O cinema feito na Europa é um capítulo à parte na já vasta história da sétima arte. A partir da Nouvelle Vague, movimento surgido na França dos anos 1960 que registrou em filmes magníficos as grandes mudanças pelas quais passava a sociedade francesa e o mundo, os roteiros escritos por europeus foram tomando um caráter mais autoral, mais pessoal, e não raro, roteiristas dirigiam seus próprios filmes. A “nova onda” oxigenou o ambiente o seu tanto abafado do star system hollywoodiano e apresentou algumas novidades, a exemplo da câmera-caneta, ou seja, a história era escrita conforme a câmera captasse os melhores enquadramentos, os melhores ângulos, a melhor fotografia. A Europa como pátria do cinema sempre valorizou a função do roteirista ao longo do fazer cinematográfico, mas a palavra final, claro, é do diretor, que acrescenta ou suprime trechos, quase sempre baseados na sua própria vida. A teoria do autor, celebrizada por François Truffaut (1932-1984) num ensaio publicado na revista “Cahiers du Cinema”, defendia que o diretor é o verdadeiro “dono” do filme, cabendo a ele a responsabilidade pela coesão da trama, da pré-produção ao corte final, o que resulta em filmes sólidos, que resistem ao tempo, em que se reconhece logo o estilo. No caso do próprio Truffaut, um dos autores mais inventivos do cinema, é impossível não se ter muito claro que um filme seja ou não do diretor, que conduzia com mão de ferro toda a evolução produtiva, chegando ao ponto de interferir também na distribuição. Europeus sempre encararam o cinema como arte, e em sendo assim, é perfeitamente viável se realizar centenas de filmes durante um ano, por exemplo, porque a força do que é dito se sobrepõe à dos efeitos especiais. Isso faz toda a diferença — e faz também os clássicos. Como a vida é movimento — e o cinema também —, os diretores europeus nunca deixaram de se reinventar e continuaram a entregar à humanidade enredos que já nascem sob o signo da eternidade. Na lista de Bula de hoje, destacamos cinco histórias de diretores europeus que já figuram entre as grandes da cinematografia universal. Em “Quem com Ferro Fere” (2019), do espanhol Paco Plaza, um enfermeiro se flagra às voltas com questões éticas a fim de levar adiante um objetivo pessoal; quando o assunto é beleza, lirismo, poesia, “Quién te Cantará” (2018), do também espanhol Carlos Vermute, com a história de uma cantora em dificuldades na carreira, certamente não pode ficar de fora. Os títulos, todos na Netflix, estão elencados do mais novo para o lançado há mais tempo, sem nenhum outro critério. Embarque nessa viagem pelo melhor do cinema do Velho Mundo e aprecie a paisagem.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

Que atire a primeira pedra quem nunca se flagrou atormentado por crises de consciência, vindas à tona depois de anos de contas a ajustar com o passado. Graças às muitas ironias do destino, Mario, ex-viciado em heroína que perdeu o irmão para a droga, tem a oportunidade de se reencontrar com o homem que quase arruinou sua vida. Mas a própria vida já mudou bastante: Mario está muito mais interessado em cuidar da mulher, grávida do primeiro filho do casal, e administrar a carreira de enfermeiro-chefe num grande hospital especializado em idosos do que nos prazeres fugazes de outrora. E é nessas condições em que se reencontra com seu antigo algoz, um chefão do narcotráfico que ainda hoje estende seus tentáculos pelo mundo todo, enquanto, alquebrado por uma doença degenerativa, luta para sobreviver e morrer com alguma dignidade, chance que o irmão de Mario não teve. O enfermeiro é tomado de um desejo insano por vingança desde que sabe que o traficante, chamado por ele de Alcaide, vai se internar justo no asilo em que trabalha — em vez de ser assistido pelos filhos, igualmente bandidos, em casa —, como se fosse o próprio destino que os tivesse disposto tão perto. Em paralelo, Mario tem de lidar com o assédio da família do gângster, que não admite que o pai permaneça hospitalizado, temendo que os negócios (e o próprio patrimônio do clã mafioso) sofram algum prejuízo, e com a própria família, ainda por se constituir de todo. Ao apresentar um dilema existencial da maior relevância, o filme cresce, sempre pontuado pela excelente trilha de Maika Makovski, já faltando meia hora para o grand finale, um dos mais tristes — e brutais, e poéticos — do cinema. Exatamente como diz o título.

Dramas de guerra geralmente rendem histórias memoráveis. É o que se vê em “A Trincheira Infinita”, cuja direção firme de Aitor Arregi, Jon Garaño e José Maria Goenaga proporciona ao espectador uma experiência comovente, graças à junção de diversas visões para um mesmo tema já na introdução. O clímax do filme está justamente no princípio, se espraiando com gradações de intensidade até o meio, quando a dinâmica da história de recém-casados que têm de driblar o caos da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), declarada apenas alguns dias depois da cerimônia — conflito sobre cujas motivações não sabem quase nada, aliás —, vai se condensando, se amolengando um pouco, e o olhar e a expectativa do público já estejam treinados. A sensação de aprisionamento dos dois protagonistas é transmitida com exímia competência pelo trio de diretores e, apesar de previsível, a narrativa nunca deixa de ser envolvente.

Lila é uma cantora famosa que não pensava em subir aos palcos outra vez, mas se vê forçada a retomar a carreira por precisar de dinheiro. Pouco antes de sua reestreia, ela sofre um grave acidente e acorda com amnésia. Por isso, a empresária de Lila, Blanca, decide contratar Violeta, uma imitadora anônima da qual toma conhecimento ao assistir a um clipe no YouTube. Violeta é a única que pode ensinar Lila a ser outra vez a grande diva que fora. “Quién te Cantará” não chega a ser um thriller típico, mas a narrativa é envolta por uma névoa de mistério; as duas protagonistas têm um carisma magnético, com a câmera e com os espectadores. Outro ponto alto do filme são as cenas em que Najwa Nimri, que vive Lila, interpreta as canções “Como um Animal” e “Procuro Olvidarte”.

Às vezes, os astros convergem, o universo conspira a favor e o cinéfilo, especialmente o que se dedica a cascavilhar filmes no campo árido do mundo digital, se depara com algumas boas surpresas. “Divinas”, da neófita Houda Benyamina, passa batido do grande público, apesar de ter vencido o prêmio de Melhor Filme de Diretor Estreante em Cannes. Merecidamente, a produção teve o fôlego renovado ao ser indicada ao Globo de Ouro, como Melhor Filme Estrangeiro de 2016. “Divinas” parece uma releitura de “Cidade de Deus” (2002), de Fernando Meirelles, ao retratar pessoas com uma origem em comum, mas que optam — e perseguem — uma trajetória distinta. Em “Divinas”, há Djigui, o garoto que não se seduz pela vida nem tão fácil do tráfico e se torna um artista, como o Buscapé do longa brasileiro, mas há também Dounia, que aspira à vida de crime e ostentação, à medida que convive com Rebecca, traficante já estabelecida no gueto em que vivem. É claro que a protagonista não tem a mais pálida ideia do que seja viver do tráfico, dos perigos a que se sujeitaria, de que pode se dar mal, muito mal, e que viver à margem da lei é um caminho para o qual não há retorno. Numa conjunção perfeita de roteiro, trabalho de atores, direção, montagem e trilha sonora, Houda Benyamina constrói cenas de impacto, ainda que sutis, e mesmo leves, explorando recursos aos quais o cinema já recorreu infinitas vezes, mas sempre de um ponto de vista inegavelmente original. Como a própria condição humana, “Divinas” é complexo, é denso. Onde floresce a desdita, transborda a graça.

A estreia de Raúl Arévalo no papel de diretor pode ser celebrada como mais um dos achados do novíssimo cinema feito no Velho Continente. Depois de se tornar conhecido por produções como “Dor e Glória”, de Pedro Almodóvar, indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, Arévalo se aventura por trás das câmeras apresentando um filme singular. O protagonista, o misantropo José (Antonio de la Torre) perde a namorada, morta numa tentativa de assalto a banco, mas parte pra outra numa boa, no caso, Ana (Ruth Díaz), a dona de um café que vai entrando na dele sem saber muito bem com quem está lidando. Vale a pena atentar para os cortes inusitados e o anticlímax no meio da história.