Considerado um dos pais da filosofia, o grego Aristóteles (384-322 a.C.) dedicou a vida a fim de provar que de tudo, rigorosamente tudo na vida, se tira uma lição de que nunca vai se poder prescindir no intuito de se dar à própria vida a natureza de beleza e harmonia que a existência humana deve ter. Aristóteles, como um dos mais importantes patronos do saber filosófico, logo compreendeu que a filosofia mesma tem uma ascendência, que o entendimento acerca dos inumeráveis mistérios da vida não caem do azul, simplesmente. Chegou à conclusão de que sobre toda ciência, acima de todo o conhecimento do homem, paira um conjunto de domínios a respeito de todas as áreas do raciocínio: a metafísica, isto é, a substância incorpórea que transcende a carne. A metafísica toma a ciência como um organismo inteiro, sem diferenças entre saberes particular e universal. Houve muitos antes dele e muitos outros que, corajosamente, defenderam seu legado. O gênio aflito de Friedrich Nietzsche (1844-1900), um dos maiores pensadores da filosofia contemporânea, era diuturnamente confrontado com a loucura perigosa da irmã, Elisabeth — essa, sim, uma genuína lunática, que veio a se casar com nada menos que um dos pais da ideia da supremacia germânica, o berço do nazismo. A partir de episódios como os que vivenciara, Nietzsche foi se dando conta da enrascada sem remédio em que se constituía o existir. Entregar-se à insanidade foi seu grande erro, mas também sua redenção possível, completamente perdido que estava em meio à sua falange de demônios, de fantasmas, de maldições. A metafísica de Aristóteles, o niilismo de Nietzsche, a contribuição vital das cabeças luminosas da filosofia à humanidade não raro foram parar nos roteiros dos mais variados filmes, muitas vezes de maneira tão amalgamada que nem nos damos conta. Os limites imperscrutáveis das posturas que não manifestamos na vida em sociedade, seja por não podermos, tolhidos pelo ordenamento jurídico ou por mero pudor moral, seja por um sentimento de autocensura, por achar que tal ideia é tola ou não acrescenta em nada, são explorados em “Waking Life” (2001), do diretor Richard Linklater, que atesta que sonho e experiências filosóficas estão imbricadamente ligados, a exemplo de vida e morte. O gênero humano também é dotado de suas obsessões, como por números, signos matemáticos responsáveis por apresentar a exatidão do mundo. Esse é o caso do protagonista de “Pi” (1998), de Darren Aronofsky, uma história saborosamente delirante. Os dez filmes da nossa lista foram elencados do mais recente para o mais antigo e não seguem nenhuma outra norma de classificação. Você deve estar achando essa conversa bem louca, mas basta se querer para abalar as estruturas do mundo carcomido como se nos apresenta sob a forma de simulacro do que existe desde antes que a humanidade viesse a ser o que é – quando deveria ser outra coisa. Vá fundo!
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Os três filhos do casal O’Brien foram criados sob a mesma mão de ferro pelo pai. O primogênito Jack sempre teve atritos com o chefe da família, em grande medida por reconhecer na sua própria personalidade alguma coisa de seu velho. Ao se tornar adulto, Jack ainda terá de lidar com um forte sentimento de culpa por não ter conseguido evitar a morte do irmão. Um drama de família tão triste quanto profundo, em que nenhuma palavra ou gesto é casual ou gratuito. Mérito do preciosista Malick.
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O Cavalo de Turim, laureado com o prêmio especial do júri e vencedor do troféu da crítica no Festival de Berlim, na Alemanha, narra o famoso caso em que Friedrich Nietzsche, indignado com os maus tratos a um cavalo que não obedecia a um carroceiro, interveio e exaltou-se de tal modo que entrou em surto. A frágil condição psíquica de Nietzsche se agravou muito a partir de então; sua saúde mental deteriorava ano a ano, com episódios de histeria cada vez mais frequentes, até a morte do filósofo, dez anos depois. O filme descreve em detalhes onde se passa a história e resta clara a natureza hostil do lugar, à medida em que também faz contrapontos a fim de falar um pouco sobre a personalidade do camponês, dono do animal. Vê-se um homem conduzindo sua carroça fustigado por uma ventania intensa; sua apreensão é captada graças à excelente fotografia em preto e branco de Fred Kelemen e pela música de acordes monótonos de Mihály Vig. Aos poucos, também se percebe o quão esse esplim, esse tédio de tudo se espraia para toda a vida do homem; para ele, não resta além de acordar antes da aurora, vestir-se, sair para trabalhar, voltar, comer e dormir o quanto antes, a fim de que aquele tormento passe. Mas não passa nunca. Circunstâncias que, decreto, levariam qualquer um a tomar as atitudes que tomava. Béla Tarr, um dos mais idiossincrásicos diretores da história do cinema, apresenta um ensaio dolorido sobre o inescapável estado do homem, termo caro à filosofia de Nietzsche, sempre partida entre a ideia da prisão do espírito e a eterna aspiração humana por liberdade.
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O jovem protagonista de “Waking Life” não consegue despertar do sono e começa a sonhar indefinidamente. Nessa sua vida paralela, encontra-se com pessoas da vida real e com elas divaga sobre os muitos estados da consciência humana, além de discutir acerca de filosofia e religião. O que se vê ali não é um filme real, mas cenas, paisagens e atores que foram coloridos, redesenhados e tiveram a imagem refeita graças a um software desenvolvido em parceria com sua equipe, exatamente como acontece ao longo da feitura de um desenho animado. O filme torna-se literalmente um sonho. É isso: Linklater conseguiu filmar um sonho e só pela genialidade da ideia este seu trabalho já merece ser apreciado.
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Filme “que faz pensar” nunca precisou ser chato. Isso é argumento de algum chato que, não sabendo pensar — tampouco fazer filmes —, tenta justificar sua boçalidade à luz de um reducionismo o mais capenga. John Malkovich é um exemplo de profissional da arte sempre às voltas com grandes produções nem tediosas nem burras ou irrelevantes. Cria do Steppenwolf Theatre, companhia de teatro lendária de Chicago, fundada pelo amigo e também ator Gary Sinise, Malkovich mostrou a força de seu talento nos palcos da Broadway, sempre despertando o respeito da critica e a paixão da audiência graças a papéis tão ousados como complexos. No cinema, Malkovich debutou com o brilho que merece em “Um Lugar no Coração” (1984), tanto que por pouco não leva o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante para casa. Tanto amor à arte dramática é requisito mais que justo para a homenagem que Spike Jonze lhe presta em “Quero Ser John Malkovich”, em que o veterano, então com 46 anos, é alçado à condição de ícone de uma sabedoria maior, oráculo que guia a vida dos simples mortais aqui embaixo, representados na figura do sujeito ordinário e previsível que, em tendo de exercer a função subalterna para a qual é contratado num prédio comercial, deve andar curvado, metáfora que dispensa maiores elucubrações. Como mesmo os piores cenários reservam surpresas felizes, atrás de uma porta está Malkovich, não em pessoa, mas sua cabeça, seu pensamento, sua forma de enxergar o mundo e a arte, o que não é pouco. Quem consegue o privilégio está autorizado a ficar por 15 minutos, ao fim dos quais é expelido num buraco no subúrbio de Nova York, em Nova Jersey, mais precisamente (e aqui cabem alguns apontamentos). Depois de conhecer a força que elabora o que os Estados Unidos têm de melhor, aquele que ousa sonhar com a pujança do american way of life, vai parar na placidez mórbida da cidade-satélite, sem perigos, mas igualmente sem vida, o que, claro, desperta o interesse do cidadão comum, mas também do próprio John Malkovich, uma gag um tanto saborosa — e provocativa — de Jonze para com o amigo. Parábola de nível intelectual surpreendentemente elevado, “Quero Ser John Malkovich” é filosofia embalada sob a forma de cinema, pronta para consumo das massas. Ou melhor, para quem merece degustá-lo.
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O matemático Max Cohen pesquisa formas de encontrar um modelo capaz de prever o resultado nos pregões das bolsas de valores. No entanto, a verdadeira obsessão de Max se concentra em descobrir um padrão matemático supremo, responsável por reger o funcionamento de todo o universo. Como nem tudo pode ser perfeito, Max é um gênio atormentado que padece com crises de enxaqueca crônica, tão fortes como bombas de mil megatons que aos poucos vão arrasando seu cérebro. A despeito do distúrbio, não é muito fã de contatos sociais e discute suas iluminações algorítmicas apenas com seu antigo professor, Sol Robeson, a única pessoa capaz de servir como parâmetro de comparação e fazê-lo se lembrar de sua natureza humana.
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Três anos antes dos famigerados reality shows, muito pouco shows e ainda menos reality, se popularizarem — e se tornarem febre (e praga) no Brasil —, Peter Weir levava às telas uma reflexão. A vida é um feérico espetáculo interminável, com mais de mil palhaços, motociclistas do globo da morte, trapezistas, domadores de feras e mulheres barbadas no salão ou não é bem por aí? Assim é, se lhe parece: a vida tem as dimensões e a natureza que se lhe queira conferir, a exemplo de como procede Truman Burbank. O súbito estranhamento em relação à sua cidade, depois de se deparar com situações corriqueiras, quanto à mulher, sua repentina desconfiança dos amigos, sua repugnância acerca da própria vida, sem nenhum propósito maior, besta, oca, impelem Truman a um desvio de rota, que passa a justificar com a entrada de Lauren em cena, atalho para o paraíso dos sentidos que deseja alcançar. A busca de Truman por uma tábua de salvação é intensificada ao saber que sua trajetória tem a natureza de mera farsa, roteiro do programa de televisão mais grotesco já visto, e agora conhecida do país todo. Weir conduz o olhar do espectador a um panorama mais amplo, em que a mediocridade humana, seus banais desejos, suas conquistas vãs são esmiuçadas, e cada um conclui que sua história também poderia dar um show de tevê à moda do que se apresenta a partir da vida de Truman. A verdade por trás do que se vê no filme é a velha máxima de que não se consegue enganar todo mundo todo o tempo. Nem à custa de patrocinadores generosos.
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Numa área determinada de um país desconhecido, nenhuma lei se aplica, nem mesmo a mais elementar e universal, como a da gravidade, depois que o lugar fora atingido por um corpo celeste — ou alguma coisa do gênero. A Zona, como o território estranhamente passou a ser chamado, é alçada à cobiça internacional graças a um espaço no qual se podem concretizar todos os sonhos de quem quer seja. Temendo a comoção de povos do mundo todo e a iminente usurpação da terra, forças de segurança realizam patrulhas e encarceram possíveis invasores. Só os perseguidores, os stalkers, apresentam fibra o bastante a fim de acessar os limites da Zona e continuar vivos nesse torrão idílico e cheio de mistérios e riscos. Um deles é contratado como guia de um cientista e um escritor, ávidos por conhecer o que é a Zona de verdade.
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“Laranja Mecânica” tornou-se um cinquentão com tudo em cima. A adaptação feita para o cinema de Stanley Kubrick sobre o livro de Anthony Burgess ainda é uma ode ao livre pensar. Permanece como sempre fora: um soco no estômago, que deixa o espectador sem fôlego e o derruba do pedestal de suas convicções. Alexander DeLarge é um lobo em pele de lobo, por mais mavioso, envolvente e inofensivo que possa parecer. O protagonista, vivido por Malcolm McDowell, é verdadeiramente do diabo, só não se sabe quando e em que circunstâncias o mal se apoderou dele. Uma leitura marxista do filme — que não segue à letra a história original publicada por Burgess — daria a entender que o rapaz oriundo do lumpemproletariado inglês dos anos 1970 teria muito a dizer sobre a besta que Alex se tornara, e que o capitalismo, o malvado favorito da intelectualidade de esquerda em qualquer parte da esfera terrestre, a despeito da época, em querendo regenerá-lo, só estaria sanando um problema que o próprio sistema capitalista criou. Nada mais simplista. Nada mais preconceituoso. Alex é dotado de uma natureza depravada, perversa, monstruosa, como outros drugues de sua gangue, e deve ser contido. Aliás, ele só vai parar no reformatório porque traído pelos companheiros de vadiagem, o que, desta feita à luz do conservadorismo, significaria que bandidos são bandidos e não se pejam em abandonar o navio ao menor sinal de pique, delatando-se uns aos outros. Lá, é submetido a um tal de Tratamento Ludovico, uma terapia revolucionária que o destitui de qualquer ímpeto de violência, isto é, o deixa impossibilitado de reinserir-se na sociedade, em boa medida composta de indivíduos violentos e insanos. O caráter distópico da história é a parte mais doce — ou menos amarga — dessa laranja e, como toda distopia, profética. Todos temos um Alexander DeLarge chafurfando no mais recôndito de nós e cada um é o maior responsável por mantê-lo restrito a esse lugar.
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Uma civilização ancestral parece influenciar o que se passa na Terra por meio de um monolito localizado em Júpiter, sobre o qual não se sabe muita coisa. A fim de averiguar o que realmente está acontecendo, uma equipe de astronautas chefiados pelo experiente David Bowman é mandada ao planeta na Discovery, uma espaçonave integralmente controlada por HAL 9000, um sistema de computador. Durante a viagem, um mecanismo em HAL entende que ele deve assumir também o comando da missão e eliminar todos os tripulantes. “2001 — Uma Odisseia no Espaço”, em parte baseado no conto “A Sentinela”, de Arthur C. Clarke (1917-2008) discorre acerca de tópicos como a evolução do homem, tecnologia, inteligência artificial e vida fora da Terra à luz da ciência. O filme foi um dos primeiros a empregar efeitos especiais de qualidade apurada, o que lhe rendeu um Oscar na categoria e ditou regra nas produções de ficção científica a partir de então.
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Passada uma década, um guerreiro volta de uma série de batalhas em que combatia a fim de manter a Terra Santa sob domínio cristão, as Cruzadas (1095-1291) e se depara com o país assolado por uma praga, a peste negra. Habilidoso como ninguém quanto a expor as tantas fraquezas do homem à luz do conhecimento filosófico, Ingmar Bergman (1918-2007) fala sobre a hesitação mesmo do mais nobre dos indivíduos ante cenários desfavoráveis, lúgubres, miseráveis, amaldiçoados pela Morte, que em “O Sétimo Selo” adquire status de personagem e deseja, como sói acontecer, abreviar as pelejas do herói, que, mesmo negando, por completo descrente de tudo e tomado pelo cansaço da vida, anseia mesmo por sua última viagem. Na undécima hora, reconsidera e propõe à sua oponente um desafio no tabuleiro de xadrez: se perder, vai-se com ela, que topa a parada, afinal desde o princípio dos tempos nunca perdeu uma aposta. Na trama, o gênio de Bergman, tal como o Tolstói (1828-1910) de “A Morte de Ivan ÍIitch”, publicado em 1886, dirige ao espectador a pergunta que cala mais fundo sobre a alma de um indivíduo. O que fazer diante da finitude, única certeza a reger a vida?