Conforme ensinou o grande Guimarães Rosa (1908-1967), a vida ora esquenta, ora vai esfria, se molda ao sabor das circunstâncias, mas, no fundo, só o que a vida quer de nós é coragem. A gente muitas vezes fica na corda bamba, oscilando depois de dar um passo ousado além da conta, espreitando o picadeiro sem rede lá embaixo. Há que se retomar o fôlego — e o equilíbrio — e seguir, ora refreando nossos ímpetos, ora, ao contrário, deixando que nossas emoções decolem, e nós com elas. As humanas, humaníssimas emoções, o homem, perdido em meio a sentimentos os mais díspares, sempre à mercê de alguma possibilidade de alento… O mundo nos mói, nos tritura, nos lança ao rosto as tantas verdades com as quais não sabemos lidar, que nos envergonham, nos entristecem, nos humilham, nos ultrajam. Temos todos a mesma natureza, frágil, perecível: nada do que é humano a um homem pode ser estranho à humanidade. Por mais impropérios que nos diga o mundo, de uma coisa ele nunca será capaz de nos privar: nossa condição de homens, feitos à imagem e semelhança de um Ente superior — e não vai aqui qualquer tentativa de catequese barata. O argumento de que o homem espelha a perfeição é científico, hajam vistas as teorias de Charles Darwin (1809-1882) quanto à seleção natural. Se estamos aqui, girando sobre este imenso globo, se conseguimos chegar até onde estamos, é porque somos fortes, é porque merecemos. Portanto, se tiver de chorar, chore; se tiver de rir, ria, alto, a fim de que todos testemunhem sua alegria, sua euforia, seu êxtase diante da vida, ou de qualquer coisa. Nossas emoções, muito mais que 27 ou 48, segundo alguns ensaios científicos, pagam o preço por qualquer tolo constrangimento. Se algo acontecer, para o bem ou para o mal, confie em quem o ajudou desde sempre. Espere por um milagre — eles são raros, decerto, mas acontecem —, aprenda com seus acertos, e com os erros dos outros. Seja sábio. Presenteie-se de vez em quando. Use a cabeça, de preferência aliando-na ao coração, e vice-versa. É isso o que faz o protagonista de “O Fotógrafo de Mauthausen” (2018), da diretora Mar Targarona, uma história que merece ser vista e revista quantas vezes nos forem possíveis. Quanto à personagem central de “First They Killed My Father” (2017), da atriz e diretora Angelina Jolie, esperar comportamento tão maduro seria insano, o que torna o filme tão peculiar. Esses e mais oito títulos constam da nossa lista — e do acervo da Netflix —, do mais novo para o lançado há mais tempo, a fim de deixar seu peito um pouco mais agasalhado numa tarde chuvosa qualquer. Esquente um pouco sua vida. A arte serve é para isso.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

Ao compilarem em seus acervos filmes independentes e “alternativos”, as plataformas de streaming prestam um grande serviço ao público. Só assim não se perdem belezas como “18 Presentes”. Sempre que celebra mais um aniversário, Anna recebe um presente que a mãe, Elisa, lhe comprara antes de morrer de câncer, logo depois de ter lhe dado à luz. De início, ainda em tenra idade, a menina se alegra em saber que a mãe conseguira se lembrar dela ainda que doente, mas conforme passam-se os anos, Anna se rebela com o ridículo da situação e não se conforma com a trapaça que o destino preparou em sua vida. Finalmente, ao completar 18 anos, se envolve num acidente e, ainda que por um breve instante, tem a oportunidade de se juntar a Elisa. O terceiro vértice dessa trama é Alessio, viúvo de Elisa e pai de Anna, que soube conduzir a relação que deveria ter com a filha de forma madura e redobrou a atenção de que Anna fosse precisar. A figura paterna é o grande diferencial aqui, na medida em que dá uma nova perspectiva à história. Alessio também sofreu todas as consequências da perda de Elisa, mas soube virar o jogo, e o fez com tamanha maestria que se mantivera são e capaz de se dedicar de perto à filha. Não é pouca coisa. Ao falar de assuntos tão díspares quanto gravidez, câncer, morte e a possibilidade de se continuar a viver numa outra dimensão, “18 Presentes” é uma grata surpresa, que certamente restaria perdida num site de filmes de arte qualquer. O público não merece.

Por mais que a melancolia de “Se Algo Acontecer… Te Amo” não deixe transparecer, o casal que protagoniza esse curta de animação já foi muito feliz algum dia. Reconforta saber que tentam se reencontrar, mas a dor de ter perdido a filha da forma como tudo aconteceu os assola. Ao realizar a viagem rumo à vida que tinham até que a tragédia os colhesse, têm uma ideia de como podem voltar não aos bons tempos de antes — o antes está morto —, mas, pelo menos, resgatar o sentimento que os conduziu até ali. A técnica empregada na produção, estreia dos diretores Will McCormack e Michael Govier, é primorosa. Com desenhos feitos à mão, o filme torna-se uma verdadeira relíquia em meio a tantas invencionices da tecnologia, e a força da mensagem se intensifica. A narrativa se caracteriza por manter passado e presente juntos, suscitando a ideia da necessidade de os encarar dessa forma a fim de que a trama faça sentido. Os protagonistas são acompanhados por sombras, como que a atormentá-los, numa alusão à força das lembranças, capazes de interferências severas na vida dos indivíduos: a experiência de cada um é regida também pelas memórias que temos acerca dos mais diversos eventos pelos quais passamos. A começar do nome, “Se Algo Acontecer… Te Amo” é um conselho a nos rememorar a efemeridade da vida. E que é sempre possível — e necessário — dar às lembranças seu verdadeiro peso.

“Milagre na Cela 7”, do diretor turco Mehmet Ada Öztekin, é emoção à enésima potência — e talvez por isso alguns o rejeitem. Ao contar a história de um homem com atraso intelectual acusado injustamente do homicídio de uma garota com idade próxima à de sua filha, a produção flerta com a megalomania ao se pretender um guia sobre como vencer o mal do mundo, mas tem muitos méritos. Memo, o protagonista, como o roteiro faz questão de esclarecer, é inocente, na acepção lata do termo, inclusive. O pacato aldeão de um povoado no interior da Turquia, é incapaz de sequer pensar em uma barbárie como aquela. O maniqueísmo da trama decerto joga contra ao insinuar que o pai da menina assassinada é o grande vilão por se tratar de um homem poderoso, mas Memo é um personagem carismático demais para se perder em meio a tacanhezas como essa. É tocante ver a forma como ele se relaciona com os colegas de cela, que passam a ver na sua figura um mascote, uma criatura em que podem despejar sua necessidade de afeto sem receio de mal-entendidos. Talvez fique um pouco vaga que espécie de desencontro teria se dado na vida de Memo para que se visse na obrigação de criar sozinho a filha. Outrossim, incomoda que ninguém se envolva na vida dos dois, como se a deficiência intelectual de Memo tivesse qualquer coisa de infeccioso ou, pelo contrário, se isso se constituísse numa credencial de bom pai por si só. Seu comportamento para com a menina mais parece o de um irmão mais velho, no máximo de um tio. Pessoas com suas limitações demandam cuidados especiais, por mais independentes e encantadoras que sejam — e são. Excetuando-se essas ligeiras mancadas, “Milagre na Cela 7” se arvora num farol sobre a complexidade do homem ao iluminar seu lado negro e realçar suas luzes. Contraindicado para almas sensíveis demais.

Em “The Sky Is Pink”, Aisha Chaudhary conta, depois de morta, como se dera sua vida. Aisha fora uma criança corajosa, ainda que mimada, que se flagrava em pensamentos nada próprios para a idade, especulando sobre a vida sexual dos pais, hoje completamente nula. Niren, um ex-lutador de caratê, e a ex-aspirante a Miss Índia Aditi estão mais ocupados tentando resistir à dor lancinante da morte de Aisha, aos 18 anos, depois do câncer agressivo que a reduziu a pouco mais que uma sombra do que havia sido — e o pior é que eles não param de imaginar como seria a vida da filha se ela tivesse conseguido sobreviver. Os dois foram muito felizes, apesar de todas as expectativas em contrário, por pertencerem a castas distintas, mas esse tempo, definitivamente, morrera com Aisha. Hoje são pouco mais que dois estranhos um para o outro, num enredo cuja estrutura oscila entre o flashback cronológico tradicional e as idas e vindas da narrativa sob a perspectiva do fluxo de consciência do trio de personagens centrais, o que confere ao filme uma suave atmosfera de noir, mesmo que o tom rosicler do título predomine na história.

O enredo desse drama sobre a Segunda Guerra Mundial — com tudo o que um filme sobre a resistência frente à dominação alemã tem de mais lancinante — gira ao redor de Francesc Boix, ex-soldado que servira durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), e fora feito prisioneiro em Mauthausen, um dos campos de concentração nazistas quando do advento de mais uma série de batalhas, dessa vez em escala global. Ele é requisitado para atuar como fotógrafo do diretor do campo, o oficial Paul Ricken, registrando o desempenho das tropas germânicas. Testemunha involuntária da história, Boix fica sabendo que a Alemanha não será páreo à contraofensiva dos Aliados, o que suscita nele a obsessão em manter a salvo tudo o que pôde documentar por meio de suas fotos, a fim de não permitir que os líderes nazistas tivessem qualquer tipo de benefício num futuro julgamento.

A trajetória de Angelina Jolie como diretora é infinitamente menos conhecida que sua carreira de atriz. Contudo, “First They Killed My Father” é o quinto longa-metragem que Jolie dirige, com o mesmo afinco com que se dedica quando diante das câmeras, aliás. O roteiro, construído com atenção nos pormenores mais sutis, se baseia no livro da autora cambojana Loung Ung, sobrevivente da matança perpetrada pelo Khmer Vermelho, o partido comunista do Camboja, no sudeste do país, entre 1975 e 1979. As pessoas foram obrigadas a deixar suas casas e rumar para o centro do Camboja, e em três dias quase 25% da população acabaram exterminados. O enredo se desenrola sob o ponto de vista de Loung, então com cinco anos quando da ascensão dos comunistas ao poder no Camboja. A hecatombe que se abateu sobre o país poderia adquirir uma natureza fantasiosa, romântica, dada a pouca idade da protagonista, mas o apuro com que a pesquisa histórica foi conduzida elimina o risco. A relação de Angelina Jolie com o país vem de longe: foi lá que ela gravou “Lara Croft: Tomb Raider” (2001) e um de seus filhos adotivos é cambojano. Aliás, deve ter contado para Jolie o fato da narrativa ser o relato de uma filha privada da convivência com o pai: ela mesma, por outras razoes, teve conflitos familiares algo relevantes. Ao longo das duas horas e dezesseis minutos de duração do filme, se esmiuçam as horas de trabalho compulsório da família, enquanto Loung se dedicava também a receber treinamento militar. Angelina Jolie não poupou esforços — nem milhões de dólares — a fim de contar a história cruel da passagem dos comunistas pelo governo do Camboja, o que lhe exigiu uma boa dose de criatividade, no intuito de não permitir que a obra resultasse num pastiche intragável de “Apocalypse Now” (1979) misturado a “Sete Anos no Tibete” (1997). Louve-se também sua coragem intelectual ao apontar peremptoriamente os Estados Unidos como copartícipes do genocídio empreendido contra o povo cambojano. “First They Killed My Father” apresenta alguns deslizes, mas Angelina Jolie está no caminho certo.

Christy e Kevin Beam vivem na mais perfeita harmonia com as três filhas, Abbie, Annabel e Adelynn, numa casa aconchegante e ampla o suficiente para abrigar os cinco cachorros. Os Beam hipotecaram a propriedade, seu único patrimônio, a fim de abrir uma clínica veterinária, certos de que Deus vai ajudá-los a conduzir o negócio de forma a prosperarem, quitarem a dívida e se estabelecerem no mercado. Embora frequentem a igreja e sejam cristãos fervorosos, o casal e as filhas também passam por dificuldades. As fortes dores abdominais de Annabel são alvo da preocupação dos pais, que levam a menina ao hospital. Depois de vários exames, vem o diagnóstico: a garota é portadora de uma doença rara do aparelho digestivo. Desesperada, Christy empenha sua vida a fim de achar a cura para a filha, sem saber mais se o Todo-poderoso é mesmo merecedor de sua devoção, ainda que nunca seja absurdo esperar por um milagre.

Ao longo da Segunda Guerra Mundial a Turquia vai se esfacelando devido à fome e à mais absoluta falta de perspectiva de algum alento. Dois amigos, ambos poetas e tuberculosos há anos, se apaixonam por Suzan. Para resolver quem fica com ela, eles decidem que cada um escreverá um poema de amor e o entregará à garota, a quem cabe dar o veredicto sobre qual será o escolhido. O preterido deve admitir a derrota e ir embora. O longa do diretor turco Yilmaz Erdogan é um filme sobre amor, amizade, esperança, solidão, todos esses sentimentos à flor da pele durante um conflito armado. E ainda sobra muito espaço — afinal, são 2h18 — para uma crítica aos abismos sociais, intensificados num cenário de desordem, incertezas e medo.

Vinte e seis de dezembro de 2004. Maria e Henry aproveitam as férias na Tailândia com os filhos pequenos depois de uma noite de Natal memorável, até que o tsunami que devastou toda a Ásia também os colhe. A mãe e o filho mais velho, tidos como desaparecidos, têm de encarar seus medos a fim de continuarem vivos; Henry e as duas crianças menores, por outro lado, também se desesperam ao imaginar o que pode ter acontecido a Maria e o primogênito. A possibilidade de um reencontro em breve, ainda que remota, é o que os sustenta, enquanto eles têm de aprender a administrar a pletora de sentimentos os mais controversos e suportar a angústia da separação forçada.

Considerado pelos críticos como o filme mais pessoal de Steven Spielberg, “A Lista de Schindler” relembra a ocupação do Gueto de Cracóvia, uma área de pouco mais de 16 hectares em que milhares de judeus foram obrigados a se amontoar logo depois de declarada a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Aqui, Oskar Schindler (1908-1974) é retratado como o típico anti-herói — mulherengo, ardiloso, amoral —, mas com tino invulgar para os negócios e, o principal, político, numa boa acepção para a palavra. Homem bem-relacionado com todos os próceres da alta sociedade germânica (leia-se, os líderes nazistas), chegou a se filiar ao Partido Nacional-Socialista, menos por ideologia que por amor a uma boa oportunidade de ganhar dinheiro. Visto como um “bom alemão”, Schindler logo foi autorizado a abrir uma siderúrgica especializada na fabricação de panelas esmaltadas — numa época em que somente os apaniguados de Adolf Hitler (1889-1945) comiam —, para a qual empregava mão-de-obra maciçamente judia, na maior parte das vezes sem qualquer aptidão para o ofício. Destarte, salvou do extermínio cerca de 1.200 homens e mulheres discriminados pelo nazismo por motivação étnico-religiosa, configurando-se em um dos maiores filantropos da história. Schindler amargara algumas passagens pelo cárcere nazista e perdeu toda a fortuna por causa de quedas na produção — e por sempre gastar mais do que tinha, ávido por manter o padrão de vida a que se acostumara quando da guerra. Todo em preto-e-branco, o único detalhe colorido ao longo da trama é o casaco vermelho de uma menina, figura de linguagem escolhida por Spielberg para fazer menção às vítimas do holocausto, responsável pela execução de mais de seis milhões de judeus. A menina do casaco vermelho existiu de fato, o nazismo existiu de fato — apesar de muitos brucutus o negarem ainda hoje, malgrado as evidências —, e também por isso o diretor lhe dedica um afeto particular. Nascido um ano depois do fim da Segunda Guerra, o próprio Steven Spielberg, judeu, poderia ter sido um dos imolados pela barbárie nazista, tema recorrentemente abordado pelo cinema. No clássico de Spielberg, a monstruosidade de Hitler é investigada em meandros em que não se havia enfronhado até então. A humanidade agradece, a Schindler e a Spielberg.