Filmes demoram muito tempo para ser concluídos, demandam muita mão-de-obra, muitos braços fortes o bastante a fim de carregar toneladas de equipamentos e profissionais qualificados para operar os tantos softwares que botam uma história diante dos olhos de espectadores do mundo inteiro nas telas dos cinemas. Antes da pandemia de covid-19, a partir de março de 2020, a indústria já vinha passando por transformações profundas. As salas de projeção deixaram de uma vez por todas de representar o território por excelência do cinema. Também elas tiveram de se sujeitar ao ostracismo graças à dialética da tecnologia, que promove mil progressos, mas altera os costumes de tal forma que nem nos apercebemos do quão mudado se nos apresenta o novo cenário, apenas absorvemos a nova conjuntura e vamos em frente. Evento parecido já havia se dado ao longo dos anos 1990, quando da ascensão das igrejas evangélicas, que passaram a ocupar teatros e cinemas, migrados para os grandes complexos comerciais. Agora, os próprios shoppings se tornaram a bola de vez e vão cedendo lugar às plataformas de streaming. À medida que cessa tudo o que antiga musa cantava, nos habituamos às crueldades do admirável mundo novo e louvamos as vantagens que ele igualmente traz. Ferramentas como a Netflix se tornam as grandes divulgadoras de filmes que, sob o outro paradigma, restariam por completo ignorados, ou pelo orçamento tão apertado a ponto de não sobrar muito para a distribuição, ou pelo caráter espinhoso do roteiro. Uma família de delinquentes sentimentais, por exemplo, estaria nos grandes cinemas pelo tempo em que “Assunto de Família” (2018), de Hirokazu Kore-eda, já consta do catálogo da Netflix? Ou o brilhante “O Cidadão Ilustre” (2016), dirigido por Gastón Duprat e Mariano Cohn, com a história de um escritor atormentado por suas lembranças? Pois eles estão, ainda que mesmo alguns assinantes do serviço não se deem conta, junto a outras três histórias da mesma natureza — e nenhuma vinda da terra do Tio Sam —, em ordem contracronológica. Os tesouros verdadeiramente enriquecedores sempre estão mais perto do que a gente pensa. Comece sua busca.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

A quantas humilhações uma mulher, oriental, já no ocaso da existência — e bem-sucedida — precisa se submeter a fim de se enquadrar, de não ferir as susceptibilidades alheias, incluindo-se aí as das próprias filhas, mimadas, rudes, injustas? Seria pedir muito uma velhice tranquila, sem maiores sobressaltos, assistida por quem deveria se sentir obrigada a lhe devolver um pouco da dedicação que recebera? Depois de comer o pão que o diabo amassou nas mãos de um marido mulherengo e negligente, Lin Shoyng consegue virar o jogo: de vendedora ambulante de rolinho primavera torna-se dona do próprio negócio. Trinta anos depois, ele volta, mas pouco mais que um espectro: está à morte, endividado, contando apenas com a nova companheira. As filhas ficam a par da situação do pai e passam a ajudá-lo, mesmo depois de morto. Coagem Lin a bancar o funeral do agora ex-marido, o que lhe reserva surpresas desagradáveis, como receber a amante dele sem nem mesmo saber de quem se trata. Muitas vezes, por alguma paz, se concorda em pagar um preço alto demais, abusivo, escorchante. Principalmente quando já não se tem mais a juventude por alento.

“A Sun” começa de maneira brusca e, assim, o espectador já fica esperto quanto ao que pode esperar do drama taiwanês do diretor Chung Mong-hong. Mas que ninguém se desestimule: o enredo é todo permeado por respiros cômicos — e eles são mesmo necessários. A pobreza, ainda que num país rico, é implacável, e ai daquele que pense que pode subverter o estabelecido. Contudo, seria tolo afirmar que o risco social é o responsável por fomentar a criminalidade; o fato é que a alma de todo homem tem sua face sombria — e cada um deve mantê-la sob controle. E controle — e, por extensão, autocontrole —, é uma ideia cara aos orientais. Um pai de família honrado não se prestaria a aturar os deslizes de caráter por parte de um filho, muito menos seus delitos. Ao tomar conhecimento da prisão de A-Ho, A-Wen exige que o caçula seja sentenciado com uma pena dura, o que revolta sua mulher, Qin, mãe do rapaz. A partir daí, o que se segue é a total desintegração do que até tão pouco tempo era um lar (e uma família). Ainda que haja uma ou outra tentativa pontual de contornar a questão, o casal, juntamente com o filho mais velho, pressentem que nada vai voltar ao ponto anterior à ruptura. A vergonha que todos sentem pelo destino de A-Ho, tornado ainda mais significativo numa sociedade que valoriza sobremaneira a austeridade da conduta social, o constrangimento, o remorso, tudo converge para que não consigam se encontrar outra vez. O sol pode ser o que há de mais justo no mundo, mas só pode iluminar e emprestar seu calor a ambientes que se abram para ele. Do contrário, fica eternamente preso em meio à nuvem de ignomínia e pequenez que flutua sobre a natureza do homem desde sempre.

Osamu sustenta sua família nada convencional praticando pequenos furtos, no que é ajudado por seu filho. Ao fim de mais um dia de delinquências, se deparam com uma garotinha, aparentemente perdida. Eles relutam em acolher a menina, afinal, o dinheiro que conseguem quase não é suficiente, mas a mulher de Osamu resolve ficar com a pequena ao saber das condições em que ela vive. Essa família bandida parece feliz, até que um incidente vai revelar segredos que irão por à prova os laços que os mantém juntos. Ao abordar temas polêmicos como o de um clã inteiro que se entrega à marginalidade sem o menor drama de consciência, o filme já marca um golaço ao não se permitir patrulhar pelo politicamente correto e levantar questões complexas com humor e uma profundidade que nem todo mundo suporta.

Filmes de mães que abandonam o lar e relegam os filhos à própria sorte nunca são levados às telas impunemente. Depois de um distanciamento de mais de 30 anos, Anabel volta a ficar de frente com Chiara, a filha que abandonou. Chiara teria todos os motivos do mundo para não querer mais encontrar a mãe; no entanto, por sentir que a relação ainda pode ser reparada, sai à sua procura. Sua ânsia por fazer o tempo voltar, como num estalar de dedos, e ter pela mãe o afeto que a própria Anabel dispensara é tanto que lhe faz uma proposta inusitada: quer que viajem juntas e passem dez dias num lugarejo perdido entre a Espanha e a França. Este é um drama sobre dores, mágoas, murmúrios, emoções. A leviandade de Anabel, sua ausência na vida de Chiara, a solidão que a filha fora obrigada a vivenciar desde tenra idade por sua culpa, todas essas parecem questões menores se tomadas à luz do sentimento que se apossa das duas. A fotografia é um achado em meio a um filme o seu tanto longo em demasia, com silêncios profundos (e imprescindíveis) que se sucedem à medida que os diálogos, estudadamente pausados, vem à tona, desferindo golpe acima de golpe sobre o espectador, mas com doçura. A Chiara de Bárbara Lennie é mais um dos bons predicados dessa história, que se não termina bem, termina boa. Às vezes, nem as mães são felizes.

Em “O Mundo como Vontade e Representação”, publicado em 1818, o filósofo polonês Arthur Schopenhauer (1788-1860), defendia a ideia da vida sob a forma de uma vontade de vida, isto é, a vida seria uma mera prospecção do homem acerca de seus desejos mais obscuros. O homem não sabe querer, pois ao querer já espalha destruição por todo lado, e, portanto, há que se negar toda vontade, mesmo (ou em especial) as que, aparentemente, possam induzir a supostas boas intenções. Depois de um discurso o seu tanto ácido na cerimônia da entrega do Prêmio Nobel de Literatura, com o qual é agraciado, Daniel Mantovani, um bem-sucedido escritor que saíra de Salas, na Argentina, onde nascera e vivera até os 20 anos e fora viver em Barcelona, na Espanha, começa a sentir os efeitos autodestrutivos de sua sinceridade indomável. Os compromissos mais importantes são cancelados, sobra um ou outro simpósio ou palestra menos insignificante, e uma série de homenagens que o prefeito de Salas, justamente de Salas, houve por bem lhe dedicar. Daniel não está à beira da falência ou passando algum apuro de dinheiro, não se trata disso: o que o move é um misto de vaidade — porque, como ele mesmo reconhece, um escritor é feito de pena, papel e vaidade —; orgulho por, depois de haver desdenhado do Nobel, sua cidadezinha ter se lembrado dele; e, quem sabe, alguma condescendência. Por mais que tenha vivido os últimos 40 anos dizendo a si mesmo que seu passado o incomodava, de maneira consciente ou não embarca para a Argentina, sequioso por reencontrar esse passado. E o passado de fato permanece lá, mas diferente, como ele próprio. Como se Salas tivesse dedicado quatro décadas a fim de arquitetar uma vingança contra o filho ilustre, mas soberbo, uma sucessão de eventos começa a se abater sobre Daniel, primeiro apenas vexatórios. O constrangimento logo cede lugar a situações que exigem dele posições mais duras, como artista e como indivíduo. O escritor é impingido a tomar parte em diversas polêmicas, ainda que involuntariamente em algumas circunstâncias, e sua permanência na cidade natal se torna insustentável. O sermão (mais um) com que ataca as “autoridades” salenses, inclusive um autoproclamado artista plástico, presidente de uma associação de classe, que manipula o resultado de um certame de pintura que recusara seu quadro a fim de ser um dos vencedores, é, já faltando pouco mais de vinte minutos para o encerramento, o ápice do enredo. Sua forma de compreender a política, a arte, a cultura — palavra que lhe provoca asco —, são lições de vida para qualquer um, a despeito da época em que se esteja, num roteiro que não demanda nem o mínimo retoque. No surpreendente final, a pergunta que resta nas cabeças e nas bocas é: que diabos ele foi fazer lá? Mas a conclusão é óbvia e vem de imediato. Valeu a pena.