resume a vida: ri e chora ao mesmo tempo. Bem-vinda à vida como é e deve ser.

Em “Central do Brasil” somos sempre vaso: valemos e servimos não pelo que carregamos, mas por podermos receber. Sempre esvaziados, buscamos ser preenchidos. Catástrofe: não escolhemos tudo o que vai nesse vaso. O máximo que podemos fazer, como fazemos nas narrativas de nossas vidas, é organizá-lo, tentar melhorar a sua perspectiva, aspecto e composição entre as coisas escolhidas e nele, arbitrária ou acidentalmente, colocadas. São os planos e as contingências; as culpas ou as faltas de sorte, são as conquistas e as derrotas. Tudo isso está dentro, e sempre cabe mais. Quando para de caber e temos o peso de uma completude — negativa ou positiva —, o valor da vida é posto em questão. É quando tudo pode ser a gota d’água. Ficamos por um fio.

As pessoas de “vida bonita” não têm vasos só de apetrechos belos. Com muito ou pouco, usam outro conceito narrativo para fazer dessa metáfora algo que valha a pena: o “arranjo”, a “unidade”, a “harmonia” dos elementos vale mais do que eles mesmos. As flores secas ficam em posição e combinação com as flores novas e velhas; as frutas podres e as comestíveis, as partes perfeitas e truncadas são agasalhadas, acomodadas em lugares devidos. Caravaggio também nos dá essa dica, com o seu deus Baco de mãos sujas ou nos frutos podres junto dos perfeitos e apetitosos, dentro do mesmo balaio.

A “comunicação” ganha um papel essencial. Nós precisamos falar e ter quem nos ouça. Drummond também tem esta coragem, e diz que escreve, faz livros, expõe-se em jornais porque precisa de todos. Diante disso, vemos que as cartas de Dora, com as histórias dos outros, a que lê para Josué e seus irmãos, ou a dela própria, feita para ela e Josué, fazem a passagem de uma circunstância para um papel. Escrever pode ajustar e ressignificar a vida. Uma apologia da escrita e da leitura se insere aí. Soubéssemos ler mais e melhor, escrevêssemos mais e melhor, tivéssemos mais palavras entre nós, muito de nosso caos existencial seria sanado. Se tudo fosse remetido ao seu “destino” (destinatário), mesmo sem falar diríamos o necessário. É alta a pretensão do filme: víssemos mais uns aos outros como pertencentes do mesmo país, seríamos mais nação, filhos do mesmo lugar, amaríamos o mesmo pai/país e faríamos dele lugar melhor, pegando dele e lhe dando sem nada esperar, como Josué, que ama sem porquês, mas com razão, pois deseja ser amado por este pai/país que dele se esquece na carta, e é salvo por Dora em seu desleixo, quando esta, por poder ler, cria, e coloca o menino na carta mesmo sem que ele nela esteja.

Dora é uma intérprete, e por isso uma editora da vida. É um aviso, dentre tantos, de que nada depende só de nós, porque de algum modo Sartre às vezes aparece e o inferno é mesmo o outro que nos julga e interfere na nossa narrativa, salvando-a à sua maneira ou condenando-a à danação, sem saber se a sua versão de carta ou juízo é mesmo a mais correta: Irene joga esse símbolo quando a carta do pai de Josué iria para o lixo, mas é salva por ela: “Ela vai apanhar muito naquela cara”, diz Dora. Irene faz mais do que afirmar que não se deve intervir demais. Em vez disso, numa maiêutica socrática, diz: “E daí?”, para depois afirmar, categórica: “A cara é dela! Você não tem o direito!”

A dialética identidade/subjetividade ressurge: a cara é dela. Em um debate adiante, Irene denunciará, de novo, pelo que a personagem não tem, quem ela é e aquilo de que precisa: “por isso que ninguém casa com você. Nem tem pintura na ‘cara’… não é feito a Irene…”, diz Josué a Dora, em um dos duelos verbais que os dois têm. A comparação do menino esperto não é da solidão, igual para as duas, mas dos recursos de se fazer percebida no mundo (identidade/falsificação) que ambas têm. A resposta de Dora é uma fuga: “Mesmo com toda aquela pintura na cara, ela também não casou”. Mas não perdeu a esperança, fica dito por Josué, mesmo sem dizer mais nada.

Logo depois, no mesmo bloco narrativo, em um banheiro minimalista e pobre de recursos cenográficos, Dora ousará, de novo, sair da condição de escrevedora/registradora. Tenta intervir no destino quando pede emprestado o batom, ao qual já nos referimos. Mas há mais um detalhe, típico de Tchekhov: este batom estará no fim do filme, e por isso precisa, a serviço da narrativa, ser oferecido a Dora. Ela o usará duas vezes, e nas duas para tentar mudar o rumo da viagem, da estrada, do destino, do itinerário: na primeira, para tentar seduzir o caminhoneiro, que a abandona com seu analista a tiracolo, mostrando-a e a convidando para uma vida diferente. Na segunda aparição, o batom retorna numa apoteose da passagem de insensível a sensível, e não estará no dedicar amor a quem não mais precisa dele, mas em deixar Josué livre para que ele seja quem é: nenhum amor pode ser maior que o mais pródigo em dar do que em receber. Dora deixa o menino, não para abandoná-lo à solidão ou à tragédia, mas para não atrapalhar o seu destino. Quando fazemos algo por quem amamos, é porque gozamos com a felicidade do ser amado; é por ele e por nós ao mesmo tempo. Há muito de vaidoso e gozoso no altruísmo. Dora não apenas abre mão de Josué: opta igualmente por buscar o seu destino.

Amar, neste filme, torna-se mais esforçar-se em não atrapalhar do que em, de forma autoritária e julgadora, intervir em tudo, usurpando de quem se ama o elemento mais vivo da vida, a liberdade.

Marília Pera fez de uma personagem inicialmente pequena, uma figura marcante no filme. A atriz infla os instantes de Irene. Com intenção consciente exagera nos gestos e semblantes, e flerta perigosamente com a caricatura. A personagem evidentemente foi criada para ser escada e contrapeso de Dora, protagonista demasiado cinza, sempre em contraste com as cores de Irene ou com as cores da infância de Josué. A modulação da voz de Marília Pera, quando cobra humanidade e alguma empatia de Dora, é um aceno para a dignidade: “Tudo tem limite, Dora”. Infelizes e solitárias, sim; sem dignidade, não.

Irene não é ingênua. Salvar Dora de ser uma criminosa é salvar a sua estirpe de gente, é dizer que não foram felizes, mas terão a dignidade de não levarem infelicidade aos outros. Isso é mais que um consolo. É uma forma de honradez.

Não fazer chorar colabora mais do que fazer sorrir. É por isso que, no gozo do privilégio da língua e da linguagem, Dora, como uma Sherazade, diz ao menino, lendo a carta ao seu lado, junto de seus irmãos com nomes bíblicos como o seu (Moisés e Isaías), que o pai quer conhecê-lo. Mais do que inventar, sendo a que lê, escreve, interpreta, flerta com o papel de atriz numa cena dentro da cena, mostrando ao menino o papel que reserva o poder da palavra. Aponta nele uma coisa qualquer com a força de quem prova: veja aqui, é seu nome. Para quem não sabe ler, é uma questão de acreditar. E o que, na vida, não é isso, uma questão de acreditar, de fazer arranjos nos vasos vazios?

O semblante do garoto não se enche de felicidade, mas de algo maior e mais duradouro: esperança. A instância da inteligência é um benefício da arte, que inventa a vida para torná-la suportável: sozinhos, depois, no escuro, num misto de par e casal, na calçada pobre e erma, eles têm apenas um ao outro. Josué, como o rei que deixa de matar Sherazade não porque acredita em suas histórias, mas porque a vida é melhor com essas histórias, sejam mentiras ou verdades, pergunta afirmando, como se segurássemos um romance de Machado de Assis e estivéssemos ao seu lado e pudéssemos perguntar: “era doidice, né? Ela não traiu ninguém o livro todo?”, ele indaga: “Meu pai não disse que queria me conhecer”. Ela abaixa o rosto para fabular e reafirmar. Baixar o rosto — ela sempre fala com olhos grandes, sobrepondo-se aos de Josué — é uma forma de dizer que se trata apenas de modalidade nova de verdade. Melhor viver com essa “verdade possível” no coração: vai ser mais leve assistir ao desfile do calendário se ele pensar, às vezes, que o pai dele se importa. Fará mais sentido o amanhã se, vez ou outra, puder alegrar-se com o que os dias trarão. Se não pode ser fácil, que seja menos difícil. Esse aumento de vida sobre vida faz de qualquer arte de narrar a coisa mais antimimética que há, segundo o teórico Wolfgang Iser: você dobra a aposta da vida quando abre mais possibilidades com o real da linguagem; não se trata mais de imitar, o desafio é inventar.

Mas não é somente coerência o que resta para Dora continuar na narrativa: ela nos farta de instância e códice do narrar (ir de um estado para outro) ao não mais ir do Rio para Bom Jesus do Norte, mas sim indo da insensibilidade à sensibilidade, quando as cartas não serão mais jogadas no lixo ou sequer rasgadas.

Ela aprende que a vida deve andar por si mesma, pois o setor da culpa está separado do da consequência: Dora tem culpa pelo que acontece, mas por sorte apenas resgata a sua humanidade. A contingência a preenche como um ornamento que significa a vida.

Fernanda Montenegro em Central do Brasil l Foto: IMDb/Divulgação

O ponto de virada que toda narrativa pede, o ponto de mudança de um lugar para outro em que contingência e escolha individual executem bem os seus papéis, vem, em “Central do Brasil”, com a ida da insensibilidade à sensibilidade, a instância e circunstância da falta de linguagem (insensibilidade animalesca) para a salvação por sua via: com esse privilégio mágico de saber ler e escrever, fabular, anedotar sobre a aridez da vida e do sertão, esse itinerário líquido de dentro se contrapõe ao seco da paisagem. O menino e ela lidam com a vida como lidamos com uma pintura: não é verdade, mas vai ser menos difícil prosseguir diante da fatalidade brutal de que as coisas acontecem, queiramos ou não. Quando doer, a beleza do quadro pode amenizar ou não, mas a desordem da dor não reinará sozinha diante do valor maior da arte — harmonia e conjunto. A invenção mostrará que sabemos como começa isso de vida; tememos e sabemos que acaba, mas não as circunstâncias e motivos de como se dará esse percurso.

Nada deixa de doer porque sabemos que passa. Mas se soubermos, os danos podem ser menores, pois podemos dar baixas aqui e ali, mas não abandonar o barco e/ou jogar a toalha.

Para terminar, sem a pretensão de concluir, vamos ao meio, à travessia, não ao final. Vamos ao momento em que a virada se dá de forma definitiva.

As práticas de escrita de Dora criam rituais variados: psicanálise clínica, denúncia de injustiça e impunidade brasileiras, tornando a canseira de seus clientes ora tribuna, ora divã. No Nordeste, quando o mesmo recurso narrativo das oitivas que serão transpostas para a escrita e a materialidade do papel se repete, a cena se dá em outro rumo e em outra chave — a prosa, agora, não mais trabalha as tragédias da existência nacionais e contingenciais da vida. De divã ou tribuna de denúncia social, o signo muda e — nada mais evidente — durante uma festa de Bom Jesus do Norte, a cadeira de Dora, agora receptora de um discurso muito mais aberto à graça e à vida, ganha musculatura de reificação e celebração.

A última mensagem ouvida por Dora é a de um pequeno agricultor, que em sua fala para o santo agradece pela chuva e diz que cumpriu as suas promessas, com dez foguetes coloridos em sua homenagem. Dora sorri como nunca, como se, horas antes, ela não tivesse caído de fome, delírio e esgotamento após sair atrás do menino que, pela última vez, faz uso de um vocabulário agressivo — comum ao filme e às personagens.

Os foguetes queimam depois de girar muito, e a imagem tem forte semelhança com a simbologia da Roda da Fortuna ou do peão. Virada de uma iluminação escura e pesada, como a da Estação Central do Brasil, do apartamento de Dora, do trem pego por figurantes não malvestidos, mas adequados ao estilo dos trabalhadores rurais e de subempregos da cidade grande: se as roupas não são indecentes ou constrangedoras, são encardidas e surradas: a partir dali o ponto de virada mais forte se apresenta e se liga, mesmo sem dizer claramente, ao milagre da chuva, pela qual os foguetes coloridos agradecem. Milagre da vida urdida, insistente e bonita quando a água vem e faz a lavadura do seu ethos amargo. Dora, depois da escuridão e rito de mistagogia, acorda com um eloquente amanhecer, jamais apresentado, e ela, que foi pra proteger, está encolhida nas pernas magras de Josué, às quais, sem vergonha de ser frágil, agarra-se doce, numa fraternidade mais que amiga: materna. Se Josué nunca teve pai, e ela nunca teve país, ou os dois nunca tiveram, em verdade, ambas as coisas, eles encontram os seus equivalentes femininos: mãe e nação.

Carlos Augusto Silva

É professor de Literatura e História da Arte. Licenciado em Letras e História, é bacharel em Literatura e Especialista em Estética e História da Arte. Mestre em Estudos Literários, cursa o doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. É autor dos livros “Dicionário Proust”, “Proust e a História” e “Opção Crítica”.