Roger Scruton (1944-2020) decerto era quem mais entendia acerca da relação entre beleza e arte. O filósofo britânico, sempre muito respeitado nos círculos acadêmicos, conseguiu popularizar seus vastos estudos acerca da importância da harmonia estética — que remeteria justamente ao que o homem tem de mais próximo ao sagrado, ao caráter perfeito da Criação — graças à série de documentários “Por que a Beleza Importa”, exibida pela BBC. A suposição de que a beleza seria um recurso poderoso para afastar cada vez mais o grande público das manifestações artísticas mais sublimes, argumento também levantado por Scruton, é logo derrubada, devido à necessidade de se encontrar beleza na arte também para que reflitamos sobre nossas próprias vidas, em que falhamos e por quê. Nesse particular, o pensamento de Scruton se assemelha muito às teses de Platão (428 a.C. – 348 ou 347 a.C.) no que respeita à beleza como sentido da própria existência, o que nos conduz outra vez à religião. Bom gosto e mau gosto não seriam, portanto, meras questões subjetivas. Schopenhauer (1723-1790) celebrizou a ideia de que o homem não sabe querer, que toda vontade humana advém diretamente de sua porção mais obscura, sendo, portanto, impossível a humanidade ter alguma perspectiva de salvação. Ou seja, gosto não é, apenas, caso de opinião. Contudo, há determinados produtos artísticos que, ainda que não se notabilizem precisamente pela beleza, exercem verdadeiro fascínio junto ao público, sobretudo no cinema. Arte da imagem em movimento, o cinema foi capaz de classificar a “beleza” de cascatas de sangue jorrando de corpos destroçados em um gênero próprio, o gore, que cativa o espectador exatamente pela falta de maiores pretensões e pela displicência com que trata a vida e seus caminhos tortos. Por mais que a maioria das pessoas não assuma nem se submetidas a alguma das sevícias que se veem nessas histórias, elas têm seu espaço no coração da audiência. “Amores Canibais” (2016), da iraniana-americana Ana Lily Amirpour, sobre uma garota sem lugar no mundo, é um gore com sangue nos olhos; já a trama de “O Poço” (2019), do espanhol Galder Gaztelu-Urrutia, outra distopia regada a muita violência, suscita discussões sobre desigualdade social e o poder do livre arbítrio. Os títulos, no acervo da Netflix, são citados do mais recente para o lançado há mais tempo. Veja ou volte a ver, porque a gente sabe que, no fundo, você gosta.

Numa prisão, detentos são alimentados por uma plataforma descendente. Esse mecanismo faz com que os que estão nos níveis mais altos comam em demasia, enquanto os dos andares mais baixos passem fome, até que um dos confinados se rebela e tenta transformar o sistema, sem entender que há uma lógica na sua perversão. “O Poço” é uma alegoria inteligente e criativa, ainda que um tanto chocante, sobre a sociedade num país qualquer da América Latina, desigual e injusto, mas também do próprio gênero humano, onde quer que se estabeleça: é da natureza mesma do homem, completamente perdido no mundo, subjugar seu próximo, aprisioná-lo e tirar dele todas as vantagens possíveis. Até um naco a mais de carne.

Distopia cuja história se passa num futuro em que o mundo resta completamente arrasado, os antropófagos de “Amores Canibais” vivem num paraíso particular nas entranhas do Texas. Miami Man, uma espécie de líder nessa falange de insanos, passa a demonstrar um interesse especial por Arlen, uma das cativas usadas como alimento, o que suscita em cada um emoções dicotômicas, líricas e perversas. O filme da iraniana-americana Ana Lily Amirpour fala de possibilidades nada animadoras para o homem, cenário que ele mesmo se empenha em fomentar, mas também de como, mesmo em um estado de flagrante degenerescência, sempre resta nos indivíduos alguma coisa que os lembre de sua natureza humana e, portanto, igualmente divina. A trilha sonora, com clássicos dos “apocalípticos” anos 1980 e 1990, essa, sim, é um legítimo acepipe ao ressuscitar Boy George e Ace of Base. Por uma razão ou outra, o enredo desperta o amor da plateia, sempre ávida por carne fresca.

Aos poucos, Fede Alvarez galga o Olimpo rumo ao posto de diretor queridinho de Hollywood. Foi a partir do aclamado curta “Ataque de Pânico” (2009), em que robôs investem contra Montevidéu, que Alvarez se cacifou junto aos grandes do mercado cinematográfico e, em 2013, dirigiu “A Morte do Demônio”, produzido por Sam Raimi. Com “O Homem nas Trevas”, segundo longa-metragem do diretor, Alvarez mostra que está cada vez mais afiado, em cenas com a medida exata de suspense. Uma pequena gangue de assaltantes segue dando trabalho à polícia, graças à destreza com que realizam os roubos. Ao descobrir que um homem já entrado em anos, e cego, recebe uma vultosa herança por conta da morte da filha — e que guarda a bolada em sua casa —, eles vão para o tudo ou nada. E, pelo menos para eles, é nada. A vítima, um veterano de guerra, tem grande experiência com armas, e em combater inimigos. Esse aparentemente inofensivo velhinho, na verdade, guarda alguns segredos, e nisso a narrativa cresce. Bandidos assumem uma natureza vulnerável e quem passa a dar as cartas é o ameaçado. O espectador também cai, com gosto, na armadilha preparada por Alvarez, e se põe a conjecturar sobre quem é menos vil na história. Surpreendente, pleno de reviravoltas, filme em que se torna impossível calcular o próximo lance, como se não fosse suficiente, “O Homem nas Trevas” ainda pode se orgulhar de seu exíguo, mas bravo elenco, que à medida que apresenta performances diametralmente contrárias ao óbvio, sobe o nível desse thriller. Apesar de tantas cenas indigestas, “O Homem nas Trevas” desce redondinho. A direção de fotografia, irretocável, destaca o claro-escuro do ambiente, uma extensão da própria aura da história, fazendo do conjunto uma composição bastante harmoniosa.

Despedidas de solteiro são eventos com um sabor todo especial na vida de um homem. É como se aquela festinha adquirisse um caráter de libertação, em que tudo seria permitido para, a partir do matrimônio como mandam as tradições, só se proceder à luz do bom, do justo e do belo. E é justamente numa gandaia como essa que quatro amigos passam um grande apuro. A história se desenrola em Las Vegas, um dos cenários mais dados a exaltar o que haveria de pior no espírito do homem: o vício, a cobiça, a busca desmedida por dinheiro, o prazer que essa busca proporciona. Agora aprisionados por um esquema sinistro, comandado pelo Clube de Caça Elite, que apresenta espetáculos bizarros, eles vão ter de pensar num jeito de sair da arapuca em que foram se meter, neste terceiro e último longa da franquia.

A necessidade de se alhear do mundo, de assumir outras identidades, outras vidas, é uma constante na vida do homem desde sempre, e o cinema registra isso muito bem. Filmes a exemplo de “Medo e Delírio” (1998), de Terry Gilliam, baseado no livro de Hunter S. Thompson (1937-2005), servem como um alerta ao explorar o tema da degradação das sociedades num mundo mais e mais entregue à necessidade de se iludir. Em “O Albergue”, primeiro filme da trilogia, Paxton e Josh, dois universitários americanos, partem pela Europa em busca de aventuras extrassensoriais. O islandês Oli, que conhecem no caminho, passa a seguir com eles e, os três, curiosos quanto ao que ouviram sobre um albergue na Eslováquia onde se dão as mais loucas experiências, resolvem conferir o que de fato acontece no lugar. Lá, conhecem Natalya e Svetlana, duas belas eslovacas que se mostram interessadas neles, mas como nem tudo é como parece, Paxton e Josh logo vão se convencer de que mesmo o prazer, muitas vezes, cobra um preço alto demais.