“Digam o que quiserem os hipocondríacos: a vida é uma coisa doce.” A frase, atribuída a ninguém menos que Machado de Assis (1839-1908), é um tanto reveladora da profundidade da alma do Bruxo do Cosme Velho, o maior representante da literatura nacional. Machado não legara descendentes à miserável humanidade, decerto temeroso de que fizessem a natureza humana se esfacelar ainda mais, mas se tivesse procedido dessa forma, haveria de dar um conselho à luz do pensamento popular latino que reza o aproveitamento do dia (de hoje), dado que o porvir seja tão incerto. A vida é plena daqueles momentos muito particulares em que ou se dá um tempo, pede-se licença e se desce do mundo, ou a gente simplesmente enlouquece. Ao longo da semana, uma pletora de situações mais ou menos desgastantes vêm à tona e haja rebolado para não deixar a coroa ir ao chão. É muita fatura para se pagar, é muito filho para se educar, é muito marido de quem se tomar conta, é muita esposa, sobrecarregada, se queixando, isso para não entrar no mérito das questões de interesse nacional, complexas, aborrecidas, insolúveis. Sabe quando você precisa daquela série de que está todo mundo falando a fim de desopilar um pouco o fígado, mas nunca encontra? Pois é, seus problemas acabaram (mesmo). A Bula elencou cinco delas, todas à disposição no acervo da Netflix, para fazer você procurar em si aqueles óculos especiais perdidos de há muito e enxergar a vida em cor-de-rosa. “Emily em Paris” (2020), dirigida por Andrew Fleming e Peter Lauer, sobre uma jovem executiva americana em ascensão na vida profissional que se muda para Paris, é garantia de bons passeios pela Cidade Luz, regados a muitos diálogos com a dose certa de humor. Também a propósito de mudança, “Virgin River” (2021), com direção de Ian Hay, não vai fazer você rir tanto, mas mesmo assim você vai achar muita graça. Lançadas entre 2018 e 2021, as produções aparecem da mais antiga para a mais recente, sem nenhum outro critério. O fim de semana já está no forno. Aqueça seu coração.
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Problemas de autoaceitação na juventude, quem nunca? Na série, baseada nos apuros juvenis da atriz e comediante Mindy Kaling, a protagonista Devi, vivida por Maitreyi Ramakrishnan, indiano-americana e nada popular na escola, tenta sobreviver na selva como se lhe apresenta a vida no colégio, rodeada de poucos amigos — duas, para ser exato —, uns tantos inimigos e o restante, completamente indiferentes à sua figura um tanto deslocada, não na escola: na própria vida. Devi conta com pais amorosos, mas severos, que percebem logo a hecatombe que é a vida social da garota, mas ao mesmo tempo, marcam em cima e cobram dela que esteja sempre com o boletim no azul. Ao retratar as muitas transformações por que passam os indivíduos nessa altura específica da vida, com responsabilidade e de uma maneira sensível, “Eu Nunca…” é programa para a família toda, refletindo sobre questões um tanto graves, mas com sutileza.
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Em “Geração 30 e Poucos”, o público é apresentado ao trio de protagonistas, Daniel, Luca e Sandro, adolescentes durante os anos 1990 numa ilha da Itália. Com a modernização crescente dos meios de comunicação, logo se dá o advento da internet, transformando a história — e a deles. Os três passam a baixar e vender pornografia, talvez os pioneiros nesse mercado tão específico, no qual resistem ainda hoje, com adaptações pontuais. Agora, são responsáveis por administrar um aplicativo de relacionamento, atividade extremamente lucrativa graças à vida monótona do lugar em que ainda vivem. Daniel é o principal garoto-propaganda do serviço, por meio do qual conhece Matilda, que de imediato lhe desperta um interesse um pouco além do recomendável em se tratando de alguém que jamais vira antes. Como numa reviravolta digna das que a própria vida elabora, eles se dão conta de que já foram namorados, mas que por uma razão ou outra — falta de amor, excesso de amor, divergência de interesses? — se separaram. Terão uma segunda chance para viver de novo seu romance? E, o principal, daria certo? Ao longo de oito episódios, “Geração 30 e Poucos” traz subtramas envolventes, num texto bem-escrito e com atores no timing perfeito. É divertido, sem ser bobo, e inteligente, abdicando da sisudez.
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Anti-heroínas às voltas com crises de meia idade, altos e baixos na carreira, a falta (ou excesso) de filhos e hormônios começando a rarear são, quase sempre, o mote perfeito para histórias ou hilariantes ou dramáticas, ou cômico-dramáticas, como é o caso em “Virgin River”. Aqui, a enfermeira Melinda Monroe, a Mel, tenta não sucumbir à tristeza ao constatar que o destino a expulsara da torre de marfim em que vivia. De uma hora para outra, passou a não ter nem mais filho, tampouco marido, o desempenho profissional frente à tamanha desventura, claro, foi à breca e ela quase se despedaça junto. Como ninguém carrega cruz pesada sem ombros largos, a vida, como num passe de mágica, lhe dá uma segunda oportunidade. Virgin River, cidadezinha perdida no interior da Califórnia, solicita uma enfermeira para auxiliar o único médico do lugar. Com credenciais de peso no currículo, ela se candidata, é aprovada e parte rumo a Virgin River e à nova vida que merece. Mas recomeços podem ser mais difíceis do que se pensa. Para começar, a cabana que lhe serviria de morada pelo próximo ano, tempo de vigência de seu contrato, não é a casa de campo que o documento especificava. Para piorar, o médico que deveria acolhê-la nem sabia que ela estava a caminho e, ironicamente, os dois se conhecem depois que Mel bate o carro e é socorrida por ele, que ela, sem saber de quem é, trata como incapaz de gerir sozinho o hospital do povoado. A procura da enfermeira pelo seu novo pedacinho de céu se dá assim, aos trancos e barrancos, mas com a ajuda de Jack, dono do bar por quem o público logo passa a torcer para que vire mais que um amigo, as coisas aos poucos entram nos eixos. Ao longo das três temporadas, essa história vai ganhando cores mais ou menos dramáticas, numa narrativa fluida, mas que apresenta reviravoltas com um pé no realismo mágico, o que provocou a exaltação dos fãs mais conservadores.
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Emily Cooper, jovem executiva responsável pelo marketing de uma grande corporação, concorda em se mudar de Chicago para Paris a fim de alçar voos mais altos na carreira. Com todos os sonhos do mundo em si, Emily terá de remover as muitas pedras do caminho para permanecer no posto — a começar da dificuldade quase invencível da língua, que não fala, origem de uma infinidade de problemas também na vida pessoal. Apesar de ter abraçado a possibilidade de uma nova existência, Emily continua aferrada ao passado, ainda tão vívido, aos velhos amigos, aos hábitos de sempre. Conforme a narrativa avança, a protagonista se convence de que precisa de ajuda profissional quanto a exorcizar seus velhos fantasmas e assumir a vida que escolheu, afinal Paris é uma festa.
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Valer-se de motes escatológicos e de atores com defeitos físicos à moda de ponto de partida para se fazer piadas acerca das mais inusitadas situações é um recurso que o cinema e a televisão empregam desde sempre. No caso de “Lovesick”, como o próprio nome sugere, o amor está doente. Ao descobrir que pegou uma DST, Dylan ouve uma enfermeira, com um ar entre superior e compassivo, lhe passar um sermão: terá de procurar as muitas ex-parceiras sexuais a fim de lhes avisar sobre a chance de também estarem contaminadas, confirmação possível apenas mediante exame detalhado. Seu melhor amigo Luke e Evie, uma amiga que já foi apaixonada por ele, mas que hoje está noiva de outro, vão se prestar a ajudá-lo nessa infausta — e vexatória — missão, até que tenham zerado a lista, depois de percorrer meia cidade. Decerto, nem de longe passou pela cabeça de Tom Edge, o criador, nem dos diretores o argumento (absurdo, inverossímil, hipócrita, muitos dirão), de que sexo é uma escolha. Não se tem o encargo de se dar vazão ao desejo tão logo ele apareça. O sexo fortuito é um mal; o preservativo é apenas o mal menor e, mesmo com o emprego desse expediente ninguém está obrigatoriamente a salvo. Só se escapa de situações como a de Dylan ao se optar ou por uma vida celibatária ou pela vida sexual com uma única parceira — ou parceiro. Mas a vida já se nos apresenta dura demais para que nos inflijamos mais esse castigo.