Cada homem é um mundo, e dentro desse mundo, há ainda outros tantos, impossíveis de se contar. A alma humana esconde segredos, muitos inconfessáveis até para nós mesmos, dada a sua pujante natureza hedionda. Conforme passam os anos e temos nossas experiências mais íntimas, adquirimos a capacidade de entender um pouco a vida. Nem sempre reagimos às diversas situações que nos são impostas pelas circunstâncias da melhor maneira: ou aflora em nós um ímpeto de violência ou engolimos em seco, permanecemos calados por anos a fio, remoendo velhas mágoas e lembranças o seu tanto ácidas sobre determinados eventos. As coisas não ditas apodrecem em nós, eivando o espírito com uma espuma de maligno, que se alastra, que se aprofunda, que toma conta da alma, dos pensamentos, da cabeça e terminam por extravasar. A alma, da mesma forma que o corpo, quando doente exige assistência médica, e se não a recebe, só se pode esperar o pior. O diagnóstico de doença mental é definido baseando-se na escala de Robert Hare, em que o médico avalia o paciente de 0 a 2, conforme as características de seu comportamento frente às mais diversas hipóteses. O valor obtido no teste é o que vai dizer se alguém é de fato um psicopata, em que medida e qual o tratamento mais adequado para o caso. Psicopatas nem sempre são agressivos. A personalidade típica do indivíduo com esse transtorno mental é mais voltada para o esmero quanto à capacidade de manipulação, além do psicopata ser patologicamente egocêntrico e incapaz de colocar-se no lugar do outro. Se na vida psicopatas são fonte de todo tipo de perigo — e, o pior, de modo silencioso —, no cinema, quanto mais psicopatas, melhor. O Brasil está cheio de maníacos das mais impensáveis categorias, na política, inclusive, mas dirigindo o olhar para o norte, vemos quão peculiares são as características de um psicopata americano no filme de Mary Harron, lançado em 2000 exatamente com esse nome, na figura de Patrick Bateman. Já Anton Chigurh é decerto um dos mais sanguinários e gélidos lunáticos da história do cinema, trazido à luz pelas mãos de Ethan e Joel Coen em “Onde os Fracos Não Têm Vez” (2006). Na nossa capivara, digo, lista, eles aparecem segundo o ano de lançamento dos filmes que protagonizam, do mais recente para o antigo. Aprecie-os sem moderação, guardando o pé de pato, o dente de coelho, o alho e o ramo de arruda para os facínoras deste nosso mundo aquém-câmera.
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Num mundo feito a partir das piores escolhas e dos erros mais gritantes, Anton Chigurh é o próprio símbolo do mal. O psicopata que protagoniza “Onde os Fracos Não Têm Vez” é a novidade na cidadezinha perdida no coração da América, uma terra há anos sob a administração dos homens velhos, fracos e incompetentes de sempre. Por paradoxal e macabro que possa parecer, Chigurh, o louco, o matador, não faz o que faz por dinheiro. O criminoso é movido por uma sede de justiça, que sacia mediante a implacável perseguição ao verdadeiro bandido. Numa crítica à contemporaneidade, Ethan e Joel Coen se valem da figura medonha de Anton Chigurh a fim de evidenciar a degenerescência do mundo, perdido em meio às necessidades mais frívolas, às mais destrutivas paixões, em que princípios que constituíram a base da civilização restam completamente obsoletos. E a sociedade é tão cínica que condena tipos como ele, mas os aplaude em silêncio, frente à inépcia de quem deveria fazer se cumprir a lei.
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Patrick Bateman veio à luz pelas mãos de Bret Easton Ellis, há 30 anos, nas páginas do romance até então mais midiático da história americana. Ellis recebera ameaças de morte, era caçado por patrulheiros ideológicos de diferentes matizes e hostilizado nos raros encontros sociais de que tomava parte, enquanto Bateman, galhardamente continuava a sair à francesa e ir jantar no Wooster, assistir ao espetáculo do Cirque de Soleil ou queimar a birita à custa de muita cocaína no Studio 54 quando terminava de estraçalhar mais uma de suas vítimas, um qualquer desgraçado que não integrava o sistema. O filme foi lançado nove anos depois, a fim de retratar em imagens os hábitos dos yuppies da América, consumistas, levianos, inconsequentes, ávidos por uma dose de prazer a mais, seja lá a que preço. A degradação social é tamanha que Bateman sai ileso, com direito a happy end e tudo. E ele merece, afinal é um vencedor, um homem que personifica o American way of life como ninguém. Ser Patrick Bateman não é para qualquer um. É necessário muita bala na agulha, muito terno Ermenegildo Zegna, muito relógio Bulgari, muito carro importado, muito apartamento luxuoso. E muito sangue frio e muita vontade de matar. Há quem venda a alma por isso.
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Ao entrar em cena, a figura de John Doe sugere a de um cidadão pacato, conformado com sua vida de pai de família e seu emprego mediano conforme se vê ao longo de “Se7en — Os Sete Crimes Capitais”, o que o torna verdadeiramente apavorante. No entanto, por mais bárbaros que sejam seus crimes, a ação delituosa nunca é explicitada, restando ao público tornar-se cúmplice do maníaco ao imaginar a maneira como suas delinquências foram cometidas. O diretor David Fincher nos permite apenas vislumbrar a maldade do antagonista por meio do cenário de terror que se encontra depois do serviço executado, jogando na cara do espectador o argumento de que todos somos um pouco John Doe, com nossas (silenciosas) fúrias e perversões as mais indigestas, vindas à luz pelos motivos que julgamos os mais nobres.
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O delinquente astuto, destemido, que se destaca dos demais foras-da-lei, por sua capacidade de transcender a violência gratuita, sempre teve lugar garantido no cinema. Keyser Söze, persona demoníaca de Roger Kint, é um virtuose do crime, digno de prestígio e reverência até mesmo por parte da polícia. Em “Os Suspeitos”, Bryan Singer elabora uma ácida diatribe contra o non sense do estabelecido, em que vilões acabam por conquistar a simpatia e a torcida do público, mérito dos bem-intencionados inúteis, os mesmos que povoam o inferno. Inspirado no assassino de carne e osso John List, o tipo de “Os Suspeitos” aparece em vários rankings dos vilões mais lembrados da história do cinema. Gracas a ele, Kevin Spacey ganhou o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante, mudando seu status de artista para celebridade (ainda que até as estrelas se metam em um ou outro escândalo de vez em quando, como é o caso de Spacey). A infâmia de Söze é um paradigma do criminoso que se considera acima da lei, justamente por causa da ineficácia da lei. A ambiguidade acerca de quem de fato é provoca debates acalorados entre cinéfilos, demonstrando assim que Singer atingiu seu objetivo quanto a aliciar o público em sua empreitada de fazer Keyser Söze e Roger Kint passarem por um só ente, nunca se podendo ter a certeza de quem é o facínora, alegoria do desgoverno do mundo frente a tamanho caos.
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Maximilian Cady é o antagonista do romance de John D. MacDonald, “The Executioners”. Vivido por Robert Mitchum na primeira versão de “Cabo do Medo”, Robert De Niro foi quem melhor soube imprimir a aura de fascínio em torno da figura nefasta de Cady na refilmagem de Martin Scorsese. Ao saber que fora condenado pelo estupro que cometera devido à interferência do próprio advogado, Sam Bowden, que escondera provas que o poderiam inocentar, Cady só consegue se manter vivo graças ao ódio contra Bowden. A aversão de Cady pelo homem que deveria tê-lo livrado da cadeia — e não o atirado dentro de uma cela — torna-se insuportável quando a mulher do criminoso se divorcia dele e leva consigo o filho do casal. Depois de ter cumprido a pena, Cady sai à procura de Bowden e sua família, convicto de que tem todo o direito de fazer o advogado experimentar um pouco do seu próprio veneno.
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A personalidade de Hannibal Lecter é terreno pantanoso, onde nada cresce e traga qualquer um que queira se aventurar por ele. Nascido em Caunas, na Lituânia, em 30 de janeiro de 1938, Hannibal fica órfão de pai e mãe ainda tenra idade e é mandado a um orfanato. O menino cresce num cenário hostil, agravado pela dureza da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), até ser resgatado pelo tio-avô, que também morre algum tempo depois, vítima dos ferimentos por causa de uma briga. O protagonista de “O Silêncio dos Inocentes”, de Jonathan Demme, filme em que aparece com mais destaque depois de seis anos, quando veio à luz em “Manhunter” (1986), de Dino de Laurentiis, e eternizado por Anthony Hopkins, é a encarnação do médico-monstro do romance de Robert Louis Stevenson (1850-1894), obcecado por carne humana desde que presenciou a própria irmã, Mischa, ser devorada pelos hiwis, os lituanos que ajudavam os nazistas ao longo da Segunda Guerra.
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Gestado a partir da criatividade saborosamente delirante de Stephen King, depois ter ganhado as páginas da novela do autor, “The Shining”, publicada em 1977, John Daniel Edward “Jack” Torrance vai para a tela grande em 1980, na versão que consagrou o personagem na interpretação de Jack Nicholson. Filho de Mark Torrance, auxiliar administrativo de um hospital, Jack tem três irmãos mais velhos, Brett, Becky e Mike. Ex-professor da Escola Preparatória Stovington, de onde é demitido depois de espancar um aluno que vandalizava seu carro, Torrance vai dando vazão à sua personalidade violenta, potencializada pelo alcoolismo. Por meio de uma cena de flashback, em que se vê o pai de Jack, bêbado, investindo contra a mãe do garoto com golpes de bengala, é possível se compreender o vício do personagem, que desenvolve estranhas habilidades paranormais.
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Quando o pouco caso com a vida alheia, o ódio pela humanidade, e a loucura encontram um meio para se manifestar legitimamente, seja por meio de uma guerra ou em corporações pensadas com o nobre intuito essencial de defender o cidadão, mas que em muitas vezes se prestam a exterminar determinado grupo populacional, o fim de tudo se torna ainda mais próximo. Em “Apocalypse Now”, Walter E. Kurtz é a tradução perfeita do mal encrustado no coração trevoso do homem. Kurtz pouco se importa com as causas da guerra; para ele, a guerra é uma causa em si, a oportunidade mais bem-acabada para satisfazer seu ímpeto assassino. Na sua visão de mundo tão particular, a vida só faz sentido se apreendida de um ponto de vista em que a subjugação sobre outros homens nunca deve sair da cabeça daquele que se pretende superior e quer subir, ainda fazendo como escada pilhas de cadáveres.
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Travis Bickle, um ex-fuzileiro da Marinha americana de 26 anos, morador de Nova York, começa a trabalhar como taxista durante a noite a fim de aliviar sua insônia incurável. Passa pelos bairros mais perigosos, sempre transportando assaltantes, drogados em busca da última carreira de cocaína e cafetões. Obcecado por armas, dispõe de revólveres e pistolas no táxi e chega a guardá-los sob a roupa. Em vista da ineficiência da polícia, se sente na obrigação de deixar as ruas da Big Apple menos intransitáveis e dá início a uma carnificina, matando todos os que considera indesejáveis para a sociedade. Bickle é ele mesmo um desajustado, um sujeito que não encontra mais lugar no mundo, completamente incapaz de estabelecer contato com quem quer que seja se não mediado pelo cano de uma arma. Ao reparar em Betsy, secretária do senador Charles Palantine, candidato à Presidência, passa a espionar a moça até sentir-se seguro para chegar até ela. Numa metáfora poderosa, Martin Scorsese aborda a psicopatia do motorista de táxi, que ainda que compre todas as armas que consiga, nunca estará à vontade o bastante na companhia de outra pessoa, mesmo uma mulher que deseja, haja vista para onde a leva no primeiro encontro dos dois e é merecidamente rechaçado. A partir desse episódio, a personalidade truculenta de Bickle se exacerba e ele se envolve em situações perigosas, inclusive para o próprio taxista, uma bomba-relógio sobre a qual nem ele mesmo tem controle, como se constata do comportamento de um indivíduo com essa natureza de transtorno mental. O caráter maligno de Bickle é suavizado do segundo ato em diante, quando ele assume ares de redentor da menina de 12 anos que se prostitui, mas não quer deixar o ofício. Falso maluco-beleza, contudo, Travis Bickle é um cachorro louco, sempre arrumando sarna para coçar.
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Poder-se-ia explicar o desvio de comportamento de Norman Bates por meio da exposição de que o protagonista do romance de Robert Bloch (1917-1994), publicado em 1959, e do filme em que se baseou, “Psicose” (1960), dirigido por Alfred Hitchcock (1899-1980), era seviciado pela mãe, Norma, mas essa é uma premissa o seu tanto pobre. Norman fora batizado com esse nome numa espécie de ritual de autolouvação de Norma, o que tem seu sabor todo próprio numa trama dessa natureza. É como se o filho fosse uma extensão de si mesma, deixando de lado os vínculos biológicos e sentimentais; Norma queria, por meio do filho, saciar as vontades que nunca pudera. Ela incutira no garoto uma paixão doentia a que não era capaz de corresponder, mas Norman se deixava seduzir pela mãe, e apreciava essa relação patológica, a ponto de matá-la envenenada por ciúme. Édipo contemporâneo, transportado da Grécia Antiga para os Estados Unidos de meados do século 20, Norman Bates só ama se tem a chance de se apossar do objetivo de sua fixação. O caminho mais seguro que encontra para que isso ocorra é valendo-se da morte, destino que também reserva a Marion Crane, que foge do patrão que roubou, se hospeda no motel dos Bates e é morta no chuveiro, na clássica cena do thriller hitchcockiano.