Filme sobre Renato Russo é esquemático e simplista

Filme sobre Renato Russo é esquemático e simplista

Apesar da boa atuação do ator Thiago Mendonça, “Somos Tão Jovens”, sobre a vida do cantor e compositor Renato Russo, criador do Legião Urbana, é esquemático e simplista

Diferentemente de Hollywood, onde abundam cinebiografias épicas como “Lawrence da Arábia” (1962), “Ray”(2004), “Ali” (2001) e “Lincoln” (2012), esse é um gênero em formação no cinema brasileiro. Embora existam alguns exemplares cultuados pela crítica, como “O Homem da Capa Preta” (1986), no qual José Wilker encarna o célebre deputado Tenório Cavalcante, e “Lúcio Flávio — Passageiro da Agonia” (1977), com Reginaldo Faria fazendo o papel título, ainda não temos uma tradição sólida. Impera o jogo da tentativa e do erro. Para cada trabalho brilhante como “Heleno”(2011), que retrata a vida do polêmico jogador de futebol Heleno de Freitas, protagonizado por Rodrigo Santoro e dirigido por José Henrique Fonseca, existem diversos vexames como, para ficar no campo do futebol, “Garrincha — Estrela Solitária” (2003), no qual o bom ator André Gonçalves entrega a pior interpretação de sua carreira, sob a batuta amadorística do diretor Milton Alencar. Na produção recente, filmes fracos ou pouco inspirados, como os excessivamente apologéticos “Lula, Filho do Brasil” (2009) e “Chico Xavier” (2010), o novelesco “Olga” (2004) ou o thriller de ação descerebrada travestido de cinebiografia “Besouro” (2009), dividem o cenário com igual ou mais destaque do que longas interessantes como “Madame Satã” (2002) e “Quem matou Pixote?” (1996).

As cinebiografias de músicos são relativamente comuns em nosso cinema. Des­con­tando os incontáveis documentários sobre Vi­ní­cius de Morais, Paulinho da Viola, Caetano Veloso, Chico Buarque, Magda Tagliaferro, Nelson Freire, Herbert Viana, Titãs etc, há diversos filmes de ficção. Alguns são desperdícios lamentáveis, como o equivocado “Villa-Lobos — Uma Vida de Paixão” (2000), no qual o diretor Zelito Viana queimou o tema com um roteiro pobre e uma direção de atores pesada, transformando Antônio Fagundes numa caricatura grotesca de nosso maior compositor erudito. Outros são trabalhos interessantes e pouco pretensiosos como “Noel — Poeta da Vila” (2006), de Ricardo Von Steen. Curiosamente, embora isso possa desagradar muitos PIMBA (Pseu­dointelectuais Metidos a Besta), o mais bem-sucedido exemplar do gênero é o subestimado “Dois Filhos de Francisco” (2005), sobre a trajetória da dupla sertaneja goiana Zezé Di Camargo e Lucia­no, dirigido por Breno Silveira, um filme muito bem construído, divertido e com uma interpretação notável de Ângelo Antônio. O mesmo Breno Silveira não conseguiu se superar com o recente “Gonzaga — De Pai Para Filho” (2012). Em todo caso, apesar das muitas tentativas e boas intenções ainda não surgiu nenhuma obra-prima.

Renato Russo: um mito

Renato Russo
O recém-lançado “Somos Tão Jovens”, do cineasta Fernando Mo­rello, sobre a juventude de Renato Russo e a formação da banda Legião Urbana, mantém a escrita. Fica na metade do caminho. É um filme com pontos altos e pontos baixos. Imagino que deve dividir a opinião do público e da crítica.

Tentei ser o mais isento possível. Eu, como parte considerável de minha geração, fui admirador da banda. Não peguei seus tempos áureos, mas acompanhei atento aos últimos respiros. O primeiro vinil (novo) que comprei foi “Desco­brimento do Brasil” (1993). Numa época na qual o acesso à informação e produtos culturais era muito mais difícil do que hoje, esse disco foi uma sensação em minha turma na Escola Estadual Presidente Costa e Silva, em Goiânia. Também colecionei entrevistas, reportagens, livros e algumas das raras aparições televisivas, gravadas em fitas VHS. Em 1995 cheguei a escrever uma peça, com quase 100 páginas, baseada em “Eduardo e Mônica”. Diz a lenda que foi montada por um grupo de teatro no Estado do Pará. Como o texto caiu na mão deles, não tenho a menor ideia.

Com o tempo, minha admiração por Renato Russo foi ficando cada vez menor. Eventualmente ainda escuto, mas com senso crítico. O que é natural, considerando que sua estética é, eminentemente, adolescente. Simplesmente passei da idade. Virei tio. Analisando em perspectiva, sua visão de política, moral, ética, amor, relacionamento etc, é bastante ingênua. Ademais, conhecendo melhor suas influências diretas, como Bob Dylan, Beatles, The Cure, Joy Division ou The Smiths, a discografia do Legião Urbana não resiste à comparação.

Mas, principalmente, tornou-se incontornável o fato de que, nos anos que antecederam sua morte, Renato Russo estava estagnado ou regredia criativamente. Os dois últimos discos do Legião Urbana foram fracos em comparação com os anteriores. Seus álbuns solo, apesar de bem produzidos, representavam passos atrás em termos criativos. O primeiro foi basicamente de música pop norte-americana, o segundo de música pop italiana. Afora uma ou outra faixa mais experimental, as canções românticas escapistas dominavam o repertório. Talvez fosse resultado da doença, mas, diferente, por exemplo, de Cazuza, que, apesar de exibir cacoetes da esquerda festiva, evoluía artisticamente enquanto era consumido pela Aids, Russo parecia estar se esgotando. Dava a sensação de que sua obra estava praticamente fechada. Não ficou a sensação de que poderia ter feito muito mais, como ocorreu com Cazuza.

Sempre Cazuza. Pensando em “Somos Tão Jovens”, a comparação inevitável é com o longa-metragem “Cazuza — O Tempo Não Para” (2004), dirigido pela dupla Sandra Werneck e Walter Carvalho, tendo Daniel de Oliveira como protagonista. Essa comparação não se dá apenas pela filiação geracional e temática entre os artistas retratados, mas pelo fato de terem alimentado certa “rivalidade amigável” ao longo de suas respectivas carreiras. Na crítica que escrevi por ocasião do lançamento do filme sobre Cazuza, notei que Renato Russo foi limado do roteiro. Achei um erro imperdoável, pois “qualquer um que conheça um pouco de sua trajetória sabe que o vocalista do Legião Urbana foi o grande responsável pela virada na sua carreira. Aliás, com o sucesso comercial que o filme esta fazendo, Russo é outro que deve ser biografado em breve. Esperamos que com resultados melhores. Sobre ele, Cazuza afirmou em uma entrevista de 1989: ‘Quando vi aquelas letras pensei: ´Pô, esse cara é melhor do que eu. Isso não pode ficar assim`. Senti uma puta inveja, mas daquelas positivas, que te incentivam a criar. E acho que a linha seguida a partir de Brasil teve muito a ver com isto’”.

O meu “em breve” não foi tão breve. Passaram-se oito anos entre um filme e outro. Neste “último” e “póstumo” duelo fílmico, Renato Russo saiu-se melhor. Foram dois os motivos principais: a escolha do corte cronológico e a atuação do protagonista.

O maior acerto de “Somos Tão Jovens” foi optar por cobrir apenas os anos de formação de Renato Manfredini Júnior, sua transformação em Renato Russo. A fase punk, a vida em família, a relação com os amigos e amores, carreira solo como Trovador Solitário etc. Uma espécie de “Russo Begins”. O filme sobre Cazuza se perdeu exatamente na opção de cobrir toda a vida do biografado. Geralmente, essa estrutura funciona melhor quando deliberadamente se enfoca o mito e não o homem, como fez Oliver Stone em “The Doors” (1991). Em produções nas quais impera a filosofia do realismo semidocumental, como quase a totalidade das cinebiografias nacionais, fica a sensação de pressa, atropelo.

Sendo um “Russo Begins” estão lá, distribuídas nos diálogos, diversas máximas e expressões da mitologia russoniana na forma de frases de efeito. Essa estratégia dramatúrgica pode irritar os espectadores mais sofisticados pela artificialidade e anacronismo cronológico com que algumas das inserções são realizadas, mas compreendo-as como piscadelas do diretor para seu público. É como quem diz: “viram, também sou fã, também sei disso”. Não deixa de ser válida. Funciona nos filmes da Marvel. Os fãs mais xiitas precisam entender que “Somos Tão Jovens” não é o “novo filme do Godard”. Diversão pela diversão é a base do cinema. Arte vem depois.

A mesma lógica vale para a utilização das músicas do Aborto Elétrico e do Legião Urbana na trilha sonora. Alguns acusam a produção de usá-las como um catálogo de hits inseridos artificialmente visando ganhar o público pela catarse sonora. Pode até ser, mas não acho que seja uma acusação totalmente justa. Houve excesso? Talvez. Mas, afinal, essas músicas, que se tornariam sucessos nacionais, existiram primeiro lá, como material de ensaio de bandas de ga­ragem. “Somos tão jovens” é sobre bandas de garagem que saíram das garagens. Se as canções fossem pouco exploradas, certamente também haveria reclamações. É difícil encontrar o meio termo nesse caso. Ademais, tendo sido captadas ao vivo durante as filmagens, foram devidamente rearranjadas para não ficarem exatamente iguais as gravações clássicas. Inseriram pequenos “erros” nas letras, instrumentais e melodias para dar a sensação de “obra em construção”, gerando verossimilhança.

O segundo trunfo de “Somos Tão Jovens” é seu protagonista, o ator Thiago Mendonça. As resenhas sempre recordam que interpretou o cantor Luciano em “Dois Filhos de Francisco”, mas poucos lembram que ele já garantiu seu lugar na história do cinema fazendo uma ponta em “Tropa de Elite”, como o “estudante usuário” esbofeteado pelo capitão Nascimento no melhor estilo General Patton. Um momento mágico da sétima arte! Thiago Mendonça, mesmo sem ser fisicamente parecido com Russo, por meio de um apurado trabalho corporal e de voz, interpretou não “o” Russo, mas “um” Russo convincente e psicologicamente complexo. Não se limitou a imitar os trejeitos do cantor, mas construiu sua visão dele, evitando cair na caricatura. Talvez seu maior mérito tenha sido emular o timbre vocal de Russo, tanto falando quanto na famigerada impostação operística ao cantar. Sua atuação supera o elogiado trabalho de Daniel de Oliveira como Cazuza, retratado como um “exagerado” bidimensional, em função do roteiro de “Somos Tão Jovens” ter lhe dado espaço para mostrar a personalidade multifacetada de Russo. Sem favores, Thiago Mendonça carrega o filme. É o filme.

Mas “Somos Tão Jovens” não é um monólogo. Seu problema mais evidente é o elenco de coadjuvantes jovens. Descon­tando algumas exceções, como as atrizes Bianca Comparato (Carmem Lúcia, irmã de Renato Russo) e Laila Zaid (Ana Cláu­dia), o conjunto é sofrível. A inexperiência pesou. Em muitas cenas, Thiago Mendonça parece estar contracenando com um fundo azul.

O tom monocórdio do enredo também pode gerar descontentamento. Russo fala, Russo canta, Russo fala, Russo canta, Russo fala, Russo canta. É assim do começo ao fim, alimentando as acusações de que o roteiro é esquemático e simplista. É verdade, mas salvo se houvessem assumido uma estética narrativa fragmentada ou de vanguarda, não vejo como poderia ser muito diferente. Fernando Morello optou por reproduzir a vivência cotidiana daqueles jovens, que sabiam que “em Brasília tudo é sempre igual”. Em essência trata-se de uma história de turminha, com tudo o que pode possuir de prosaica. O que acontece é que existe uma tendência dentre os fãs de superdimensionar as narrativas que leu em entrevistas, reportagens e livros. Parecem-lhes épicas porque ajudaram a compor seu imaginário pessoal. Quando assistem esses episódios representados em audiovisual se decepcionam, uma vez que retomam seu tamanho natural: uma narrativa de microcosmo que ganhou, à posteriori e inusitadamente, dimensões macro.

Essa tendência mitificadora de pequenos atos e fatos é uma constância no processo de construção do mito Renato Russo. Algo nítido tanto na estrutura de “Renato Russo — A Peça” (2006-2009) quanto no episódio da série televisiva “Por toda minha vida” (2007), onde o cantor é interpretado pelo ator Bruce Gomlevsky. Por essa lógica, qualquer banal respiro de Russo torna-se um momento mágico sartriano para seus devotos legionários.

Nos aspectos técnicos “So­mos Tão Jovens” mantém o bom nível do chamado renascimento do cinema brasileiro. A fotografia é limpa, apostado no mais simples. A direção de arte é competente. A montagem poderia ser mais apurada, variando entre momentos excelentes e confusas passagens de tempo. A sequência final é particularmente pobre. De uma cena do Renato Russo ficcional deitado em seu quarto, conversando com a irmã, corta bruscamente para o vocalista real, num show real. Não há construção de clima para a transição. A narrativa pareceu inconclusa, optando-se por um desfecho rápido e fácil.

Hoje, tendo passado pela fase de fã, interpreto o Legião Ur­bana como uma espécie de “O Código Da Vinci” do rock and roll brazuca. O segredo do su­cesso e longevidade da banda, ao contrário do que se propaga, não é o fato das letras serem escritas em primeira pessoa, serem “musicalmente honestas” ou sua tendência à autoajuda. Percebo que o admirador mais fiel do Legião Urbana se sente inteligente ouvindo seus discos. Afinal, citam Camões, Freud, Jung, filosofia oriental etc. O que pode ser mais sofisticado do que isso? Acontece mais ou menos a mesma coisa com o leitor modelo de “O Código Da Vinci”, que é uma espécie de thriller de suspense erudito para as massas. Existe muita informação ali, mas embalada no formato Wikipédia. Mesmo sem precisar fazer grandes esforços, o admirador de Russo se sente superior aos sertanejos universitários, pagodeiros, funkeiros e congêneres. Acontece fenômeno semelhante com Raul Seixas e Zé Ramalho. Claro que muitos sertanejos universitários, pagodeiros, funkeiros e congêneres também dançam com “A dança” e balançam os bracinhos com o refrão de “Pais e filhos”; mais isso costuma ser considerada uma anomalia. A gravação que o grupo Raça Negra fez de “Será” não me deixa mentir.

Nada disso é necessariamente ruim. Acredito que é um bom elixir de autoestima. A juventude precisa de referências boas e acessíveis como essa. Pelo menos até amadurecer. Na verdade, é uma marca de nossos dias. Essa é a primeira geração de jovens antenados que não é revolucionária por definição, que não quer romper com a cultura dos pais. Enquanto a juventude tida como alienada perde-se em danças sensuais e letras desmioladas, àqueles considerados bem-pensantes e cultos escutam os mesmos artistas e bandas que seus genitores apreciavam. Não é por acaso que o culto ao Led Zeppelin, Rolling Stones e Pink Floyd está cada vez mais disseminado na internet. O sucesso do show em Goiânia de Paul McCartney entre jovens, adolescentes e crianças também corrobora isso. Com o fim da geração Coca-Cola, temos a geração saudosista.

O sucesso ou fracasso de “Somos Tão Jovens” na bilheteria vai depender de sua aceitação por essa geração hipster. Urbana legio omnia vincit? Legião Urbana vence tudo? Em nome dos velhos tempos, faço votos que sim.

Ademir Luiz

É doutor em História e pós-doutor em poéticas visuais.