Tido como uma prévia um tanto antecipada do Oscar, o Festival de Cannes enuncia possíveis tendências sobre o que a Academia de Hollywood vai preferir, mas, definitivamente, não se pauta pela premiação veterana do cinema. Por seu espírito ainda libertário, contracultural até, há 75 anos Cannes se destaca justamente por lançar luz sobre filmes, atores e diretores desconhecidos do grande público, privilegiando histórias que, por não precisarem se comprometer com o mercado, têm o condão de abordar temas os mais espinhosos ou os mais poéticos, aqueles mesmos com os quais muito poucos se importam. Em sua edição de 2021, Cannes conferiu a Palma de Ouro à diretora francesa Julia Ducournau, por “Titane”. A ficção científica, sobre um pai que reencontra o filho depois de dez anos em meio a uma série de crimes misteriosos, garantiu o prêmio máximo a Ducournau, a segunda diretora mulher escolhida pelo júri, um hiato de sessenta anos — a primeira foi a russa Yuliya Solntseva, por “A Epopeia dos Anos de Fogo”, que se debruça sobre a história da resistência soviética à invasão das tropas comandadas por Hitler, em 1961. No ano seguinte, foi a vez do brasileiro Anselmo Duarte (1920-2009), com o sincretismo religioso de “O Pagador de Promessas”, baseado na peça homônima de Dias Gomes (1922-1999). Até hoje, foram mais de 70 os filmes escolhidos como os melhores do ano para o festival mais querido do Velho Mundo, seis deles na nossa lista de hoje. “Lazzaro Felice” (2018), de Alice Rohrwacher, exalta o sonho por meio da narrativa realista-mágica ao contar a história de um menino pobre de uma comunidade rural da Itália, morto em circunstâncias trágicas, mas que como Lázaro de Betânia, volta à vida. No caso do drama sul-coreano “Assunto de Família” (2018), o diretor Hirokazu Kore-eda apresenta uma família unida em seus pequenos delitos e suas grandes tristezas. Os títulos, todos à mão do assinante da Netflix, estão incluídos segundo o ano de lançamento, a partir do mais recente. Não espere o Oscar para se emocionar outra vez.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

Mati Diop, a primeira diretora negra de um filme agraciado com a Palma de Ouro em Cannes, singra em mar de almirante. São muitos os recursos de que Diop lança mão a fim de contar o romance impossível de Ada e Suleiman. Ao longo da narrativa, ela se vale de uma infinidade de recursos de linguagem, indo de sons fora de cena à ação sem enquadramento definido, o que dá à imagem uma dimensão própria, ora mais próxima, ora mais distante de quem assiste. Logo no começo, fica claro que Diop entende do riscado — é de sublime beleza a sequência do encontro do casal de protagonistas, enquanto um trem corre entre eles. A abordagem do ponto de vista do fantástico, do místico, tão presente nos relatos africanos, se faz presente de modo absolutamente legítimo, haja visto a história se passar no Senegal. Depois de uma série de negociações, os operários que erguem um prédio em Dakar — entre os quais Suleiman —, desaparecem no oceano e, mortos, tomam posse dos espíritos das namoradas a fim de se vingarem. A possessão é um fenômeno chocante, mas sob a ótica sensível de Diop, torna-se um momento de celebração pelo reencontro dos dois, o que até sugeriria um orgasmo, não fosse a gravidade da situação. A partir daí, homem e mulher, os dois amantes, tornados uma só carne e um único espírito, partem com tudo pra cima do dono da empreiteira, outro ponto alto da história. Talvez a grande mancada de “Atlantique” seja a teimosia quanto à subtrama do policial em início de carreira querendo mostrar serviço ao chefe, a fim de provar que a protagonista foi mesmo a autora do incêndio no apartamento da família no intuito de se livrar do casamento arranjado com um homem rico e bem mais velho. A trama então passa a privilegiar o enredo do ponto de vista de Suleiman, e essas duas pontas só serão reunidas quase no desfecho. Sempre que precisa atentar para um detalhe que julga digno da atenção do público, Diop, artista sutil que é, encontra nos diálogos, de onde parte a ação num filme que se preze, tudo de que precisa, sem ter de lançar mão de reviravoltas artificiais para explicar o que quer que seja. Mati Diop tem um Atlântico de possibilidades em sua já brilhante curta carreira.

Osamu sustenta sua família nada convencional praticando pequenos furtos, no que é ajudado por seu filho. Ao fim de mais um dia de delinquências, se deparam com uma garotinha, aparentemente perdida. Eles relutam em acolher a menina, afinal, o dinheiro que conseguem quase não é suficiente, mas a mulher de Osamu resolve ficar com a pequena ao saber das condições em que ela vive. Essa família bandida parece feliz, até que um incidente vai revelar segredos que irão por à prova os laços que os mantém juntos. Ao abordar temas polêmicos como o de um clã inteiro que se entrega à marginalidade sem o menor drama de consciência, o filme já marca um golaço ao não se permitir patrulhar pelo politicamente correto e levantar questões complexas com humor e uma profundidade que nem todo mundo suporta.

Talvez “Clímax” se assemelhe mais a um clipe que a um filme propriamente. O que importa aqui são os sentidos, o que se depreende de cada um dos 23 (!) personagens em cena, alunos de um curso de dança que vivem isolados numa casa a fim de se aperfeiçoar no ofício. Não se pode conceber a história sem suas muitas cores, seus tantos barulhos, suas várias texturas, todos eles ainda mais evidentes depois que se dá a ação desencadeante da trama. Também é forte a sensação de claustrofobia, dada a grande quantidade de atores num cenário único, ao longo de uma noite. À medida que a hora avança, percebe-se a depauperação física e mental deles: é muito movimento, é muita bebedeira, e logo são acometidos de uma paranoia autodestrutiva que os conduz a um comportamento eufórico, que não tarda a redundar em apatia, em incapacidade de resposta. Mesmo sendo tantos, Gaspar Noé não tem dificuldade alguma em pontuar a natureza de um por um, o que esperam, o que sentem, ajudado pelo trabalho coreográfico. É por meio do balanço dos corpos, entremeado pelas alusões a sexo, família, morte, tem-se a ideia do que seja ser jovem na França nos nossos dias. “Clímax” é um retrato colorido de uma juventude em preto-e-branco. Assuntos tabu, mesmo em rodinhas de amigos de priscas eras, a exemplo de homossexualidade, práticas sexuais heterodoxas, aborto, vêm à baila sem a menor cerimônia, enquanto o grupo evolui, e Noé não deixa nada passar batido, captando tudo sob os ângulos mais improváveis — de cima, inclusive —, só para que o pérfido público não seja alijado, como nas arenas de gladiadores da Roma Antiga, do deleite de presenciar gente se oferecendo em sacrifício em nome do prazer. Dos outros.

Lazzaro é um jovem morador da fazenda Inviolata, cuja dona, a marquesa Alfonsina de Luna, mantém seus empregados sob a condição de escravos. A polícia realiza uma batida na propriedade e os liberta, conduzindo os trabalhadores à cidade. No caminho, Lazzaro acaba caindo de um penhasco e ninguém procura por ele. Alguns anos depois, Lazzaro ressuscita e vai atrás dos antigos colegas. Com elementos do realismo mágico, mas também rendendo homenagem ao neorrealismo, responsável por verdadeiras joias do cinema italiano, a diretora Alice Rohrwacher escalou para viver Lazzaro um ator sem experiência, que se revelou um achado. Por ter estado a vida inteira por baixo, mas sem nunca encontrar um jeito de virar o jogo, o personagem é tão complexo. Adriano Tardiolo, o intérprete de Lazzaro, dá conta do recado com o pé nas costas e lembra outros célebres tipos sofridos e adoráveis da tela grande, a exemplo do Forrest Gump de Tom Hanks e do Gilbert Grape de Johnny Depp. Tudo uma ode à sensibilidade, neste ou em qualquer tempo, deste ou de outro mundo.

Brady Blackburn, peão de rodeio obstinado e que se dedica em tempo integral à carreira, só vê sentido na vida sobre o lombo de um cavalo, disputando o lugar mais alto do pódio e recebendo as gordas premiações em dinheiro. Ao montar um animal um pouco mais arisco, Brady sofre um revés em sua trajetória. A queda lhe provoca um traumatismo craniano severo e, a partir de então, ele terá de se defrontar com uma questão que nunca lhe ocorrera: como viver sem os cavalos, que lhe despertam tanta estima e ainda lhe garantiam o sustento? Os dias posteriores ao acidente, que se prolongam pela narrativa, podem lhe dar alguma pista de como não enlouquecer à medida que ele assuma a necessidade de um rigoroso exame de consciência quanto a suas atitudes para com quem lhe é próximo. Só assim Brady pode vislumbrar novas perspectivas, não de voltar a ser o que fora — isso é impossível —, mas de, por meio de uma espécie de renascimento, deixar o limbo em que fora atirado e voltar à vida. Depois da Palma de Ouro de 2017, Chloé Zhao ganhou o Oscar de Melhor Diretora e de Melhor Filme por “Nomadland” (2020).

Às vezes, os astros convergem, o universo conspira a favor e o cinéfilo, especialmente o que se dedica a cascavilhar filmes no campo árido do mundo digital, se depara com algumas boas surpresas. “Divinas”, da neófita Houda Benyamina, passa batido do grande público, apesar de ter vencido o prêmio de Melhor Filme de Diretor Estreante em Cannes. Merecidamente, a produção teve o fôlego renovado ao ser indicada ao Globo de Ouro, como Melhor Filme Estrangeiro de 2016. “Divinas” parece uma releitura de “Cidade de Deus” (2002), de Fernando Meirelles, ao retratar pessoas com uma origem em comum, mas que optam — e perseguem — uma trajetória distinta. Em “Divinas”, há Djigui, o garoto que não se seduz pela vida nem tão fácil do tráfico e se torna um artista, como o Buscapé do longa brasileiro, mas há também Dounia, que aspira à vida de crime e ostentação, à medida que convive com Rebecca, traficante já estabelecida no gueto em que vivem. É claro que a protagonista não tem a mais pálida ideia do que seja viver do tráfico, dos perigos a que se sujeitaria, de que pode se dar mal, muito mal, e que viver à margem da lei é, geralmente, um caminho para o qual não há retorno. Numa conjunção perfeita de roteiro, trabalho de atores, direção, montagem e trilha sonora, Houda Benyamina constrói cenas de impacto, ainda que sutis, e mesmo leves, explorando recursos aos quais o cinema já recorreu infinitas vezes, mas sempre de um ponto de vista inegavelmente original. Como a própria condição humana, “Divinas” é complexo, é denso. Onde floresce a desdita, transborda a graça.