A arte cinematográfica só resiste graças à persistência e ao talento dos milhares de profissionais envolvidos nos bastidores. É possível se pintar um quadro sozinho, se escrever um romance de 1000 páginas sem ajuda, mas e quanto a um filme? Evidentemente uma história não chega à tela grande sem o concurso de muita gente. São técnicos de som, de luz, maquiadores, cabeleireiros, camareiros, eletricistas, motoristas, produtores, roteiristas, atores e, por fim, os tão necessários diretores. O que seria do cinema sem o gênio de seus diretores? Considerado a alma do filme, é o diretor quem responde por toda a equipe, quem apara uma ou outra aresta, quem, muitas vezes, se exalta e dá chilique, sempre visando a extrair o melhor de seus comandados, o que decerto vai se espelhar na trama a que se dedica. Pleno de diretores cujo talento não se compara, a sétima arte tem três representantes à altura de sua importância para a evolução da humanidade. Filho de imigrantes italianos, o veterano Martin Charles Scorsese é o que poderia se classificar como um case de sucesso. Scorsese, ganhador do Oscar de Melhor Diretor por “Os Infiltrados” (2006), é dono de um estilo inconfundível, que se espraia em filmes sempre tensos e longos, mas nunca tediosos, em que muitas vezes retrata os vínculos escusos entre policiais e bandidos e a influência de organizações criminosas como a máfia italiana na formação dos Estados Unidos, como se denota de “O Irlandês” (2019). E se a intenção é polemizar, logo vem à lembrança de cinéfilos de todas as idades, em especial os mais verdes, é verdade, a figura exótica e o seu tanto cinzenta de Quentin Jerome Tarantino. Obcecado desde tenra idade com o cinema e suas histórias maravilhosas, Tarantino é mestre em amalgamar violência (muita violência) e uma trama cheia de reviravoltas dramáticas, primando por despertar no público aquele suspiro, aquele grito sufocado que só quem trabalha muito — e de modo insano — consegue. Recentemente, o diretor andou dizendo que o fim da linha para ele está próximo. Tomara que se espelhe em Scorsese e fique um pouco mais — e tudo indica que o que Tarantino pretendeu mesmo com a declaração foi ganhar um pouquinho mais de confete, haja vista a repercussão fora de controle de produções como “Era Uma Vez Em… Hollywood” (2019) e “Bastardos Inglórios” (2009), em que discorre sobre a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) de um jeito que só mesmo ele poderia. Para fechar a trinca bonito, Christopher Edward Nolan é o típico autor de cinema. Dentre os três, sem sombra de dúvida, Nolan é quem mais pode reivindicar o predicado de diretor cabeça, Truffaut redivivo, e prolífico executor de filmes cujo apuro estético em nada deve à qualidade da pesquisa, profunda, metódica, irretocável. É o que se apreende em “Interestelar” (2014) e “Dunkirk” (2017), em que ele escrutina o resgate de mais de 300 mil soldados aliados no litoral da França, encurralados pelas tropas de Hitler durante a Segunda Guerra. “Dunkirk”, “Bastardos Inglórios”, “O Irlandês” e mais sete produções desses ases do cinema constam da nossa lista de hoje, todas na Netflix, da mais recente para a mais antiga. Os três merecem nosso aplauso em cena aberta.
Tirada do livro “I Heard You Paint Houses” (2003), de Charles Brandt, investigador profissional que se debruçou sobre o crime organizado nos Estados Unidos, a história de “O Irlandês” desvenda o envolvimento de Frank Sheeran, um dos maiores mafiosos americanos entre os anos 1960 e 1970, no sumiço do líder sindical Jimmy Hoffa. O filme esmiúça a vida de crimes de Sheeran desde o começo, quando ele conhece Russel Bufalino, um dos gângsteres mais poderosos da Pensilvânia à época e se torna um pintor de casas, alusão ao sangue das pessoas que extermina ao respingar nas paredes, expressão que Brandt tomou por base ao batizar o livro. Conforme a trama se desenrola, o espectador acompanha a escalada do irlandês junto à quadrilha, sempre fiel a Bufalino, seu padrinho na vasta carreira de delinquências. Foi honrando a confiança que o chefão depositara nele que Sheeran pôde chegar tão longe, e em nome desse código de honra muito particular, comete as maiores baixezas, como matar Hoffa, outro homem-forte do submundo que também o tomara por protegido. Sheeran não resiste a uma ofensiva mais severa do FBI e cai, levando os peixes grandes todos consigo. Amarga alguns anos de cadeia e termina num asilo, onde o filme principia e acaba, recurso muito bem usado por Martin Scorsese, um mestre também em se valer da estratégia de comprimir e alongar o tempo a seu gosto, a fim de imprimir mais realismo aos enredos que defende. “O Irlandês” talvez seja a obra-máxima de Scorsese — até que venha a próxima.
Em 1975, o cantor e músico americano Bob Dylan, ícone do rock e da música folk, levanta acampamento e sai em turnê pelos Estados Unidos, sua pátria, mas um território o qual não conhece muito bem. As vésperas de seu bicentenário de fundação, a América era palco de agitações culturais à luz da contracultura, movimento que pregava a negação de tudo quanto se pudesse ter como já estabelecido, na política, na ciência e, claro, na arte. Seus expoentes maiores, casos de Allen Ginsberg (1926-1997), na poesia, e Patti Smith na música, vão com ele, suscitando a curiosidade de um público que, em pouco tempo, não cabia mais nos exíguos inferninhos do underground país afora. Um dos artistas mais inventivos da história, Dylan ganha um registro desse momento brilhante na carreira, graças ao olhar igualmente revolucionário de Martin Scorsese. Valendo-se de imagens de arquivo, recuperadas e melhoradas, além de novas entrevistas com um Dylan meio reticente quanto à empreitada do diretor mais de 40 anos depois — “isso faz muito tempo, já nem me lembro”, desdenha o astro à certa altura do documentário —, Scorsese devolve a aura de glória do país em que ambos nasceram, um tanto empanada pelos últimos incidentes protagonizados por políticos e seus asseclas intolerantes, dando novo fôlego ao espírito de liberdade, noção cara ao povo americano. Tudo é tão bem esmiuçado que descobriram até Sharon Stone, pouco mais que uma adolescente, entre os espectadores das apresentações.
Com “Dunkirk”, Christopher Nolan conseguiu duas verdadeiras proezas. A primeira foi entregar um filme absolutamente distinto do que vinha apresentando em trabalhos a exemplo de “Batman: O Cavaleiro das Trevas” (2008) e “Interestelar” (2014). Por aí, já se vê que Nolan é um diretor plural e ambicioso, mas a cereja do bolo está mesmo aqui. Sua segunda façanha foi ter imprimido tamanho realismo e dramaticidade numa história carregada de significado. O filme conta, com o rigor intelectual necessário, como se deu o resgate de mais de 300 mil soldados britânicos na costa francesa, completamente sitiados pelas tropas de Hitler. Só o número de figurantes necessários para se emprestar credibilidade às sequências já é uma epopeia à parte, mas a força do talento de Nolan dá conta do recado direitinho. Sem nenhum exagero, “Dunkirk” comprova que Christopher Nolan se superou frente a todos os seus excelentes trabalhos anteriores e produziu a obra definitiva sobre operações militares arriscadas no decorrer de uma guerra. Os cinéfilos esperamos que ele seja vencido.
“Django Livre” é mais uma das provas da megalomania crescente de Quentin Tarantino. Desde “Cães de Aluguel” (1992), o diretor se testa e se supera, inventando alguma coisa a mais a fim de mostrar que é capaz de surpreender o público. Aqui, o plot se assemelha muito ao de “Os Oito Odiados” (2015): pessoas sem nada em comum têm de se suportar. A história do escravo amargurado, que junta o remorso de toda uma vida no intuito de alcançar a nova história com que sempre sonhou, toma a narrativa a partir da segunda metade do filme. Jamie Foxx mergulha na alma de seu personagem, tornando não só crível como desejável o twist de Django. O escravo provoca na audiência uma espécie de revelação, aplicando sal às chagas da sociedade americana. O racismo, sobretudo, mas também a obsolescência da economia dos Estados Unidos quando da Guerra Civil (1861-1865), são abordados de forma a estabelecer um vínculo indelével entre um e a outra. Negros cativos são primordiais quanto a manter a roda da economia pulsando; por outro lado, Tarantino atenta para a mediocridade do homem médio americano, incapaz de enxergar que trabalhadores libertos ser-lhe-iam fonte de muito mais lucro. Tudo na base da fantasia. O dom de subverter o clichê politicamente correto mais pedestre, uma marca de Quentin Tarantino, se atesta também em “Django Livre”. Como no Brasil de Chica da Silva (1732-1796), houve negros que ou se serviram de outros negros escravizados ou fizeram um bom dinheiro à custa do subjugo desses indivíduos. Ao fim de mais uma aula — de cinema e de história —, só o que o espectador aspira a saber é: quando sai o próximo?
Uma trama muito acima da média, um bom elenco, a fotografia perfeita e… voilà!, se dá a mágica. O detetive aparentemente clichê de Leonardo DiCaprio se vê no meio de uma investigação nada convencional em que ele próprio adquire papel de destaque. O personagem de DiCaprio precisará esquecer qualquer estereótipo do detetive de filme ambientado nos anos 1950 se quiser desvendar o caso do paciente assassinado num sombrio manicômio presidiário no meio do mar: deverá também ele se imiscuir na história e se tornar um dos lunáticos ali encerrados — ou pelo menos se aproximar o quanto puder disso. A ilha não tem nada de paradisíaca; sua possível natureza de idílio fora totalmente deformada, à guisa de derradeiro refúgio para a loucura criminosa que habita o coração de determinados homens. Nesse Éden demoníaco tudo fica ainda pior quando a cólera de um furacão deixa o lugar incomunicável, vários internos fogem e o caos se instala de vez.
Ao longo da prolífica carreira, Quentin Tarantino foi se relevando um sujeito obsessivo. Primeiro, começou tratando de temas afins a ressentimento, honra, vingança… À medida que amadurecia como artista, adicionou elementos da História com “H” maiúsculo, e surgiram preciosidades a exemplo de “Django Livre” (2012) e “Os Oito Odiados” (2015), com a Guerra Civil Americana (1861-1865), decerto uma das muitas fixações do diretor, como pano de fundo. E já que se falou de vingança, sangue, História, Tarantino, há que se falar de “Bastardos Inglórios”. Era uma questão de honra para Tarantino dirigir um filme acerca da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Em 2009, o que era mero fetiche tomou corpo, e o diretor mostrou a sua versão sobre o conflito, sem muito compromisso com a fidedignidade histórica, frise-se. Qualquer um com o mínimo de vivência cinematográfica identifica uma produção tarantinesca de longe. Além dos aspectos já mencionados, somam-se ao banquete do diretor a monomania quanto a escrutinar (e fiscalizar) o trabalho dos atores de perto. E em “Bastardos Inglórios” estão todos excelentes: Brad Pitt, irreprochável como o comandante dos bastardos, Diane Kruger, em sua melhor forma; Mélanie Laurent, desabrochando para o grande público; e Christopher Waltz, a cereja desse bolo, impagável na pele de Hans Landa, o oficial nazista humilhado pela falange de mercenários americanos que lhe valeu o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante. O preciosismo de Tarantino toca as raias da insanidade ao adotar para cada personagem o idioma correspondente à sua nação de origem. Em se tratando de Quentin Tarantino, aliás, o bolo pode ter todas as cerejas que quiser e, como voltaria a fazer em “Os Oito Odiados”, conta com a assinatura de ninguém menos que Ennio Morricone (1928-2020) na trilha sonora, assessorado pelo gênio de David Bowie (1947-2016). Clássico e moderno, sério e divertido, “Bastardos Inglórios” é Cinema, com “C” maiúsculo.
“Olá, damas e cavalheiros! Eu sou o entertainer desta noite!” A despeito do começo eletrizante, com as precisas cenas de tensão durante um assalto a banco, parece que só depois que essa frase é dita pelo personagem principal é que começa “Batman: O Cavaleiro das Trevas”. É claro que não estamos falando do Homem-Morcego, muito menos de Bruce Wayne, sua porção à paisana. No roubo ao banco, o Coringa já havia roubado também a cena, mas é na sequência da festa na casa do multimilionário que tudo começa a fazer sentido, inclusive termos incluído o filme nessa lista. O protagonista-antagonista, levado com uma performance mediúnica por Heath Ledger num de seus últimos trabalhos, é a completa tradução da visão de mundo mais diabolicamente anárquica que alguém pode ter. O vilão deixa uma marca de ódio e perversidade por onde passa, nada preocupado em sofrer alguma retaliação. Batman passa a trama inteira ansiando por botar as mãos no homenzinho do terno roxo, façanha que só consegue no final — e mesmo assim a gente lamenta. Na versão da franquia que coube ao diretor Christopher Nolan, um dos mais talentosos e devotados de Hollywood, de fato são as figuras noir as que ganham — e merecem — o centro das atenções. Outro ponto alto da fita é o destaque dado à subtrama de Harvey Dent, o herói decaído que literalmente se transfigura no bandidão Duas Caras. Aqui, é possível entender direitinho como se deu essa mutação. Como sói acontecer, Nolan se arriscou, apostou alto e quebrou a banca, inclusive na arrecadação bilionária do filme, um dos recordistas no quesito.
Martin Scorsese se destaca ao retratar histórias verídicas que, com seus detalhezinhos saborosos, pontuam uma narrativa plena de beleza, de força, de valor histórico. Em “O Aviador”, o anti-herói Howard Hughes, tornado milionário aos dezoito anos à custa de uma herança, tinha tudo para ser feliz. No entanto, pula de galho em galho, numa busca insana por glamour, reconhecimento, afeto. Falta-lhe uma razão para viver e ele até parece encontrar, na pele de um mecenas o seu tanto excêntrico, que não se incomoda de gastar rios de dólares em filmes de retorno financeiro incerto, mas que lhe dão muito prazer. Essa é decerto a palavra que balizou a vida de Hughes. Aviador diletante, passa a construir pequenas aeronaves e aprende a pilotá-las — o que implica alguns acidentes, frise-se, dos quais, milagrosamente, escapa ileso. Hughes era um playboy, um estróina, um bon vivant, mas graças a sua própria fortuna. Tendo de lidar com seus muitos transtornos psiquiátricos, como uma agorafobia severa que o impedia de sair de sua sala de cinema particular, Hughes constitui um capítulo à parte na história do cinema e mesmo dos Estados Unidos, pátria dos empreendedores por excelência, e ainda que com uma existência tão atribulada, era capaz de despertar a inveja masculina, motivada por seu envolvimento com Katherine Hepburn e a diva Ava Gardner, grandes estrelas da telona à época.
Na Nova York dos anos 1870, Newland Archer, proeminente advogado que conhece todo mundo que importa, está prestes, enfim, a ingressar na aristocracia americana pela porta da frente, graças ao casamento com a jovem May. Tudo corre como ouro sobre azul: Archer ama a noiva e é correspondido, mas ao conhecer a prima da futura cônjuge, a condessa Ellen Olenskaia, recém-chegada da Europa e num casamento em frangalhos, ele fica balançado pela beleza paralisante e pelo poder de sedução de sua figura gauche, cuja reputação não é das mais recomendáveis. “A Época da Inocência” é literalmente uma pintura do período que se propõe a retratar, repleto de sequências que enchem os olhos e aquecem o coração, ainda que a história seja linear além da conta. Aqui não há nenhuma reviravolta, nenhum lance imprevisível, falta ricamente compensada pelo vigor das atuações.