Menino preguiçoso — ainda que dotado de um talento especial para a música — e tido como burro pelos padres do Colégio São Bento, em Salvador, malgrado devorasse todos os livros da biblioteca do pai, o maluco-beleza Raul Santos Seixas (1944-1989) se metamorfoseava nos palcos. Vindo de uma família de classe média, Raul comeu o pão que o diabo amassou até sair do chão do mundo e ir parar nas estrelas, de Corcel 73 e tudo, do jeito que sempre quis. Depois de relativo sucesso com a bandinha Raulzito and The Panters, fundada por ele na maior despretensão, mais pra tirar uma onda mesmo, em 1968, aos 24 anos, Raul se muda para o Rio de Janeiro, imaginando que a Cidade Maravilhosa lhe sorriria logo, como faz com (quase) todo mundo. O Magrelo, como o chamava Tim Maia (1942-1998), estava redondamente enganado. Raul ficou mais magro do que de costume, praticamente sem conseguir trabalho como músico, se encostando aqui e ali, onde dava, numa vida cigana que, reza a lenda, durou pelo menos dois longos anos. A sorte começou a virar mesmo em 1973, quando gravou “Metamorfose Ambulante”, do álbum “Krig-ha, Bandolo!”, um clássico ao expor na melodia doce os dilemas existenciais de um careta convicto tornado um doidão da pesada. “Let me Sing, Let me Sing” também foi sucesso instantâneo ao mesclar o rock à Elvis Presley (1935-1977) com elementos do baião como tocado por Luiz Gonzaga (1912-1989). E assim conseguiu a façanha de registrar 312 composições, sempre fundindo a maior quantidade de ritmos que podia — samba, brega, iê-iê-iê — em canções antológicas, que tocam no rádio até hoje.
No Rio de Janeiro, Raul Seixas conheceu Paulo Coelho e o resto é história. Uma história permeada por idas e vindas, loucura, satanismo e muita, mas muita droga. Coelho admite, conforme se vê no documentário “Raul — O Início, o Fim e o Meio” (2011), de Walter Carvalho, que foi o responsável por apresentar as substâncias ditas mágicas que os transportavam para o mundo criativo onde debaixo de cada pedras da rua havia uma letra genial, prontinha para ser vertida para o papel. Raul, sempre intenso, sempre aberto e, o principal, sempre voltado aos assuntos proibidos, aos temas cuja explicação nunca convencia ninguém, embarcou. Ele cria verdadeiramente na vida no espaço, em Deus como consciência extracorpórea desvinculada de doutrinas religiosas, amarras perigosas para a humanidade. Paulo Coelho ainda não tinha nada de mago — se é que algum dia passou a ter —, mas junto com Raul deixou o Brasil menos previsível, menos careta.
Se Paulo Coelho não se responsabiliza por ter dado o primeiro empurrão para que Raul Seixas despencasse no precipício, ao menos teve a decência de reconhecer que fora um dos que mais influenciou o roqueiro a tomar parte numa seita satânica baseada nos relatos e orientações de Aleister Crowley (1875-1947), um papa do demonismo. A coisa toda era uma maçaroca que punha num mesmo caldeirão esoterismo, cabala, tarô, maçonaria e magia negra. O sacrifício de animais era visto pelos asseclas de Crowley como uma expiação para os pecados, sob o argumento tresloucado de que quanto maior a falta, maior deveria ser a carnificina. Paulo Coelho se diz arrependido, mas nesse particular não abre a boca sobre Raul que, de acordo com ele, ainda o teria entregado ao DOI-CODI, a polícia política da ditadura militar (1964-1985). Coelho chegou a ser detido.
Apesar de ir se afundando aos poucos no lodo das drogas, Raul seguia incólume na carreira. Exilado nos Estados Unidos, lançou “Gita” (1974), um fenômeno de vendas e de ampla aceitação junto à crítica. A música “permite” a volta de Raul ao Brasil. Ainda compunha com o antigo parceiro, a despeito da amizade comprometida, mas mesmo a sociedade artística estava com os dias contados. Raul e Paulo compõem “Novo Aeon” (1975) e “Há 10 Mil Anos Atrás” (1976), mas o épico onírico “O Dia em que a Terra Parou” (1977) marca o início de uma fase solo para Raul Seixas, que dura apenas um ano. Como a mosca da sopa, Paulo Coelho volta a abusar Raul em algumas letras de “Mata Virgem” (1978), esse, sim, o canto do cisne da dupla.
Tal como a fênix baiana que era, agora aos trancos e barrancos, lutando por uma vida que ainda era sua, mas que lhe escorria por entre os dedos, alquebrado que estava devido à perda de 70% do pâncreas para a bebida — condição que se agravava por causa do novo vicio, em éter —, nos últimos anos Raul passou a se apresentar com o conterrâneo Marcelo Nova que, como ele no princípio de sua trajetória musical, só era conhecido na Bahia, no underground do underground, graças a uma banda maldita, cujo nome nem podia ser pronunciado na conjuntura de bruxas que teimavam em não virar cinzas depois do inferno do regime. A Camisa de Vênus convidou e Raul deu uma canja. O que deveria ser um encontro pautado pela casualidade tornou-se o novo ganha-pão do veterano, escorraçado das gravadoras do mainstream. Raul foi com Nova e sua trupe até o fim. Voltou para São Paulo depois de uma apresentação memorável em Brasília e morreu, em 21 de agosto de 1989, dormindo na cama do quarto do apartamento 1003 do edifício Aliança, aos 44 anos. Sempre tentando outra vez.