Adam Smith (1723-1790), filósofo e economista escocês, viveu entre o começo e o fim dos Setecentos. Época de revoluções lapidares nas artes, na ciência e na economia, o feérico Século das Luzes mostrou ao mundo o gênio de Smith, responsável por elaborar uma das teorias mais completas acerca do liberalismo econômico, doutrina que, por sua vez, serviu de base para a fundamentação do capitalismo moderno. Avesso a maiores interferências do Estado na condução da economia, o liberalismo prega que os indivíduos — e, por extensão, os consumidores — são livres para escolher que empresas desejam solicitar, e o consumidor opta, claro, por aquelas que lhe proporcionam um produto ou atividade laboral mais bem-acabada, sem comprometer o bolso. Na busca por prestar melhores serviços, as empresas se autorregulam e se aprimoram, uma espécie de darwinismo vertido para o contexto mercantil. A concorrência é imprescindível para a manutenção das próprias corporações, tenham a dimensão que tiverem. No caso das grandes — e, em especial, das muito grandes —, a discussão assume a aura de uma verdadeira guerra de titãs, com cabeças rolando para todos os lados. Fundada há quase 100 anos, a pioneira Disney, até muito pouco tempo atrás líder absoluta no ramo do entretenimento infanto-juvenil, testemunhou sua hegemonia ameaçada pela Pixar, temor justificado — e que virou realidade. Teve de se mexer depressa, e o fez: em 2012, incorporou a rival, que tem a prerrogativa de produzir filmes alternativos, segundo se verifica no contrato entre as duas, e criou a Disney+, plataforma para exibição de filmes da empresa em streaming. A parada estava dada como ganha, mas outra concorrente de peso entrou no páreo. Com muito mais bala na agulha, a Netflix, cujo valor de mercado, a despeito da pandemia, bateu na casa dos 225 bilhões de dólares, 18% a mais que a Disney — superando também a Disney+, portanto —, conta com um acervo de qualidade gráfica igualmente boa, mas o pulo do gato é sua multiplicidade. No catálogo da mais nova, fundada em 1997, há animações dos quatro cantos do globo, magistrais ao descrever realidades as mais fantásticas — e obscuras. “A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas” (2021), dos diretores Michael Rianda e Jeff Rowe, é uma verdadeira pérola ao falar de tolerância, diversidade cultural e igualdade étnica em linguagem facilmente absorvível pelos mais jovens. Quanto a “Se Algo Acontecer… Te Amo” (2020), de Will McCormack e Michael Govier, o luto é abordado sob a ótica de um casal e é uma excelente pedida para quer (e é obrigado) a introduzir o assunto com os pequenos. As produções, todas na Netflix, claro, estão dispostas da mais nova para a lançada há mais tempo, sem outros critérios. Não precisamos nem dizer que animação — ou desenho mesmo — não é só para as crianças, né?
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

“A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas”, dirigido e escrito por Michael Rianda e Jeff Rowe, conhecidos pela série “Gravity Falls”, usa elementos de narrativa distópica a fim de contar como seria a dominação da Terra por dispositivos de inteligência artificial. Aqui, a humanidade depende de Katie Mitchell, uma nerd aspirante a cineasta, cheia dos conflitos típicos da idade, para se safar. Além de Katie, os Mitchell contam com Rick, o pai; Linda, a mãe; o irmão Aaron; e o pug Monchi, o mascote do clã. O filme é uma história divertida centrada na garota, meio perdida como todo adolescente, mas que acredita que quando se iniciarem as aulas na faculdade, na qual acaba de ingressar, vai finalmente encontrar seu lugar no mundo — e se enquadrar. Rick é o típico paizão, provedor, que tem por hobby consertar coisas, mas não sabe por onde começar sua tentativa de arrumar a relação com Katie, ainda que seja visível o amor que sentem um pelo outro. Rick vê na viagem para levar a filha à universidade uma chance de se acertarem de vez e decide cancelar o voo que havia reservado para irem todos de carro, num vibrante road movie.

Se a juventude é uma banda numa propaganda de refrigerante, o discurso da garotada é da mesma natureza: explode em bolhas, desordenadamente, lembrando que sempre há mais alguma coisa ao fim da garrafa. Em “Palavras que Borbulham como Refrigerante”, Kyohei Ishiguro traz a história de amor de dois adolescentes, cheios de medo, claro. As redes sociais têm se tornado uma espécie de válvula de escape para quem é privado da desinibição necessária no convívio com as outras pessoas. Para se expressar, o garoto se vale ainda dos haikus que escreve, poesias curtas, em que se prefere retratar fatos do ramerrão diário, expediente que alia ao hábito de publicar seus textos no Twitter. A menina sofre por causa dos dentes grandes em excesso, ainda mais enfeados com o uso de aparelhos, que esconde com a ajuda de uma máscara — a pandemia, portanto, não tem nada com isso. Sua aparência, contudo, não importa na liquidez do mundo virtual que, por paradoxal que seja, lhe permite ter milhares de seguidores. A menor espinha, o mínimo fio de cabelo desgrenhado, tudo vira drama quando se é adolescente. O primeiro ato do filme vai muito bem ao registrar os pequenos grandes desesperos do casalzinho, sempre imerso numa atmosfera densa e conflituosa além da conta. O celular é tomado como uma antena para o mundo, além de levar as idiossincrasias dos personagens sabe Deus para onde. As cenas são feitas de muito silêncio. Ali, há duas pessoas se entregando ao sentimento mais nobre que podem experimentar, cada qual enclausurado no seu próprio universo, vide o quarto do garoto, sendo que com a menina é ainda pior, já que nem se pode ver seu semblante por inteiro. Coming of age fluido, até frenético a partir de dado momento da narrativa — contrabalançada por muita doçura —, o filme tem seu quê de filosófico ao estabelecer comparações felizes entre os haikus e o laconismo das redes, inimigas da palavra por excelência. A partir da segunda metade, o filme torna-se acelerado em demasia quando passa a explorar o mote da visita dos protagonistas ao velhinho que mora nas redondezas, em apuros ao não encontrar o LP de que a mulher, já falecida, gostava. Mesmo com um ligeiro desvio de rota, que poderia facilmente comprometer todo o bom andamento do filme, “Palavras que Borbulham como Refrigerante” desce redondo, refrescante, saboroso, ainda que pudesse se mostrar um pouco mais encorpado.

Por mais que a melancolia de “Se Algo Acontecer… Te Amo” não deixe transparecer, o casal que protagoniza esse curta de animação já foi muito feliz algum dia. Reconforta saber que tentam se reencontrar, mas a dor de terem perdido a filha da maneira como tudo aconteceu os assola. Ao se deslocarem rumo à vida que levavam até que a tragédia os colhesse, têm uma ideia de como poderiam voltar não aos bons tempos de antes — o antes está morto —, mas, pelo menos, resgatar o sentimento que os conduziu até ali. A técnica empregada na produção, estreia dos diretores Will McCormack e Michael Govier, é primorosa. Com desenhos feitos à mão, o filme torna-se uma verdadeira relíquia em meio a tantas invencionices da tecnologia, e a força da mensagem se intensifica. A narrativa se caracteriza por manter passado e presente juntos, suscitando a ideia da necessidade de os encarar dessa forma a fim de que a trama faça sentido. Os protagonistas são acompanhados por sombras, como que a atormentá-los, numa alusão à força das lembranças, capazes de interferências severas na vida dos indivíduos: a experiência de cada um é regida também pelas memórias que temos acerca dos mais diversos eventos pelos quais passamos. A começar do nome, “Se Algo Acontecer… Te Amo” é um conselho a nos rememorar a efemeridade da vida. É sempre possível — e necessário — dar às lembranças seu verdadeiro peso.

Contra um mundo que só fala veneno, a surdez “A Voz do Silêncio”, de Naoko Yamada, ao abordar temas sensíveis como assédio moral entre crianças e adolescentes, deficiência física, autoaceitação, acerto de contas com a vida, presta um grande serviço ao público, não prescindindo de observar o requinte estético e a força da mensagem. Shōko Nishimiya, a protagonista, é uma garota surda. Shōko nunca tivera problemas quanto a sua condição, mas ao ser transferida para uma nova escola, acaba sendo hostilizada pelos colegas, liderados por Shouya Ishida, o valentão do pedaço. Shouya é acusado e a direção o expulsa. Passa a ser visto como um pária, os amigos se afastam e ele não sente mais vontade de planejar algum futuro, nem mesmo de continuar a viver. Planeja seu suicídio por anos, meticulosamente, ao ponto de conseguir juntar o dinheiro gasto pela mãe com o reparo dos aparelhos auditivos da ex-colega, que ele quebra numa de suas investidas contra a garota. Debruça-se junto ao parapeito de uma ponte e sobe para o lançamento, mas no instante derradeiro fica a par de que Shōko vai ser sua colega outra vez e, vislumbrando a oportunidade de se redimir, desiste, dando início a uma nova — e benfazeja —etapa em sua história. “A Voz do Silêncio” se trata justamente disso: a metáfora da existência como uma interminável chance de se recolher os cacos da dignidade e se recompor. O emprego da paleta de cores pendendo para tons pastéis e a preferência por planos mais abertos colaboram quanto a tornar o ambiente mais oxigenado e suscetível à conversão do antagonista, sem que haja mais vácuos. Nem silêncios.

Aos 10 anos, Chihiro é uma menina que, como quase todas as outras crianças da mesma idade, pensam que o mundo gira em torno do seu próprio umbigo, e, claro, vira uma fera ao saber que terá de se mudar com os pais. Eles dão início a essa longa viagem, mas a menina nota que alguma coisa dera errado. Seu pai certamente se perdera e conduzira a família para a entrada de um imenso túnel, guardado por uma estátua. Ainda que a situação se apresente o seu tanto inusitada, os pais de Chihiro entram, levando a menina consigo. Depois de andarem por algum tempo, chegam a um vilarejo aparentemente abandonado, embora numa das casas esteja posta uma mesa cheia de comida. Enquanto os pais se fartam, a protagonista sai num passeio e conhece Haku, que lhe recomenda deixar o povoado o quanto antes. Chihiro fica impressionada com a veemência do menino e volta correndo ao encontro dos pais. Para sua surpresa, nessa fábula sobre autoconhecimento e procura de respostas para os insondáveis mistérios da existência, ela se depara com dois porcos gigantescos. Começa um novo caminho para Chihiro, através de um mundo fantasmagórico, cheio de seres monstruosos e completamente hostis à presença humana.