Alguns filmes têm o poder de causar emoções extremas, de colocar o cinéfilo dentro de cada cena e fazê-lo viver intensamente a história. A Bula fez uma lista de filmes do catálogo da Netflix que apresentam essas características: são hipnotizantes e causam sentimentos intensos e controversos. Todos os filmes selecionados foram aclamados pela crítica e pelo público, entre eles, destacam-se: “Beleza Avassaladora” (2021), Vinil Matthews; “A Sun” (2019), Mong-Hong Chung; “Longa Jornada Noite Adentro” (2019), Bi Gan; Dunkirk (2017), Christopher Nolan; e “O Cidadão Ilustre” (2016), Gastón Duprat e Mariano Cohn. Os filmes estão listados por ordem alfabética. As sinopses são de Giancarlo Galdino.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix
Muitas vezes é uma tarefa inglória apreender a atmosfera de um filme se não estamos inseridos na conjuntura social de onde foi feito. O brasileiro e o indiano são povos com muitos pontos de contato entre si, mas na Índia, as tradições, sem sombra de dúvida, têm muito mais peso. É o que se denota em “Beleza Avassaladora”, do diretor Vinil Matthews, cujo enredo, baseado no suposto episódio de adultério de uma mulher contra seu marido, apresenta situações as mais inadmissíveis, seja qual for o pressuposto que se tome. Nunca é possível se medir com exatidão as consequências de uma conduta desatinada, e tanto pior se pautada por meras suposições. A fim de garantir que sua honra permaneça imaculada, Rishu se entrega a seus instintos mais pérfidos a fim de mostrar à mulher, Rani, a abjeção do comportamento que ele acredita que a esposa tem mantido. Aqui, trata-se da possibilidade de um caso de traição, mas o buraco é muito mais fundo. Ao se julgar no direito de submeter a cônjuge aos castigos físicos mais austeros, o personagem transmite uma mensagem: cada um tem de conhecer o seu lugar, aceitá-lo e ali permanecer, como se tudo aquilo fosse um dado da natureza, imutável, ou, argumento ainda mais desumano, a vontade divina. E ninguém com mais crédito para discorrer sobre discriminação como política de estado, como modelo de tradição a manter determinados indivíduos eternamente congelados, incapazes de dar uma guinada na própria vida, que um hindu, haja visto que o sistema de castas segue sem qualquer abalo no país desde sempre. É triste ser mulher na Índia.
“A Sun” começa de maneira brusca e, assim, o espectador já fica esperto quanto ao que pode esperar do drama taiwanês do diretor Chung Mong-hong. Mas que ninguém se desestimule: o enredo é todo permeado por respiros cômicos — e eles são mesmo necessários. A pobreza, ainda que num país rico, é implacável, e ai daquele que pense que pode subverter o estabelecido. Contudo, seria tolo afirmar que o risco social é o responsável por fomentar a criminalidade; o fato é que a alma de todo homem tem sua face sombria — e cada um deve mantê-la sob controle. E controle — e, por extensão, autocontrole —, é uma ideia cara aos orientais. Um pai de família honrado não se prestaria a aturar os deslizes de caráter por parte de um filho, muito menos seus delitos. Ao tomar conhecimento da prisão de A-Ho, A-Wen exige que o caçula seja sentenciado com uma pena severa, o que revolta sua mulher, Qin, mãe do rapaz. A partir daí, o que se segue é a total desintegração do que até tão pouco tempo era um lar (e uma família). Ainda que haja uma ou outra tentativa pontual de contornar a questão, o casal, juntamente com o filho mais velho, pressentem que nada vai voltar ao ponto anterior à ruptura. A vergonha que todos sentem pelo destino de A-Ho, tornado ainda mais significativo numa sociedade que valoriza sobremaneira a austeridade da conduta social, o constrangimento, o remorso, tudo converge para que não consigam se encontrar outra vez. O sol pode até ser o que há de mais justo no mundo, mas só pode iluminar e emprestar seu calor a ambientes que se abram para ele. Do contrário, fica eternamente preso em meio à nuvem de ignomínia e pequenez que flutua sobre a natureza do homem desde sempre.
O cinema feito no Oriente é referência em criatividade. Livres de tantas amarras comerciais e donos de uma tradição milenar, que perpassa histórias fantásticas, fábulas e lendas, a Ásia é pródiga em oferecer ao publico — e ao mercado — produções inventivas, originais, inovadoras. O trabalho de Bi Gan é uma lufada de ar fresco no embolorado ambiente cinematográfico dos últimos dois anos, em se desconsiderando o circuito de filmes autorais, por evidente. O uso da técnica de 3D, já obsoleta apenas três anos depois, mas surpreendente até então, é simplesmente arrebatadora. As tomadas se sucedem sem edição, por meio filme, e isso é só uma pequena prova do preciosismo do diretor Bi Gan, um virtuose nesse expediente. O espectador é conduzido pela voz do narrador em off para o interior de uma boate, como se estivesse tendo um delírio, um transe, um sonho. Os movimentos são precisamente cuidadosos, calculados, o que evidencia a beleza dos planos para além do que poderia ser razoável, mas nada disso acontece sem que essa delicadeza tenha um propósito por trás. E o filme só pode mesmo ser singelo, doce, frente a natureza lírica do enredo. Um homem volta à sua cidade natal devido à morte do pai, encontra a foto de uma ex-namorada e, a partir de então, sai à procura dela. E essa jornada, conforme se vê na obra de Michelangelo Antonioni (1912-2007) e Alain Resnais (1922-2014) — e mais recentemente, Martin Scorsese e Tim Burton —, que tão magistralmente souberam registrar a passagem do tempo numa determinada configuração espacial, não é nada linear, assim como a vida. Todos esses artistas, Bi Gan inclusive, têm desenvoltura acima da medida quanto a apresentar soluções fílmicas que condensam a ação no presente e a que já está dada de maneira absolutamente verossímil. Quanto aos lugares, são como as diversas telas numa exposição, cada qual com seu sentido próprio, mas convergindo, de forma a compor um todo homogêneo. Para Bi Gan, a feitura de uma peça cinematográfica é, ainda no ovo, a possibilidade de ousar, subverter qualquer paradigma já estabelecido, sem subtraminhas bem narradas a fim de ganhar o público. O cinema de Bi Gan é de ação, no melhor sentido da palavra. “Longa Jornada Noite Adentro” é um filme que nos sacode, como a cobrar de nós alguma atitude, frente àquela história e à própria vida.
Osamu sustenta sua família nada convencional praticando pequenos furtos, no que é ajudado por seu filho. Ao fim de mais um dia de delinquências, se deparam com uma garotinha, aparentemente perdida. Eles relutam em acolher a menina, afinal, o dinheiro que conseguem quase não é suficiente, mas a mulher de Osamu resolve ficar com a pequena ao saber das condições em que ela vive. Essa família bandida parece feliz, até que um incidente vai revelar segredos que irão por à prova os laços que os mantém juntos. Ao abordar temas polêmicos como o de um clã inteiro que se entrega à marginalidade sem o menor drama de consciência, o filme já marca um golaço ao não se permitir patrulhar pelo politicamente correto e levantar questões complexas com humor e uma profundidade que nem todo mundo suporta.
Filmes de mães que abandonam o lar e relegam os filhos à própria sorte nunca são levados às telas impunemente. Depois de um distanciamento de mais de 30 anos, Anabel volta a ficar de frente com Chiara, a filha que abandonou. Chiara teria todos os motivos do mundo para não querer mais encontrar a mãe; no entanto, por sentir que a relação ainda pode ser reparada, sai à sua procura. Sua ânsia por fazer o tempo voltar, como num estalar de dedos, e ter pela mãe o afeto que a própria Anabel dispensara é tanto que lhe faz uma proposta inusitada: quer que viajem juntas e passem dez dias num lugarejo perdido entre a Espanha e a França. Este é um drama sobre dores, mágoas, murmúrios, emoções. A leviandade de Anabel, sua ausência na vida de Chiara, a solidão que a filha fora obrigada a vivenciar desde tenra idade por sua culpa, todas essas parecem questões menores se tomadas à luz do sentimento que se apossa das duas. A fotografia é um achado em meio a um filme o seu tanto longo em demasia, com silêncios profundos (e imprescindíveis) que se sucedem à medida que os diálogos, estudadamente pausados, vem à tona, desferindo golpe acima de golpe sobre o espectador, mas com doçura. A Chiara de Bárbara Lennie é mais um dos bons predicados dessa história, que se não termina bem, termina boa. Às vezes, nem as mães são felizes.
Com “Dunkirk”, Christopher Nolan conseguiu duas verdadeiras proezas. A primeira foi entregar um filme absolutamente distinto do que vinha apresentando em trabalhos a exemplo de “Batman: O Cavaleiro das Trevas” (2008) e “Interestelar” (2014). Por aí, já se vê que Nolan é um diretor plural e ambicioso, mas a cereja do bolo está mesmo aqui. Sua segunda façanha foi ter imprimido tamanho realismo e dramaticidade numa história carregada de significado. O filme conta, com o rigor intelectual necessário, como se deu o resgate de mais de 300 mil soldados britânicos na costa francesa, completamente sitiados pelas tropas de Hitler. Só o número de figurantes necessários para se emprestar credibilidade às sequências já é uma epopeia à parte, mas a força do talento de Nolan dá conta do recado direitinho. Sem nenhum exagero, “Dunkirk” comprova que Christopher Nolan se superou frente a todos os seus excelentes trabalhos anteriores e produziu a obra definitiva sobre operações militares arriscadas no decorrer de uma guerra. Os cinéfilos esperamos que ele seja vencido.
Em “O Mundo como Vontade e Representação”, publicado em 1818, o filósofo polonês Arthur Schopenhauer (1788-1860), defendia a ideia da vida sob a forma de uma vontade de vida, isto é, a vida seria uma mera prospecção do homem acerca de seus desejos mais obscuros. O homem não sabe querer, pois ao querer já espalha destruição por todo lado, e, portanto, há que se negar toda vontade, mesmo (ou em especial) as que, aparentemente, possam induzir a supostas boas intenções. Depois de um discurso o seu tanto ácido na cerimônia da entrega do Prêmio Nobel de Literatura, com o qual é agraciado, Daniel Mantovani, um bem-sucedido escritor que saíra de Salas, na Argentina, onde nascera e vivera até os 20 anos e fora viver em Barcelona, na Espanha, começa a sentir os efeitos autodestrutivos de sua sinceridade indomável. Os compromissos mais importantes são cancelados, sobra um ou outro simpósio ou palestra menos insignificante, e uma série de homenagens que o prefeito de Salas, justamente de Salas, houve por bem lhe dedicar. Daniel não está à beira da falência ou passando algum apuro de dinheiro, não se trata disso: o que o move é um misto de vaidade — porque, como ele mesmo reconhece, um escritor é feito de pena, papel e vaidade —; orgulho por, depois de haver desdenhado do Nobel, sua cidadezinha ter se lembrado dele; e, quem sabe, alguma condescendência. Por mais que tenha vivido os últimos 40 anos dizendo a si mesmo que seu passado o incomodava, de maneira consciente ou não embarca para a Argentina, sequioso por reencontrar esse passado. E o passado de fato permanece lá, mas diferente, como ele próprio. Como se Salas tivesse dedicado quatro décadas a fim de arquitetar uma vingança contra o filho ilustre, mas soberbo, uma sucessão de eventos começa a se abater sobre Daniel, primeiro apenas vexatórios. O constrangimento logo cede lugar a situações que exigem dele posições mais duras, como artista e como indivíduo. O escritor é impingido a tomar parte em diversas polêmicas, ainda que involuntariamente em algumas circunstâncias, e sua permanência na cidade natal se torna insustentável. O sermão (mais um) com que ataca as “autoridades” salenses, inclusive um autoproclamado artista plástico, presidente de uma associação de classe, que manipula o resultado de um certame de pintura que recusara seu quadro a fim de ser um dos vencedores, é, já faltando pouco mais de vinte minutos para o encerramento, o ápice do enredo. Sua forma de compreender a política, a arte, a cultura — palavra que lhe provoca asco —, são lições de vida para qualquer um, a despeito da época em que se esteja, num roteiro que não demanda nem o mínimo retoque. No surpreendente final, a pergunta que resta nas cabeças e nas bocas é: que diabos ele foi fazer lá? Mas a conclusão é óbvia e vem de imediato. Valeu a pena.
A intenção de se voltar à trilogia “Mad Max” já vinha desde o fim das filmagens da história original, nos anos 1980. O diretor George Miller e o astro Mel Gibson já acertavam os ponteiros quanto à produção da quarta parte da sequência, mas dificuldades de ordem burocrática atrasaram o projeto e Gibson foi cuidar da vida. Tom Hardy assumiu o papel do protagonista, a despeito de toda a desconfiança — e da torcida contra — e o resto é história: o desempenho memorável de Mel Gibson chegou a se constituir uma sombra sobre o novo líder do elenco, mas o novato se saiu melhor que ele mesmo esperava. O público aprovou e “Mad Max: Estrada da Fúria” é considerado um dos melhores da franquia. Aqui, Max, capturado, vira uma espécie de hospedeiro, fornecendo sangue para soldados batidos na guerra. Immortan Joe, chefe da comunidade local, subjuga a população por reservar em seu poder a maior parte da água de que dispõem. Max acaba servindo de bucha de canhão na sanha de Immortan Joe por manter seu domínio de escravos com mãos de ferro. Furiosa, uma das cativas que servia de ama-de-leite aos filhos da revolução, escapa e é aí que a história pega fogo. De uma fragilidade apenas aparente, Furiosa dá um colorido todo especial à trama ao se aliar a Max — e a química entre Charlize Theron e Tom Hardy é, decerto, uma das grandes responsáveis pela grandeza do filme, que, embora tenha levado 30 anos para sair do papel, veio à luz no momento preciso, pelas mãos do homem exato. George Miller parece ter guardado toda a sua verve para “Mad Max: Estrada da Fúria”, prova de que um filme, para ser bom, muitas vezes só precisa de um diretor talentoso. E talento George Miller tem de sobra.
Existem histórias tão inverossímeis que só poderiam mesmo ter saído da pena da própria vida. Dada a precisão do roteiro, o diretor Lenny Abrahamson parece ter pegado um filme prontinho, mas era justamente aí que residia o problema. Baseado no romance homônimo de Emma Donoghue, publicado em 2010, “O Quarto de Jack”, a força do enredo está na palavra. Cinema é palavra também, claro, mas é muito mais imagem, por óbvio. Abrahamson venceu o desafio ao optar pelo minimalismo da cena e voltar as baterias ao desempenho da excelente Brie Larson e do formidável Jacob Tremblay, mãe e filho enclausurados depois que Joy, a personagem de Larson, é sequestrada aos 17 anos por um maníaco que se aproxima dela pedindo-lhe que socorresse o seu cachorro. Dois anos e muitos abusos depois, Joy engravida e dá à luz o Jack do título, nascido no quarto em que são mantidos em cativeiro pelo criminoso, que se faz conhecer apenas pelo apelido, Velho Nick. Tudo o que têm são um ao outro e é cortante observar a estreiteza dos laços que os unem. A única ideia que Jack tem acerca do mundo se forma a partir das imagens de uma televisão velha. Nada para ele é real, apenas a mãe, já que nem a si mesmo consegue ver, por não existir sequer um espelho no cubículo. Imaginar que tudo aquilo possa ter acontecido de fato é asqueroso; tanto pior se sabemos que o livro de Donoghue se fundou no caso de repercussão internacional de uma adolescente que enfrentara o mesmo calvário que a personagem de Larson, com a agravante do Velho Nick da vida real ser Josef Fritzl, responsável por aprisionar a filha durante 24 anos. Quando resgatada, a garota era mulher feita e havia engravidado do pai reiteradas vezes. Fritzl se matou na prisão. Joy também consegue se ver livre de seu inferno particular, graças a um plano cuja participação de Jack é vital. Crianças têm o condão de ser (quase) sempre adoráveis e é o que também se observa com Tremblay, que conquista o público sem o menor esforço. A partir do segundo ato, quem reluz mesmo é a intérprete de Joy. É impressionante a compreensão que Larson tem do papel, dando-lhe a profundidade necessária. A readaptação à antiga vida se revela muito mais difícil do que ela pensava e lhe demanda uma boa dose de esforço quanto a exorcizar alguns fantasmas mais obstinados. A entrevista que Joy concede a um programa de grande audiência, sugestão do advogado da família — à custa de um gordo cachê —sai pela culatra. A âncora pesa a mão nas perguntas, Joy não digere bem o episódio e tenta o suicídio. Aos poucos e podendo contar com o carinho de Jack, da mãe e do marido dela, a protagonista vai dando a volta por cima, até que a sequência final dá a entender de que Joy e Jack, aos trancos e barrancos, foram felizes para sempre.