O homem muda e evolui todo santo dia, e, por isso, todo santo dia faz novas descobertas. Conhecer-se a si mesmo, se explorar, realizar as mais profundas investigações no mais escondido de sua própria alma possibilitam ao gênero humano desenvolver novas aptidões, superar velhos medos, tornar-se menos intolerante e menos apreensivo frente ao porvir, um verdadeiro enigma para a humanidade. À medida que fincava pé na face da Terra, o ser humano foi dando cada vez mais importância a seus anseios, a suas vontades, às expectativas quanto à forma como se lhe deveria apresentar o mundo, o mais próximo do ideal quão possível, o que implicaria num problema considerável: um mundo ideal demandaria uma sociedade ideal para o habitar. Mas como poderia ser ideal qualquer sociedade, em sendo a natureza do homem tão plena de suas muito características fraquezas? A tentativa delirante — e monstruosa — de se criar o homem ideal, premissa de que o pensamento nazista se valeu, foi a culpada por seis milhões de mortes, ou seja, mais do que fracassar, se provou abominável. Tomar o argumento da perfeição do homem e dos povos na arte, contudo, é uma premissa muito mais que válida, é necessária, a fim de que permaneça para sempre inativa a sanha por conquistas irracionais. A ficção científica é o gênero criativo que melhor promove as loucuras do homo sapiens, tão bem e de maneira tão convincente que logo extravasam para as séries de tevê. Graças à saborosa confusão entre o palpável e o virtual, “Black Mirror” se tornou a namoradinha de dez entre dez maratonistas de séries. Lançada em 2011, na Inglaterra, “Black Mirror” trata da vida permeada pela tecnologia, da selvageria do capitalismo, de poder, de consumismo, do caráter descartável da indústria cultural. Há mais de 100 anos o cinema fala de tudo isso. Numa diatribe lírica à indústria de alimentos, “Okja” (2017), do sul-coreano Bong Joon-ho, é um filme para ninguém botar defeito, mas sobra também para as relações afetivas, como se vê em “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” (2004), do francês Michel Gondry. Esses e mais oito títulos, todos na Netflix, são o destaque desse nosso vasto ranking, do mais novo para o lançado há mais tempo, único critério empregado aqui. Olhe para o mais longe de si e deixe esse seu espelho lhe dizer umas verdades.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

“O Céu da Meia-Noite” apresenta a história de Augustine, cientista à beira da morte que decide permanecer no mundo enquanto os demais terráqueos migram para outros pontos da galáxia, a fim de fugir do risco de contaminação radiativa. Augustine acompanha um projeto de exoplanetas, comunidades de colonização fora da Terra, na esperança de que os estudos apontem novas possibilidades de lar para quem saiu do planeta. Ele se depara com duas surpresas: uma criança abandonada no Ártico, que a partir daí passa a fazer parte de seu cotidiano solitário e entediante, e a descoberta de uma equipe de astronautas que regressa de Éter, a lua de Júpiter, com boas notícias. Contudo, Sully, a comandante da missão, não consegue entrar em contato com a Terra porque pensa que não há mais ninguém por aqui.

O público que aprecia a mistura de aventura com ficção científica decerto se encanta por “A Caverna”, inventivo ao explorar o tema do tempo que transcorre de uma forma nada usual num lugar desconhecido. O filme conta com efeitos visuais convincentes, bom elenco e uma trilha sonora que destaca a atmosfera de mistério, até que o enredo desague no final inconclusivo, que sugere uma situação voltada ao terror. “A Caverna” aproveita o argumento do tempo anômalo da melhor maneira num filme que entrega o que se propõe: entretenimento de qualidade.

Numa engenhosa crítica à indústria de alimentos — e, por extensão, ao próprio capitalismo —, Bong Joon-ho apresenta ao público a história de Okja, uma espécie de simbiose de hipopótamo com porco que resultou num animal estranhíssimo, mas dócil e muito lucrativo. A criatura faz parte de um lote de 26 espécimes, que irão para diversas partes do mundo. Okja, uma fêmea, é destinada para a Coreia do Sul. Ao fim de algum tempo, os animais serão novamente reunidos num concurso, a fim de se saber quem dispensou o melhor tratamento ao bicho que lhe coube, eleito vencedor da competição. No entanto, vencido esse prazo, Mikha, tutora de Okja, se apegou muito a ela e não cogita interromper essa relação. “Okja” encampa um atilado libelo contra o consumismo, a degradação do meio ambiente e a ética relapsa no que concerne ao tratamento dos animais empregados como alimento, e, claro, as consequências de tamanho descaso e ganância na saúde das pessoas. O filme faz pensar sobre até que ponto é válido se permitir capturar pelas armadilhas do consumo cada vez fácil usando para tanto a figura de uma garota e seu mascote, aparentemente repulsivo, mas que só desperta compaixão e ternura.

Vee DeMarco é uma garota como outra qualquer, cujo único desejo é terminar o ensino médio e ir para a faculdade. A discussão com uma amiga a estimula a participar de Nerve, disputa virtual em que os jogadores executam as tarefas que os observadores sugerem. No primeiro desafio de que toma parte, Vee conhece Ian, um sujeito sobre o qual não se sabe muita coisa. Os dois se tornam os mais visados do jogo, realizando cada vez mais tarefas, mas não têm a menor ideia de como essa brincadeira vai acabar.

Depois de um grave acidente de carro, uma jovem acorda no porão de um desconhecido. O homem diz tê-la salvado de um ataque químico que arrasou todo o mundo, o que a obriga a ficar isolada com ele. A garota não acredita na história e tenta se libertar, mas isso implicaria em experimentar situação muito mais perigosa do que permanecer refém de quem a teria ajudado a escapar da morte. Cada vez mais confusa, ela tem de decidir se sua liberdade vale tamanho risco.

Um filme de ficção científica assumidamente feminista. “Advantageous”, da diretora sino-americana Jennifer Phang, não se alinha em nada a quase tudo o que já se produziu em matéria de histórias cujo mote central é a vida — e a sobrevida — num mundo em que ser bonito e jovem conta muito na trajetória de alguém, e não só no que diz respeito a carreira, que se frise. Numa narrativa toda pontuada por tipos femininos, Gwen, a protagonista, é uma mulher de quarenta e poucos anos, veterana na indústria farmacêutica. Ela é representante de um laboratório de biomedicina, ou melhor, era, e essa é justamente a reviravolta fulcral aqui: tudo orbita ao redor da demissão de Gwen e seu desespero, não por ela, mas pela filha — mais uma mulher no coração do enredo. Ela se vira para achar alguma outra forma digna de ganhar a vida o quanto antes, a fim de não permitir que a garota passe qualquer dificuldade ou tenha de se submeter a condições degradantes de vida, como se prostituir ou casar-se prematuramente. E as coisas ficam um tanto piores para Gwen, por causa do cenário de recessão econômica em que o mundo está atolado. Por tudo isso, pode se dizer que “Advantageous” é, de fato, uma vantagem.

A história de “Circle” gira sobre um eixo repleto de mistérios e perigos: 50 pessoas estranhas entre si esperam numa sala sem saber por que e como chegaram lá. Eles foram dispostos ao longo de um grande círculo, à frente do qual está outro, menor, para cada um deles. A brincadeira consiste em escolher quem vai permanecer na roda — e vivo —, mas a angústia maior é pensar no que deverá acontecer ao vencedor desse jogo, tão vibrante quanto obscuro.

Um mundo em que máquinas ficassem tão perfeitas a ponto de confundir o homem, isso seria possível? Como se daria a vida a partir do momento em que percebêssemos que organismos artificiais passaram a ser tão humanos quanto nós — no que temos de pior, inclusive? O enredo de “Ex Machina” suscita essas e tantas outras perguntas, ainda que não faça a menor questão de fornecer as respostas. Um excêntrico milionário, dono de uma empresa que se dedica ao aprimoramento de dispositivos de inteligência artificial, seleciona um funcionário talentoso a fim de realizar testes para lançar um novo equipamento: um autômato com formas de mulher, capaz de sentir como um ser humano. Numa partida de xadrez, dá-se uma disputa quanto a provar quem seria o mais intelectualmente bem-dotado, se a robô, o empregado ou o patrão, e ainda mais do que isso: eles anseiam por descobrir possíveis defeitos uns dos outros. A favorita, claro, é a máquina que, além de não se abater por nenhuma espécie de pressão, conta com a vantagem de saber os pontos fracos dos outros dois. A alegoria do jogo de xadrez não é à toa: por meio do xadrez, um jogo que exige profunda capacidade analítica, o diretor Alex Garland propõe uma reflexão sobre os enfrentamentos entre as categorias mais distintas — se concentrando no conflito de classes marxista, relido à luz do século 21 com a inclusão do componente robótico —, deixando o público livre para empenhar sua torcida a quem mais o apetecer, sabendo que ninguém ali é propriamente ingênuo. Mesmo a figura da robô, que a priori seria calculista e distante, adquire um ar sensual. Aliás, um dos grandes paradoxos do xadrez é justamente esse: para se vencer, é necessário muito sangue frio, mas igualmente uma boa dose de malícia, a fim de antever os movimentos do adversário. Trata-se de uma metáfora das relações humanas, mesmo quando não envolvem apenas seres humanos: quanto mais racional se pretenda o homem, mais emotivo ele deve se tornar. A natureza humana fagocita a máquina, ao passo que os algoritmos metabolizam o homem.

Num mundo distópico, em que as sociedades se fragmentam mais e mais, o governo dos Estados Unidos decreta a lei que permite que, em certo dia do ano, se cometa impunemente qualquer gênero de crime ao longo de 12 horas. É justo no decorrer desse período que uma família rica torna-se refém de bandidos ao abrigar um alvo. Tentando sobreviver em meio ao caos de um cenário em que a justiça não tem qualquer valor, para eles o amanhecer nunca foi tão aguardado.

Desencantada com o fracasso de seu relacionamento, Clementine decide esquecer Joel. Para tanto, se submete a um experimento que varre de sua memória os momentos vividos com ele. Joel, ao saber da história, fica muito magoado e frustrado, afinal ainda a ama, mas decide dar o troco e também participa dos testes. Lá pelas tantas, ele se arrepende, constata que definitivamente não pretende apagar Clementine da lembrança e exige que a operação seja interrompida. Tirando da cartola alguns clichês da comédia romântica e os misturando a mancheias de ficção científica, Michel Gondry dá azo a um filme delicado, original e lúdico, que se utiliza de todos esses predicados para suscitar no público a reflexão sobre a fluidez das relações, instabilidade que se verifica em larga proporção na própria natureza humana.