O ser humano é, certamente, a manifestação de vida mais curiosa a já ter passado pelo mundo. O homem está sempre em busca de autoafirmação, precisa que lhe digam que está no caminho certo, por mais que sua intuição lhe sopre a verdadeira resposta, que seu coração intimamente conhece. Necessitamos de aprovação, temos que saber que estamos agradando. A menor hipótese de decepcionar aqueles que julgamos caros nos apavora. O sentimento de fracasso é, sem sombra de dúvida, um dos venenos mais mortíferos para a vaidosa alma do homem. O convívio em sociedade torna ainda mais profundas as muitas diferenças a nos distanciar. Vivendo no reino das aparências, somos instados a tomar parte num jogo, em que sairia vencedor quem conseguisse o melhor diploma, o emprego mais qualificado, o carro mais moderno, a casa mais suntuosa. Fomos apresentados à aventura da existência sem saber o que teríamos a mostrar, se seríamos capazes de ir além do que nos permite a natureza, a Providência, o destino ou seja lá como se possa classificar. Nascemos cheios de questões muito particulares, muito bem guardadas, de dúvidas, de incertezas, de dilemas existenciais, e isso já seria o bastante para definir o homo sapiens como a espécie mais desgraçada da criação. O infeliz do gênero humano precisa que o avalizem quanto ao que ele é ou deixa de ser, e essa é outra tragédia incontornável do ser gente. As grandes transformações sociais começam dentro de cada homem, daí ser impossível, à luz do pensamento de gênios como o sociólogo alemão Max Weber (1864-1920), uma pretensa salvação da humanidade. A humanidade só se salvaria, irredutivelmente, se cada um de nós se desse conta de suas faltas e se emendasse, o que, é uma lástima, nunca vai acontecer. Cada um é responsável por sua própria redenção — ou sua própria desdita —, sendo sempre possível, evidentemente, arrepender-se, de coração, até o último segundo, tomar um caminho diferente e refazer a vida tanto como possível. A jornada de autoaceitação de um garoto junto àqueles que o amam é o tema de “Boy Erased: Uma Verdade Anulada” (2018), do ator e diretor australiano Joel Edgerton. Uma mulher de meia-idade também parece devotada a dar um novo rumo ao que resta de si, mas, pasmem, enfrenta a resistência da comunidade da cidadezinha que escolhe para abrir seu negócio e tocar a vida, conforme se vê em “A Livraria” (2017), da espanhola Isabel Coixet, dois filmes vibrantes em seu lirismo, como os outros três dessa lista, todos novidades no acervo da Netflix. O relógio nunca para de correr e muitas vezes essas joias vão para o fundo do mar, sem que a gente nem se dê conta. Corra você também e repare esse equívoco.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

Joel Edgerton vem se saindo melhor que a encomenda como diretor. Em “O Presente” (2015) já havia surpreendido as expectativas e apresentado um trabalho coeso, exatamente do que precisava a força da narrativa. Neste seu segundo filme, em que também atua como no antecessor, Edgerton se vale de um enredo que poderia descambar para um dramalhão sem consequências para contar uma história da maior relevância de uma forma altiva. Garrard Conley é o filho único de uma típica família tradicional americana do Arkansas. Ao ingressar na universidade, tem uma experiência sexual traumática com um colega de quarto. O embate do personagem frente a seus próprios desejos quando dessa sequência é o clímax do filme e a partir dele tudo muda na vida de Garrard. O outro estudante, certamente temendo represálias, se previne e telefona para os pais do protagonista, dizendo que fora seduzido e molestado por ele. Convicto de que a vida perfeita que construíra à custa de tanto sacrifício está prestes a ruir para sempre, seu pai, Marshall, dono de uma concessionária de automóveis e pastor da Igreja Batista, inscreve o garoto num programa para reversão de condutas indesejáveis, o que inclui abuso de álcool e drogas, consumo de pornografia, prática de violência doméstica e homossexualidade. Tudo parece ir bem na medida do possível, até as coisas começam a sair do controle. Garrard identifica os expedientes de tortura psicológica empregados pelos “terapeutas” e os denuncia à mãe, Nancy, que aos poucos se convence de que a iniciativa do marido não fora uma boa ideia. Tomando por base o livro em que o protagonista relata essa sua vivência, “Boy Erased” é cirúrgico ao esmiuçar o procedimento de verdadeiras seitas fundamentalistas coalhadas de charlatães e picaretas de toda sorte que se aproveitam das fraquezas mais íntimas de alguém para ganhar dinheiro. Cada um sabe muito bem o que fazer de sua sexualidade — e é claro que se pode estar assustadoramente infeliz sendo-se o que se é. Contudo, questões complexas exigem respostas pensadas (e maduras), malgrado a opção por se iludir seja uma constante na história da humanidade desde o começo dos tempos. A propósito, um dos coordenadores do projeto casou-se. Com outro homem.

É muito fácil deixar-se seduzir pelo comodismo do ensino tradicional, aceitar bovinamente o que vai escrito nos livros e não questionar nada, imaginando que tudo ali tem a natureza de verdade absoluta. Em “Duas Rainhas”, a diretora Josie Rourke deixa clara sua compreensão acerca do enfrentamento de duas mulheres poderosas, cada qual com uma personalidade diametralmente oposta uma da outra, disputando nada menos que a Coroa do Reino Unido. Novamente segundo os registros oficiais, Elizabeth I e Mary Stuart, apesar de primas, nunca teriam se encontrado na vida, mas por óbvio que a narrativa cresce ao abordar esse possível súbito approach entre duas das figuras mais poderosas da Terra. Mesmo no filme, a rainha e sua adversária — e postulante ao trono — dispõem-se na presença uma da outra numa única sequência, forte o bastante para desmistificar as falsas ideias propaladas em torno de uma e outra. Apesar de assumidamente feminista, a produção também é cooptada pelo que diz a cartilha do politicamente correto e destina a rival da soberana estabelecida a mera natureza de usurpadora.

O enredo desse drama sobre a Segunda Guerra Mundial — com tudo o que um filme sobre a resistência frente à dominação alemã tem de mais lancinante — gira ao redor de Francesc Boix, ex-soldado que servira durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), e fora feito prisioneiro em Mauthausen, um dos campos de concentração nazistas quando do advento de mais uma série de batalhas, dessa vez em escala global. Ele é requisitado para atuar como fotógrafo do diretor do campo, o oficial Paul Ricken, registrando o desempenho das tropas germânicas. Testemunha involuntária da história, Boix fica sabendo que a Alemanha não será páreo à contraofensiva dos Aliados, o que suscita nele a obsessão em manter a salvo tudo o que pôde documentar por meio de suas fotos, a fim de não permitir que os líderes nazistas tivessem qualquer tipo de benefício num futuro julgamento.

Jon Alpert é um psicopata. Ou um paranoico. Ou apenas alguém com tempo — e dinheiro — de sobra. Só assim se admite seu trabalho de passar quase 40 anos na cola de Fidel Castro (1926-2016), a partir de 1979, 20 anos depois da destituição do governo autocrático de Fulgencio Batista (1901-1973), quando se instituiu a ditadura castrista, até a morte do déspota, aos 90 anos. À medida que a narrativa avança, contudo, se reconhece o mérito jornalístico da empreitada, ainda que, frise-se, ao final reste inequívoca a simpatia — até uma ponta de reverência — por parte de Alpert a Castro. O retrato das parcíssimas transformações sociais por que passa Cuba — “aqui nada muda, as coisas só ficam mais velhas”, diz um personagem a certa altura — é o ponto alto de “Cuba e o Cameraman”, que torna-se mesmo sublime ao deixar para a eternidade a saga dos irmãos Borrego.

Tentativas de mudar o estabelecido são sempre difíceis, quando não resultam infrutíferas, especialmente em se sendo mulher, de meia-idade e num lugar que não é o seu. Em plenos anos 1950, uma livreira chega a uma cidadezinha no litoral da Inglaterra disposta a deitar raízes e seguir com seu negócio. Para tanto, terá de se investir de uma boa camada de destemor, a fim de vencer o conservadorismo dos novos vizinhos, o que a fará se valer das mesmas armas que seus adversários.