Parecia que o coração de todos tinha endurecido

Parecia que o coração de todos tinha endurecido

Para já os teus olhos por aqui. Não tenho nada de consistente para te contar. Aliás, por amor, nunca mais me convides para as tuas lives. Devo parecer repetitivo. A morte continua misteriosa e, cada vez mais, irritante. Vi uma chuva de corpos cair sobre o Aeroporto de Cabul. No início, pensei que fossem apenas mais algumas daquelas bombas de alto poder destrutivo despejadas pelos militares norte-americanos. São bons em matéria de letalidade aqueles malvados. Contudo, os corpos celestes nada mais eram senão refugiados afegãos tomados por desespero inconteste, que tinham se agarrado à fuselagem da aeronave, fadigaram os músculos e despencaram de uma altura de quase dez mil pés. Já faz séculos que a humanidade anda sem pé, nem cabeça. Ninguém deu a devida importância para a cena esdrúxula. Não era todo dia que um ser humano se atracava com um avião de cargas para fugir do país natal. 640 pessoas subjugadas, amontoadas numa cabine onde só cabiam 100. O cargueiro seguia lotado de esperança e de melancolia também. Pode ser que a nossa capacidade de indignação já tenha se exaurido juntamente com a maior parte da água potável do planeta. Rios aéreos não se fazem com o verde dos teus olhos, baby. Carecemos de mais chuva e de menos lágrimas. Não é apenas a calota polar que está derretendo. Sinto também o humanismo se esvair entre os dedos da humanidade. O ano era 1972. Tudo começou com a cena da menina vietnamita correndo nua pela estrada, em prantos, de braços abertos, queimada por napalm. Quem é que iria querer um abraço escaldante como aquele, a pele se soltando das costas de um corpo tão pueril? A foto é considerada uma das mais surpreendentes e icônicas da história. Observa como os fatos tristes fazem muito mais sucesso do que os fatos contentes. A vida é feita de momentos; a maioria deles, tétricos. Nada mau para um sujeito que só sabe enxerga o lado ruim das coisas. Ninguém merece tanto pragmatismo. Um passeio por uma paradisíaca praia do Mediterrâneo. O plano inicial era catar conchinhas e estrelas-do-mar. Nem é preciso ser um poeta lusitano para compreender que navegar era preciso, embora, o mar nunca estivesse para peixe. Precisávamos menos plástico, minha cara. Todo o simbolismo da degradação da natureza pelo homem se resume ao plástico. Pois então: no meio dessa caminhada insólita tinha um menino sírio, de três anos, morto por afogamento, com o rosto afundado na areia. Fugiste a fuga dos adultos, meu pequeno; a fuga que não era a tua. Novo demais para escapar das sandices humanas. Onde houver gente haverá sempre uma epopeia carregada de drama, de sofrimento e de fanatismo. Por favor, querida amiga, entendo a tua justificável busca pela audiência, contudo, não tenho nada a compartilhar junto ao teu seleto público da internet, a não ser que tenho pensado seriamente em me inteirar menos dos fatos cotidianos. Pode ser que a cura de tamanho desencanto passe pela distração e pela frivolidade. É líquido e certo que vou me encharcar de vinho, dedicar-me à escrita de um novo livro. Aquela tola ambição de ser lido por multidões interessadas em leituras. Espero, sinceramente, que, quem sabe, um dia, alguém se valha desta obra para uma leitura mansa em frente à uma lareira ou, ao menos, utilize as páginas de papel como forma de combustão a fim de atear fogo à lenha. Cada um se aquece da maneira que julga mais viável. Sou menos vaidoso do que um cataclismo. E não tenho nenhum interesse legítimo em me associar às confrarias. Espero que, gentilmente, tu me perdoes. Se não puderes me perdoar, esquecer dos meus ais já será para ti o melhor alvitre. A prática forçosa do isolamento compulsório pelo vírus chinês — que se tornou solidariamente o vírus de todos os povos — acaba por me transformar no homem que sempre fui e contra quem tenho lutado ao longo de uma vida inteira. É reconfortante me reencontrar. Por mais que esse reencontro me aparta ainda mais do mundo, feito um avião carregado de convicções a decolar de um aeroporto tomado pelas incertezas. Aliás — não sei se soubeste de outra partícula miserável dessa história — encontraram dentro do trem-de-pouso de um avião militar americano os restos mortais do que parecia o corpo de um jovem refugiado afegão. Os jornais registraram que o rapaz fugia de outro ser humano. Em vão. Não se pode escapar do homem.  

Eberth Vêncio

É escritor e médico.