Guardar na lembrança amores já findos, sonhos já mortos, o esquecimento ao longo das dores que se prolongam. O poeta chileno Pablo Neruda (1904-1973) sabia das coisas. Nascido Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto, Neruda mudara de nome a fim de evitar perseguidores, a começar do próprio pai, que lhe reprovava a vocação artística. Malgrado a vida turbulenta que levara, graças ao envolvimento com o Partido Comunista do Chile, pelo qual se elegera senador na década de 1940, Neruda, a despeito da grandeza de sua poesia tão simples quanto intensa, não pudera evitar sentir o se arrastar do tempo, sempre preparando falsetas para a humanidade. Na ilha de Capri, na Itália, paraíso tornado maldito devido às circunstâncias em que tivera de inserir-se, o poeta dera continuidade à vasta obra que o celebrizou, plena de composições em que relata o amor como um sentimento nada sublime e até bastante amargo — justamente essa a qualidade que o faz apto a resistir à boçalidade da política e à loucura da guerra. Em “Tédio”, publicado no início da carreira, Neruda, como não poderia deixar de ser, fala de amor, mas também do quão modorrenta pode ser a vida, principalmente mediante as agruras que nos apresenta a sorte. O agastamento frente às muitas situações maçantes da comezinha existência humana nunca deixou o homem que, teimoso, não se submete e procura uma diversão qualquer. Praticar exercícios físicos, uma boa leitura, dedicar-se a um hobby estimulante, a oração… Há diversas maneiras de se combater o tédio, tão avultado a partir de março de 2020, quando da eclosão da pandemia de covid-19. Num mundo distópico em que a desigualdade torna-se a soberana de todas as coisas, tendo por consortes a injustiça, a desigualdade, a perversão, o desespero, a anarquia, não há lugar para gente fraca — nem apática, a exemplo do que se vê em “O Poço” (2019), do diretor espanhol Galder Gaztelu-Urrutia. E o que dizer de uma trama meio acelerada, com um leitmotiv que prima pela originalidade, sem pejo algum de ser rotulada como politicamente incorreta? Em “Eu Me Importo” (2021), o britânico J. Blakeson conta a história de uma estelionatária que, se dizendo cuidadora de idosos, tenta dar azo a mais um de seus cambalachos; no entanto, as coisas não correm exatamente do jeito que ela previa. Essas e outras três produções no acervo da Netflix estão ao dispor de quem necessita dar um tempo no tempo que se estende além do tempo, da mais nova para a mais antiga. A vida passa rápido demais para a gente se conformar com o tédio (e mesmo um imprevistozinho às vezes tem a sua graça).
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

“Isto não é uma comédia” poderia ser a advertência no começo de “Eu Me Importo”. A narrativa, de uma originalidade nem sempre encontrada no cinema, traz um thriller ágil, que se vale de alguns easter eggs, algumas surpresas, a fim de prender o interesse da audiência logo no princípio da trama. Se não se trata de uma comédia típica, constituída de todos os muitos clichês do gênero — cada vez mais pobre, culpa justamente do comodismo de grande parte dos diretores —, o filme também não é mero suspense. Ao permitir a junção perfeita de elementos cômicos e dramáticos, “Eu me Importo” tem requinte de sobra, tal como Marla Grayson, a ladra classuda que vive de dar golpes em idosos. Vai por mim: você vai achar muita graça nela.

Certos filmes têm algumas peculiaridades: ou capturam o espectador de imediato ou estão condenados a se arrastar indefinidamente, até que, afinal, subam os créditos e o público respire aliviado. Issa Rae e Kumail Nanjiani fazem com que “Lovebirds” figure na primeira categoria. A comédia de Michael Showalter pode até não se valer de um roteiro brilhante, mas o casal de atores principais nunca deixa a trama resvalar no óbvio, isto é, eles são a razão fundamental da história que está sendo contada. O vigor dos dois é o que interessa aqui. Rae e Nanjiani são os típicos atores que fazem de tudo pelo sucesso de um personagem, vestem a camisa, dão o sangue, se constituindo na excelência do próprio filme. O texto brota da boca deles com tamanha espontaneidade que é impossível não se flagrar pensando se aquilo é mesmo uma história ficcional, se por alguma mágica tão característica da sétima arte não fomos tragados para uma realidade paralela qualquer. O carisma é a alma desse negócio, teoria que eles aplicam como ninguém. Showalter não reinventa a roda, bem longe disso, mas deixa muito claro que não está para brincadeira, mesmo com a inventividade limitada do enredo. Em “Lovebirds”, uma noite em que dois amantes tentam se reconciliar pode ter muitos desfechos. Menos o que se espera.

Charlize Theron tem se notabilizado por defender com propriedade histórias plenas de ação que não dispensam um roteiro muito bem escrito, em que tudo acontece no devido momento, no lugar exato e pelas razões certas, haja visto seu desempenho em “Mad Max: Estrada da Fúria” (2015) e “Atômica” (2017). O recurso da violência, empregado com justiça, torna-se nada mais que um trampolim para que o público alcance a complexidade da mensagem que se deseja levar à tela, conforme também se denota em “The Old Guard”. Andy, a personagem de Theron, e os companheiros formam um exército capaz de viver eternamente, se prestando à condição de mercenários século após século sem despertar a estranheza dos mortais, por serem dotados da mesma aparência que eles. A hegemonia da falange é colocada à prova, contudo, quando sabem que existe uma outra criatura que perdura infinitamente, tão expedita quanto eles no uso de armas e na prática de lutas e artes marciais, o que se não pode admitir, ou vão acabar reféns da adversária. Baseada na graphic novel popularizada graças às batalhas sangrentas, a versão cinematográfica de Gina Prince-Bythewood para “The Old Guard” é fiel aos quadrinhos ao mesmo tempo em que confere mais profundidade dramática ao argumento central da história que lhe deu origem.

É possível estabelecer algum paradigma que enuncie que da relação familiar surjam grandes filmes? Tomando-se por exemplo Ethan e Joel Coen e mais recentemente Ben e Josh Safdie, pode-se fazer tal apontamento sem medo. Com o subestimado (e bota subestimado nisso!) “Joias Brutas”, os irmãos Safdie cristalizam a potência de seu talento, já aprofundada em “Bom Comportamento” (2017). Aqui, eles mostram que não têm nenhum medo do queixo pra cima na cara dos críticos e que trabalham duro a fim de alcançar um resultado digno da excelência pela qual o público anseia sempre. O personagem principal, Howard Ratner — sujeito ensaboado, dado a trambiques, que administra seu negócio, uma joalheria meio megalomaníaca, sem muito capricho (e nem muito apreço às leis, diga-se) —, parece na marca do pênalti num jogo sem goleiro. Ratner conseguiu para o seu plantel uma gema rara, ainda em estado natural, contrabandeada da Etiópia no ventre de um atum congelado. Muita informação para uma simples fita de suspense? Que nada! Tudo se encaixa à perfeição conforme a trama central se desenrola, mostrando um Ratner mais e mais acuado pelas circunstâncias que seu procedimento criminoso gera, a tensão exata de que um bom filme do gênero não pode prescindir. Adam Sandler apresenta um desempenho que beira o primoroso, saindo completamente da pele do comediante histriônico, e convence, mesmo não abandonando de todo os costumeiros tiques adquiridos de anos e anos nos besteiróis que lhe garantiram fortuna, mas depõem contra o currículo de qualquer ator que se preze. Num filme tão invulgar, sobra espaço até para um astro da NBA abiscoitar uns instantes de glória também no cinema. Kevin Garrett, igualmente muito persuasivo no “papel” de um novo-rico ávido por um pouco de sofisticação, dá ainda mais arrojo à história, corajosa e bem-sucedida empreitada de dois diretores que partilham o dom de tornar um filme tão valioso quanto quiserem.

Numa prisão, detentos são alimentados por uma plataforma descendente. Esse mecanismo faz com que os que estão nos níveis mais altos comam em demasia, enquanto os dos andares mais baixos passem fome, até que um dos confinados se rebela e tenta transformar o sistema, sem entender que há uma lógica na sua perversão. “O Poço” é uma alegoria inteligente e criativa, ainda que um tanto chocante, sobre a sociedade num país qualquer da América Latina, desigual e injusto, mas também do próprio gênero humano, onde quer que se estabeleça: é da natureza mesma do homem, completamente perdido no mundo, subjugar seu próximo, aprisioná-lo e tirar dele todas as vantagens possíveis. Até um naco a mais de carne.