A vida nem sempre é como se nos apresenta. A alegação pode soar como um delirante paradoxo, uma teratologia um tanto perigosa, mas o fato é que cenários em que nada se mostra da forma como se compõe na essência são muito mais recorrentes do que gostaríamos, e geralmente vêm à tona na pele de personagens cuja índole já pende para o incomum, para o irregular, para o anormal, desencadeando os diversos anticlímax da história em subtramas plenas de obsessão e psicopatologia. Os thrillers psicológicos são o ai-jesus do cinema justamente por seu caráter pleno de mistério, de paranoia, de drama, permeados por doses homeopáticas de comédia, de crítica social e mesmo de romance — seja qual for o critério que se admita, se por faixa etária, escolaridade ou poder aquisitivo. Errando pelo mundo, o homem tenta não desistir da jornada árida da vida, por mais que se fira, que se escalavre, que vá restando um farrapo do que um dia já fora, o corpo e a alma aos pedaços. E a vida, felizmente, tem as suas inesperadas reviravoltas. Ao passo que vivemos, nos tornamos mais experientes e, por conseguinte, mais atentos para com as armadilhas ao longo do caminho. Mas e quando aquela pedrinha bem pequenininha, exatamente por sua natureza diminuta, nos leva ao chão e a gente demora mais do que imaginava para se levantar, rezando para que surja um viajante bondoso que nos dispense um minuto de atenção durante a trajetória e nos ajude, nos dê um gole d’água, por mais suspeito que pareça? Muitas vezes só nos resta mesmo aceitar a generosidade de estranhos e não deixar que eles percebam a nossa tão humana desconfiança. Duas pessoas que vivem por anos sob o mesmo teto podem muito bem não se conhecer verdadeiramente, e pior, passar uma à outra a falsa impressão de que tudo corre como ouro sobre azul, de que o amor continua a ser o fundamento que as faz permanecer unidas — sendo que a própria vida já se encarregou de mexer seus pauzinhos e aprontar das suas, a exemplo do que se vê em “1922” (2017), dirigido por Zak Hilditch, e também em “Rua Cloverfield, 10” (2016), de Dan Trachtenberg, que igualmente põe à prova os muitos sentimentos — e as muitas incongruências — das relações humanas. Esses e mais oito títulos, todos na Netflix, fazem da nossa lista um farol no mar revolto das histórias de suspense. Não embarque em canoa furada e aporte em terra firme com a gente.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix
O Meio-Oeste americano até parece o cenário perfeito para as narrativas de desintegração moral, violência, tragédia, caos, com seus personagens cheios de uma pretensa sabedoria cósmica advinda da mãe natureza, que na verdade, não quer perfilhar ninguém, muito menos o homem, que com o avançar dos anos tem se empenhado a degradá-la com mais e mais requinte. É o que se apreende das produções dos veteranos irmãos Coen e mais recentemente de um diretor que (ainda) passa ao largo do público e boa parte da crítica, mas cujo trabalho sem dúvida merece ser conhecido e admirado. Em “O Diabo de Cada Dia”, Antonio Campos se fixa nessa premissa a fim de contar uma história que degenera em caminhos tortuosos para um veterano da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o filho dele, um reverendo implicado em casos de abuso sexual e um casal de assassinos em série nos anos 1950. Donald Ray Pollock, o próprio autor do livro a partir do qual o roteiro se desenrola, serve de narrador à trama. Pollock, um ex-operário e ex-motorista de caminhão em Knockemstiff, Ohio, deixou as funções que desempenhava aos cinquenta anos, quando conseguiu publicar “O Mal Nosso de Cada Dia”, em 2011. Campos sabe onde se meteu. Donald Ray Pollock está para Antonio Campos como Cormac McCarthy para os irmãos Coen: os três diretores bebem da fonte dos romancistas, cujas obras tratam da falta de rumo do homem, cada vez mais perdido e cada vez mais selvagem. Pode-se tentar desqualificar Campos sob o argumento de ser ele um mero adaptador de uma história cuja profundidade não alcança. Grosso engano. Seu cuidado na escolha dos atores, muito bem ambientados na aridez — metafórica e real — do coração da América (para não mencionar outra vez a assertividade do livro em que seu filme se baseia), são predicados justos o bastante quanto a capacitá-lo como um diretor, no mínimo, aplicado. Antonio Campos tem muita bala no tambor.
Que o cinema sul-coreano vai muito bem, obrigado, ninguém pode negar. Essa tendência tem se cristalizado desde 2019 com o lançamento de “Parasita”, para o bem-estar do mercado e a felicidade do respeitável público. “A Ligação” reúne mistério, ação e uma boa pitada de elementos sobrenaturais para deixar o espectador de cabelo em pé e com a pulga atrás da orelha. Este é “o” filme para quem topa fazer algumas concessões à lógica e ficar preso no sofá.
Última parte da trilogia passada na cidade espanhola de Baztán e inspirado no romance de mesmo nome de Dolores Redondo, “Oferenda à Tempestade”, dirigido por Fernando González Molina, que antecede “O Guardião Invisível” (2017) e “Legado nos Ossos” (2019), conta a saga de Amaia, a inspetora de polícia incumbida de averiguar os eventos macabros que se sucedem no vilarejo por cuja ordem é responsável, em que bebês são mortos num ritual satânico. Quanto mais se enfronha na história, mais Amaia se convence de que a motivação para os crimes em Baztán não remonta a propósitos ditos religiosos, mas a questões que envolvem poder, dinheiro e os desdobramentos em que um e outro inexoravelmente implicam.
Fins de semana entre amigos são um tiro no escuro: na segunda-feira, pode-se voltar com as baterias recarregadas, pronto para mais sete dias de trabalho duro, ou, devido à frustração de se conhecer verdadeiramente a pessoa a quem tomamos como um irmão, sofrer um desapontamento forte o bastante para marcar de modo nefasto a lembrança. Nas horas vagas, Marcus se dedica à caça como hobby, prazer que quer de que Vaugh também desfrute. O pequeno vilarejo no interior da Escócia em que passam momentos de descanso é o cenário ideal para que Marcus dê a Vaugh suas lições elementares de tiro. Tudo corre bem e a caçada tem início. O primeiro alvo é dos bons, um animal de porte avantajado. Um tiro é disparado, mas o bicho escapa. Mesmo assim, estão certos de que a bala teve algum outro destino e agora o que resta aos dois é se livrar de problemas com a lei.
Ao desvendar a identidade de um assassino em série de bebês, sacrificados a fim de dar azo a ritos demoníacos, em “Legado nos Ossos”, o diretor Fernando González Molina continua a sobrecarregar sua mocinha na trilogia começada com “O Guardião Invisível” (2017). Aqui, Amaia se defronta com enigmas possivelmente relacionados às mortes solucionadas antes, e corrobora o que seu instinto policial já lhe havia confidenciado: tudo ainda resta muito nebuloso.
Na primeira edição da franquia de três produções, o público conhece a inspetora Amaia, policial que tenta concluir uma missão complexa. A protagonista de “O Guardião Invisível” (2017), dirigido pelo espanhol Fernando González Molina, tem de prender um homicida cruel, celebrizado pelo sacrifício de bebês em cerimônias de magia negra. Para tanto, a heroína da trama é obrigada a voltar a Baztán, sua cidade natal, e se confrontar com seus próprios demônios, que imaginava exorcizados.
O deslocamento aparentemente fácil de uma universitária por uma trilha torna-se uma prova de fogo quando a garota erra o caminho e se perde numa mata cerrada. O cenário se apresenta especialmente perigoso no momento em que ela dá de cara com dois bandidos tentando fugir da polícia. A fim de continuar viva, a estudante terá de se provar mais safa que seus novos adversários e se valer do que sabe a respeito da floresta, que vira um grande labirinto, repleto das armadilhas mais impensáveis.
Arlette herda um pedaço de terra de seu falecido pai e quer vendê-lo, bem como a propriedade de seu marido. Wilfred não concorda com a esposa e acaba resolvendo matá-la, ajudado pelo filho do casal, Henry. A trama, mais uma boa adaptação de um thriller do escritor Stephen King, toca em pontos delicados, a exemplo de casamentos que se prolongam além da conta, por puro comodismo de parte a parte, e acabam redundando em finais como o que se vê nessa história, cheia de anticlímax e detalhes que, de tão sutis, podem passar despercebidos ao espectador mais afoito. Aprecie sem pressa.
Depois de um grave acidente de carro, uma jovem acorda no porão de um desconhecido. O homem diz tê-la salvado de um ataque químico que arrasou todo o mundo, o que a obriga a ficar isolada com ele. A garota não acredita na história e tenta se libertar, mas isso implicaria em experimentar situação muito mais perigosa do que permanecer refém de quem a teria ajudado a escapar da morte. Cada vez mais confusa, ela tem de decidir se sua liberdade vale tamanho risco.
Tom Witzky, chefe de família trabalhador, alheio a altercações sobre política, desconhecedor do que acontece no meio cultural e muito ligado ao filho e carinhoso para com a mulher — ou seja, o típico americano tranquilo —, tem como único momento de respiro a interação com os amigos próximos. Numa das raras festas de que participa, ele concorda em se submeter ao exercício de hipnose proposto pela cunhada, Isa. A brincadeira logo degringola para uma sucessão de delírios que o assaltam violentamente, despertando nele uma ânsia por autoconhecimento.