Foi o filme “Terra Estrangeira” (1995), de Walter Salles Jr e Daniela Thomas, salvo engano, o primeiro a apontar a fuga do país como horizonte a ser buscado pelos brasileiros e brasileiras. Naquela primeira metade de década de 1990, o Brasil havia mudado da depressão para a euforia, com a inflação controlada e um clima de “agora vai!”. Mas a história de Salles e Daniela captou, bem no período daquele otimismo, o sentimento de que algo mais incômodo estava na cabeça das pessoas.
Nos últimos anos, três filmes brasileiros tocaram no tema da fuga, ou seja, a tentativa de recomeço longe do país de origem. São eles “Praia do Futuro”, “Alguma Coisa Assim” e “Ainda Temos a Imensidão da Noite” — todos disponíveis nas plataformas de streaming. Como notado por Tales Ab’Saber, o cinema da retomada a partir dos anos 1990 vem abordando “a inconsistência e a doença do espaço público e da cultura” no Brasil. Trata-se de uma percepção embutida, em maior ou menor grau, nos filmes das décadas recentes. E não é nada estranho que a ida para uma terra estrangeira seja tema recorrente.
Coincidência ou não, os diretores dos três filmes escolheram a capital alemã Berlim, pós-muro da Guerra Fria, como destino dos personagens. A cidade aparece literalmente na forma de um ponto de fuga, onde se pode realizar a liberdade barrada no país de origem. Um espaço público em que a cultura dita o ritmo da vida, as escolhas sexuais são mais fluidas, a dança dos corpos rouba a cena. A felicidade seria enfim possível na Alemanha, pois ela se tornou uma impossibilidade na terra natal.
Quem primeiro descobriu Berlim para ser um cenário, foi Karim Aïnouz em “Praia do Futuro” (2014). A ironia é evidente já no título que se refere à praia de Fortaleza. Não há qualquer futuro à vista naquela rotina de trabalho duro de um salva-vidas, à espera somente de que ocorra um afogamento. Naquele local, Donato (Wagner Moura) conhece o alemão Komrad (Clemens Schick) e se muda com ele para a capital alemã. Para trás, fica seu irmão Ayrton (Jesuíta Barbosa), ainda muito jovem.
Ao deixar a ensolarada Fortaleza, Donato passa a viver na friorenta Berlim dos dias atuais, com a vantagem de não ser preciso esconder o companheiro amoroso. Tudo vai bem e mal até o dia em que Ayrton vai atrás do irmão mais velho. Instala-se o conflito dos personagens desterrados e desesperados em busca de afetos. Podem ser brasileiros ou alemães: eles querem a liberdade para viver (a esperança depois do fim das utopias) e não desejam só consumir coisas e dinheiro.
A errância dos personagens rumo a Berlim reaparece em “Alguma Coisa Assim” (2017), de Esmir Filho e Mariana Bastos. A qualidade de Esmir havia sido uma surpresa no filme “Os Famosos e os Duendes da Morte” (2009), uma obra-prima do recente cinema brasileiro sobre as fragilidades e dores nas relações entre as pessoas. No trabalho recente, ele e Mariana vão explorar novamente a questão da partida para a terra estrangeira e o tema da homoafetividade (que vai mais além do sexo).
A história de “Alguma Coisa Assim” é a amizade intensa de Mari (Carolina Bastos) e Caio (André Antunes), nas cidades de São Paulo e Berlim. A dupla de cineastas gravou cenas nos anos 2006 e 2016, deixando transparecer a passagem do tempo fisicamente dos atores nos personagens. Após o fim do casamento com outro homem, Caio vai passar uma temporada com Mari, que mora em Berlim. Começa então uma montanha-russa de afetos e ressentimentos entre os dois, até o desfecho inesperado.
O terceiro filme que coloca Berlim na tela é “Ainda Temos a Imensidão da Noite” (2019), de Gustavo Galvão. A obra faz nitidamente o contraste das utopias contemporâneas. De um lado, a modernista Brasília que não concretizou os sonhos da modernização, incluindo uma família que tem o avô pioneiro da construção da cidade e a neta que batalha para sobreviver. Na outra ponta, está a capital alemã que representa a possibilidade de nova vida numa metrópole e horizonte possível para artistas.
Os personagens Karen (Ayla Gresta) e Artur (Gustavo Halfeld) encarnam as contradições da capital brasileira que se apresentou para o restante do país como ideal moderno e centro do rock nacional a partir dos anos 1980. O filme de Galvão explora a resistência de Karen e Artur, que desejam fazer uma música com energia e criatividade. Mas a cidade e o país mudaram, e as ambições artísticas dos jovens encurtaram. O filme carrega, sim, no clima nostálgico dos anos quando o rock pulsa e dava a identidade local.
Tocadora de trompete e cantora, Karen parte para Berlim com a ideia de reencontrar Artur e assim viver da criação musical. A concepção artística que eles têm é uma mistura da energia do punk com o cool de Miles Davis. É uma posição de arte de vanguarda quando já desapareceram as ideias vanguardistas e de mudança radical na política. Tudo empurra para o conformismo do trabalho estável de um concurso — distante demais da liberdade berlinense. Restam os afetos para curar as patologias urbanas.