Beleza e arte sempre estiveram visceralmente ligadas e Roger Scruton (1944-2020) decerto era quem mais entendia acerca da relação entre uma e outra. O filósofo britânico, por toda a vida muito respeitado nos círculos acadêmicos, conseguiu popularizar seus vastos estudos acerca da importância da harmonia estética na arte — que remeteria justamente ao que o homem tem de mais próximo ao sagrado, ao caráter perfeito da Criação — graças à série de documentários “Por que a Beleza Importa”, exibida pela BBC. A suposição de que a beleza seria um recurso poderoso para afastar o grande público das manifestações artísticas mais sublimes, argumento levantado por Scruton, é logo derrubada, devido à necessidade de se encontrar beleza na arte também para que reflitamos sobre nossas próprias vidas, em que falhamos e por quê. Nesse particular, o pensamento de Scruton se assemelha muito às teses de Platão (428 a.C. — 348 ou 347 a.C.) no que respeita à beleza como sentido da própria existência, o que nos conduz, por sua vez, à religião. Passado quase um século, o Oscar reina absoluto quando o assunto são cerimônias de entrega de prêmios, monopolizando as atenções da imprensa e do público desde muito antes de sua exibição e repercutindo bastante, mesmo depois da poeira assentada. Os tais velhinhos da Academia nunca foram unanimidade quanto à escolha dos títulos indicados, mas é inegável que o júri quase sempre galardoa obras-primas, plenas de significado, de poesia, histórias que amalgamam numa só trama o vigor e a relevância da mensagem e a simetria e o encanto da forma sob a qual tomam corpo. Ao falar de um futuro distópico, em que criaturas assemelhadas ao homem têm por missão exterminar os últimos seres humanos remanescentes sobre a Terra, o franco-canadense Denis Villeneuve se vale de todos os recursos tecnológicos existentes a fim de conferir a “Blade Runner 2049” (2017) a força de uma produção estudada em seus menores detalhes. “Roma” (2018), dirigido pelo mexicano Alfonso Cuarón, que narra o cotidiano de uma família no bairro de classe média alta de mesmo nome da Cidade do México em 1970, sob a perspectiva de Cleo, a empregada da casa, tudo em preto-e-branco, compõe um dos momentos mais inspirados do cinema. Os oito títulos da nossa lista, todos disponíveis na Netflix, respeitam apenas o critério da ordem contracronológica e vêm do lançado há menos tempo para o mais antigo. Deixe-se arrebatar pelo deslumbramento da sétima arte que, muitas vezes, parece a única.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix
“Mank” é a história dentro da História, assim, com “h” maiúsculo. Os bastidores de “Cidadão Kane”, talvez o filme mais importante já feito, a estreia de Orson Welles, o garoto-prodígio do cinema dos anos 1940, são esmiuçados na trama da Netflix dirigida por David Fincher. Aos 25 anos, Welles decide que ser eternamente conhecido e reverenciado como o sujeito que revolucionou o rádio e o teatro eram menos do que merecia. Assim, toma Hollywood de assalto, escoltado pelo roteirista Herman J. Mankiewicz, cuja visão de mundo assumidamente de esquerda faz com que rapidamente se torne persona non grata no meio artístico ao longo dos anos do perigo comunista e da patrulha de pensamento, estimulada e patrocinada pelo macarthismo. Não demora e Welles e Mankiewicz se tornam inimigos figadais e concorrentes, sempre disputando a preferência dos estúdios e mesmo a autoria dos filmes, como aconteceu com “Cidadão Kane”. À luz da História, pelo menos a História oficial, Welles — e não Mank — é o pai da criança, o que desencadeou uma espiral de autodestruição na vida do preterido.
Poucos filmes conseguem o feito de, ao condensar diversos tipos de linguagem e de manifestações artísticas, criar uma obra absolutamente original — e bela, muito bela. Com “Roma”, Alfonso Cuarón não só chegou lá como tornou-se um dos paradigmas do que se pode chamar de novíssimo cinema. O enredo talvez não tivesse nada de excepcional, mas a forma como Cuarón leva as passagens sobre o dia a dia de uma família abastada num bairro nobre da Cidade do México — a Roma do título — no começo dos anos 1970, tendo sempre por alvo a empregada doméstica da família, é impecável. A história de Cleodegarda, a Cleo, é pungente de tão comum. Conhecemos dezenas de Cleos, sobretudo no Brasil, remanescente de um regime escravocrata abolido nem faz tanto tempo, e paternalista até o fim do mundo. É angustiante a forma como sua vida se esvai. A protagonista não vê nada em seu curto horizonte que não seja se empenhar no serviço doméstico: recolher as fezes de Borras, o vira-lata da casa, lavar o quintal, arrumar uma casa enorme, cozinhar para seis pessoas, fora os empregados… Aos domingos, arruma tempo para ir ao cinema com um rapaz que conhece por intermédio da colega de ofício que divide as tarefas com ela. Mas nem nisso a vida lhe sorri: ao se descobrir grávida, conta a novidade (que não lhe parece nada boa) ao namorado durante a sessão e é abandonada ali mesmo. A narrativa tem uma ligeira virada nesse ponto, susceptibilidades de Cleo são exploradas mais a fundo e a sensação de incômodo do espectador ao se colocar na pele da criada é insuportável. Não se nota se Cleo gosta da vidinha que leva, se apenas a tolera, se a odeia. A única certeza que se pode ter é que ela é simplesmente empurrada pelo destino. A cena na praia, quando o filme já se encaminha para o desfecho, é de deixar o peito apertado. Impossível não se emocionar — e, igualmente, não se enfurecer — com a ingenuidade de Cleo. Superado o episódio, a vida torna ao leito, o que não é exatamente bom. Preterido no Festival de Cannes 2018 por pinimbas entre os organizadores da premiação e a Netflix, “Roma” teve uma recompensa justa e levou o Oscar de Melhor Fotografia daquele ano. Fellini puro, poesia pura, cuja dramaticidade a linda fotografia em preto-e-branco realça, a grandeza de “Roma” merecia muito mais.
Passadas três décadas e meia, vem à luz a continuação da história sobre um policial que caçava androides em Los Angeles. O original, lançado em 1982, passava-se em 2019. O futuro já é passado, mas a saga resistiu. Dessa vez, a trama se desenrola em 2049 e a tarefa coube a K, um novo blade runner, que não caça androides, apenas os “aposenta”. Num amanhã ainda menos promissor, os replicantes se tornaram mais saidinhos e inspiram o medo na população e a fúria das autoridades. O trabalho de K fica um tanto mais difícil devido à descoberta de uma caixa na qual está o mote do novo “Blade Runner”. Uma androide gera uma filha, cujo pai é um homem de carne e osso. Um milagre, portanto. O diretor Denis Villeneuve aceitou o desafio de dar sequência à história, que decerto não para por aí, por temer que outra pessoa não desse ao filme o tratamento que ele merecia. Foi o diretor certo para o filme certo: “Blade Runner 2049” é fiel à ideia que lhe deu azo, sem, no entanto, ter ficado com cara de um simples pastiche do original. Villeneuve conseguiu, a partir de um filme-conceito amplamente conhecido e cultuado, imprimir sua assinatura e sua visão de mundo. Clássico com uma genealogia à sua altura.
O orçamento estratosférico de “Gravidade” não deslumbrou Alfonso Cuarón, que perseguiu obstinadamente a perfeição nesse trabalho e por pouco, muito pouco mesmo, não chegou lá. A premissa de astronautas que acabam tendo de encarar perrengues no plano intergaláctico não é exatamente nova — Stanley Kubrick já a havia explorado com largas doses de genialidade em “2001: Uma Odisseia no Espaço” (1968). O pulo do gato aqui é, além do inegável carisma da dupla de protagonistas, um componente mais do que elementar em tempos de viagens espaciais que acontecem com regularidade cada vez maior: a tecnologia. A missão comandada por Matt Kowalsky precisa ser abortada depois de uma falha no procedimento que controla a órbita da espaçonave que divide com a doutora Ryan; numa desesperança crescente, sob risco de vida, o que resta aos dois é estudar novos cenários, a fim de garantir alguma chance, primeiro de sobreviver e, se possível, voltar para casa. Nesta ou noutras dimensões, talvez o destino do homem seja mesmo peregrinar em busca de alguma razão para continuar existindo, sem nenhuma garantia de que vá encontrá-la, tamanha a sua irrelevância frente ao seu próprio mundo, frente aos mundos que passa a soberbamente querer dominar, frente à própria vida, cujos mistérios nunca lhe é dado conhecer.
Martin Scorsese se destaca ao retratar histórias verídicas que, com seus detalhezinhos saborosos, pontuam uma narrativa plena de beleza, de força, de valor histórico. Em “O Aviador”, o anti-herói Howard Hughes (1905-1976), tornado milionário aos dezoito anos à custa de uma herança, tinha tudo para ser feliz. No entanto, pula de galho em galho, numa busca insana por glamour, reconhecimento, afeto. Falta-lhe uma razão para viver e ele até parece encontrar, na pele de um mecenas o seu tanto excêntrico, que não se incomoda de gastar rios de dólares em filmes de retorno financeiro incerto, mas que lhe dão muito prazer. Essa é decerto a palavra que balizou a vida de Hughes. Aviador diletante, passa a construir pequenas aeronaves e aprende a pilotá-las — o que implica alguns acidentes, frise-se, dos quais, milagrosamente, escapa ileso. Hughes era um playboy, um estróina, um bon vivant, mas graças a sua própria fortuna. Tendo de lidar com seus muitos transtornos psiquiátricos, como uma agorafobia severa que o impedia de sair de sua sala de cinema particular, Hughes constitui um capítulo à parte na história do cinema e mesmo dos Estados Unidos, pátria dos empreendedores por excelência, e ainda que com uma existência tão atribulada, era capaz de despertar a inveja masculina, motivada por seu envolvimento com Katharine Hepburn (1907-2003) e a diva Ava Gardner (1922-1990), grandes estrelas da telona à época.
Em seu sétimo longa, Ang Lee resolve inovar e adotar no enredo de seu filme o wuxia, que compreende narrativas cheias de cenas em que os atores praticam artes marciais — aqui, muito bem coreografadas, por sinal — e empunham adagas e machetes. O roteiro de Hui-Ling Wang, Kuo Jung Tsai e James Schamus, adaptado do livro de Du Lu Wang, dá azo a um trabalho que não deixa nada a dever a tudo o que se vinha fazendo de semelhante até então, com a diferença de ser uma produção de refinamento infinitamente superior, tanto na forma como no conteúdo. O trio utiliza os tradicionais elementos do wuxia, sem desperdício nem forçar a barra. Michelle Yeoh está em ótima forma, num dos papéis mais marcantes de sua carreira, muito melhor que a ainda verde Zhang Ziyi, sem dúvida talentosa, que cresce justamente quando divide o plano com Yeoh. Ao enfatizar as tomadas em grande angular de uma Pequim ancestral vista do alto, a fotografia de Peter Pau, aliada à computação gráfica, é, de longe, uma das melhores coisas do filme, ajudando a contar a história das duas protagonistas, a jovem aristocrata disposta a renunciar à vida de luxo e poder a fim de se tornar uma guerreira, enquanto a outra, experiente espadachim e lutadora, parece cada vez mais inclinada a trocar a incerteza da vida como defensora da dinastia Ching em nome do amor — se ainda tiver a chance. O filme custou 17 milhões de dólares e multiplicou a receita em quase 12 vezes, arrecadando mais de 200 milhões de dólares em todo o mundo. “O Tigre e o Dragão” continua a deter a marca de filme estrangeiro com mais indicações ao Oscar, dez, incluindo a de Melhor Filme, Melhor Diretor e Melhor Roteiro Adaptado. Venceu em quatro categorias: Melhor Filme Estrangeiro, Melhor Trilha-Sonora, Melhor Fotografia e Melhor Direção de Arte. Ang Lee passa anos sem aparecer, mas sempre que sua figura adelgaçada e discreta começa a tomar corpo nos circuitos e mostras de cinema, que se tenha a certeza: um tigre está saindo da toca.
Responda rápido: 1) qual país se tornou célebre por reunir o maior número de críticos que ganham a vida nesse mesmo país à sua história? 2) qual o país cuja democracia se tornou a menos sensível a ameaças de golpes de presidentes demagógicos e hipócritas — ainda que eleja um ou outro lunático de vez em quando? A resposta para ambas as perguntas é a mesma. Dirigido por um britânico radicado nos Estados Unidos, “Beleza Americana” é o enésimo filme a espinafrar o american way of life, o jeito americano de se viver; entretanto o faz com um toque bem pessoal ao misturar no bolo a crise de meia-idade de um americano comum. Lester Burnham não aguenta mais o esplim, o tédio de tudo em que sua vida se transformou. O emprego só lhe serve como meio para quitar dívidas, o casamento é uma farsa, Jane, a filha o detesta. Ou seja, chegou aos quarenta sem nenhum legado a deixar, sequer alguma boa história para contar aos amigos, se os tivesse. Resolvido a virar a mesa enquanto é tempo, Lester pede demissão, passa a se exercitar, e, claro, se desobriga de manter as aparências com a mulher, Carolyn. Justamente nesse ponto sua mudança parece começar mesmo a fazer sentido: descobre que está apaixonado pela melhor amiga da filha, Angela — e não vê mal algum nisso. A amizade com o vizinho, Ricky Fitts, que passa a namorar Jane e por quem até nutre umas fantasias, rompe o último grilhão que faltava e o liberta para a vida que julga merecer. Com “Beleza Americana”, Sam Mendes traça um paralelo entre um país desde sempre cercado por questões socioculturais as mais gritantes e o americano tranquilo, consciente de que sua vida íntima está de ponta-cabeça, mas completamente perdido, por maior que seja sua vontade de que tudo fosse diferente. Sociólogos do calcanhar sujo diriam que a gênese de todo o fracasso de uma nação remonta à mediocridade da classe média, ávida por demonstrar seus podres poderes por meio do consumo. Redondo engano. Um país — e a civilização como um todo — malogram é por causa do ressentimento.
Considerado pelos críticos como o filme mais pessoal de Steven Spielberg, “A Lista de Schindler” relembra a ocupação do Gueto de Cracóvia, uma área de pouco mais de 16 hectares em que milhares de judeus foram obrigados a se amontoar logo depois de declarada a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Aqui, Oskar Schindler (1908-1974) é retratado como o típico anti-herói — mulherengo, ardiloso, amoral —, mas com tino invulgar para os negócios e, o principal, político, numa boa acepção para a palavra. Homem bem-relacionado com todos os próceres da alta sociedade germânica (leia-se, os líderes nazistas), chegou a se filiar ao Partido Nacional-Socialista, menos por ideologia que por amor a uma boa oportunidade de ganhar dinheiro. Visto como um “bom alemão”, Schindler logo foi autorizado a abrir uma siderúrgica especializada na fabricação de panelas esmaltadas — numa época em que somente os apaniguados de Adolf Hitler (1889-1945) comiam —, para a qual empregava mão-de-obra maciçamente judia, na maior parte das vezes sem qualquer aptidão para o ofício. Destarte, salvou do extermínio cerca de 1.200 homens e mulheres discriminados pelo nazismo por motivação étnico-religiosa, configurando-se em um dos maiores filantropos da história. Schindler amargara algumas passagens pelo cárcere nazista e perdeu toda a fortuna por causa de quedas na produção — e por sempre gastar mais do que tinha, ávido por manter o padrão de vida a que se acostumara quando da guerra. Todo em preto-e-branco, o único detalhe colorido ao longo da trama é o casaco vermelho de uma menina, figura de linguagem escolhida por Spielberg para fazer menção às vítimas do holocausto, responsável pela execução de mais de seis milhões de judeus. A menina do casaco vermelho existiu de fato, o nazismo existiu de fato — apesar de muitos brucutus o negarem ainda hoje, malgrado as evidências —, e também por isso o diretor lhe dedica um afeto particular. Nascido um ano depois do fim da Segunda Guerra, o próprio Steven Spielberg, judeu, poderia ter sido um dos imolados pela barbárie nazista, tema recorrentemente abordado pelo cinema. No clássico de Spielberg, a monstruosidade de Hitler é investigada em meandros em que não se havia enfronhado até então. A humanidade agradece, a Schindler e a Spielberg.