A religião é a origem primeira de toda sede de conhecimento humano; a partir dela, o homem busca outros caminhos, outras possibilidades quanto a entender seu lugar no mundo, ideias que, não raro, terminam por contradizer a própria religião. O desejo humano por sabedoria, por iluminação, sua crescente insatisfação e mesmo desconfiança do ente supremo que o teria criado suscita no homem o sentimento de uma espécie de infidelidade a esse ente supremo, ao próprio Deus, portanto. O homem que questiona, o homem que pensa, é um traidor de Deus, o que se pode provar por meio das próprias Escrituras, vide Adão e Eva, o casal caído em desgraça do bíblico “Gênesis”.
À medida que o homem conquista coisas, mais coisas anseia por conquistar. Sua busca frenética por poder, dinheiro, sucesso, prestígio e, a cereja do bolo, reconhecimento levam-no aos maiores desatinos. A necessidade do homem se convencer de que a única coisa de que pode mesmo dizer-se senhor é sua alma, e que, para possui-la verdadeiramente, é preciso observar a religião, mudar de vida, se converter — e nunca pensar que o processo está findo —, deveria ser o alicerce fundamental de toda congregação religiosa. Mas não é.
A partir dos anos 1990, um espectro passou a rondar o globo: o espectro do capitalismo do espírito. Mas que diabos — com o perdão da inferência — seria isso? Cansados de ter de esperar pela morte para alcançar o Reino dos Céus (se merecerem), protestantes das mais variegadas confissões se rebelaram e deram azo ao segundo cisma, à moda de Martinho Lutero (1483-1546), pai da Reforma que fragmentou o Trono de Pedro. As igrejas neopentecostais, como passaram a ser denominadas, difundiram a famigerada teologia da prosperidade. Deus não se ressentiria de que seus filhos, entre uma prece e outra, lembrassem o Pai acerca daquele boleto, daquele carro novo, daquela casa própria. O homem que conquista bens, muito diferentemente do que diz a Bíblia em Mateus 19:24, é o mais habilitado a ver a Deus, segundo esses neoteólogos. Para eles, dinheiro vem à custa de trabalho, premissa de saída correta. O problema é o que fazer quando todo o dinheiro de que se carece não chega na proporção exata quanto a se satisfazer essas ínfimas demandas, que logo se tornam maiores, porque, conforme ensina Schopenhauer (1723-1790), o homem não sabe desejar, e quanto mais deseja, mais peca, e à mesma medida de seu pecado, brota também seu sofrimento.
“Greenleaf” (2016), série de cinco temporadas na plataforma de conteúdo audiovisual em streaming Netflix, é o retrato da degradação, de uma degeneração muito peculiar — e muito nefasta. Uma família, os Greenleaf, vivencia a dor muito íntima de luto. Bem, na verdade, eles fazem que sentem essa dor, já que têm mais do que tratar. O império dito religioso erigido pelo patriarca, o bispo James Greenleaf, não pode esmorecer. Há que se bancar a enorme mansão em que moram todos juntos, unidos, como uma verdadeira família cristã, os carros importados, as viagens internacionais — na primeira classe, por evidente. Os Greenleafs são felizes, ao menos se esforçam muito por parecerem felizes, até a volta de Grace, a filha pródiga que abandonara o lar há 20 anos para conduzir a própria vida à sua moda. No primeiro episódio, à mesa do jantar, se constata que essa não fora uma boa ideia.
A produção, criada por Cart Wright e originalmente exibida no Oprah Winfrey Network, acerta na mosca ao abordar as trapaças do clã quanto a chegar ao bolso dos fiéis pelo caminho mais seguro, ainda que mais difícil, o coração, valendo-se do argumento da igreja dirigida por um estelionatário. A isenção de impostos para entidades de benemerência e religiosas, expediente previsto em lei nos Estados Unidos e macaqueado no Brasil, é fonte de golpes os mais engenhosos, com a agravante de que, em 90% dos casos, trata-se de dinheiro em espécie, infinitamente mais difícil de se averiguar de onde saiu e de rastrear seu destino. Também conta a favor de “Greenleaf” a coragem de encarar a evidência inescapável de que negros compõem a esmagadora maioria dessas assembleias, notáveis por pregar o Evangelho usando muita música (boa), dança e uma linguagem acessível e desabotoada, razões que explicam com transparência por que avançaram tanto sobre o catolicismo — e seguem avançando, graças à fraqueza invencível da alma humana.
A ideia da religião como mediadora da eterna mudança de vida, cara a todas as civilizações, é a síntese por excelência do pensamento de São Paulo de Tarso (5-67), Saulo, antes da conversão a Cristo. Um dos primeiros intelectuais cristãos, se não “o” primeiro, Paulo apregoava que o homem não tem necessidade alguma de possuir tesouros para se salvar, que a fé, apenas a fé, guardada mesmo ao preço da própria vida, é capaz de livrar o espírito do homem da danação eterna. Estava certo, até porque não fazia nada além do que replicar o Mestre. Jesus, ao falar de modo a ser entendido por qualquer um — como o bispo James —, por meio da parábola do grão de mostarda, quase invisível a olho nu, mas que se torna a maior das árvores, tomou essa figura de linguagem para explicar a importância de se crer em Deus. A fé, ainda que minúscula como o grão de mostarda, se cai em terra boa, cresce, verdeja, dá fruto. Paulo precisou cair do cavalo a caminho de Damasco, na Síria, e ficar cego por algum tempo, a fim de ver que precisava dar valor a Deus, não ao mundo, reflexão, por sua vez, tomada pelo gênio de Dostoiévski (1821-1881) como base de “Memórias do Subsolo”, publicado em 1864.
Em manifestando ideias e sensações meramente fantasiosas, o homem sofre e peca, mas só o faz porque não compreende sua própria alma, e essa incompreensão advém do fato de que não vai até lá, e não vai porque sua pequenez o impede. Todos somos livres para nos enganarmos à vontade, clamando a Deus por ouro, incenso e mirra em um mundo em que ser é ter, e nos comportando como o filho birrento que se determina a fugir de casa, mas não é valente o bastante para assumir suas debilidades. A religião molda o caráter do homem, para o bem ou para o mal, e por meio, dela, como sugere a etimologia mesma da palavra, nos religamos ao sagrado. Em “Greenleaf” fica claro que determinadas formas de religiosidade também reconectam o homem. Mas a ligação é para outro lugar.