A filosofia, o amor pela sabedoria, só é possível para aqueles que têm a dimensão da própria ignorância. O matemático grego Pitágoras (séc. VI a.C.) era um defensor ferrenho da harmonia entre corpo e alma para a saúde de um e de outra, não sendo outra coisa, no fundo, o enunciado de seu famoso teorema. Tudo na vida vem como parte de uma série de decisões que somos obrigados a tomar, em maior ou menor grau, que ao cabo de algum tempo, implicam em equilíbrio ou instabilidade. O espírito humano, cheio de esconderijos, de lugares que muitas vezes nem nós mesmos conseguimos acessar, vai acumulando as muitas experiências pelas quais passamos ao longo da vida, memórias que acabam por nos servir, de um jeito ou de outro, em algum momento, a fim de que possamos manter a salvo a integridade mental. E nada como uma boa segunda-feira, daquelas cheias das suas reviravoltas características, para sabermos se a cabeça está mesmo às boas. O segundo dia da semana, primeiro se tomarmos como parâmetro os dias de trabalho duro — ainda que muita gente trabalhe (e como!) aos domingos —, geralmente já principia com uma cascata de mensagens do chefe no WhatsApp; dezenas de e-mails, a maioria sobre coisas inúteis, pelas quais não temos qualquer interesse, mas que nos tomam um tempo precioso só para que os separemos do que de fato importa; e, o principal — e a pior parte —, as tarefas da semana anterior que acabaram ficando para a que se inicia. Aí, realmente, é de dar um nó até no cérebro do mais centrado dos mortais. Mas calma, inspire, expire e não pire. A segunda-feira pode ser uma grande aliada na nossa eterna busca por outros sete dias melhores, afinal, a segunda-feira é o dia de trabalho por excelência. Pense na segundona como a possibilidade de recomeço, de zerar o que não deu certo e seguir em frente, confiante de que a semana traz os melhores, os mais felizes sete dias da sua vida. A lista da Bula de hoje pinçou do vasto cardápio de filmes que dão sua honrosa contribuição à filosofia dez histórias que nos ajudam a preencher o vazio da segunda — e da semana que ela encabeça. Em “Paddleton” (2019), do diretor Alexandre Lehmann, vemos que a vida poderia ser um mero prolongamento do domingo, e a morte, quiçá nem tão difícil assim, talvez seja um bônus do mundo da matéria. Quanto a “O Quarto de Jack” (2015), dirigido por Lenny Abrahamson, a mensagem que se apreende do enredo é justamente essa: por mais que tarde, por mais que tudo pareça perdido, dias melhores sempre acabam batendo à porta. Os títulos, todos na Netflix, foram listados do mais novo para o mais antigo, sem nenhum critério de preferência. Não tenha a segunda-feira como uma inimiga — até porque na semana que vem ela volta, e pode se vingar.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix
Sozinhos, sem quaisquer vínculos familiares e com alguns problemas sociais, os vizinhos Andy e Mike foram feitos um para o outro. Eles não sabem ao certo o que é a felicidade, mas felicidade para eles é comer pizza congelada todos os dias, assistir a filmes antigos de kung-fu, tentar decifrar enigmas bestas e, claro, praticar paddleton, um jogo inventado pelos dois. A vida nada empolgante desses amigos segue seu curso monótono, mas perene, até que Mike é diagnosticado com câncer no estômago e sente que não vai viver muito mais. A fim de preservar sua qualidade de vida e o pouco que lhe resta de sanidade mental, Mike toma uma decisão: prefere morrer o mais breve possível, enquanto ainda tem saúde, por meio do suicídio assistido, legalizado em alguns estados americanos.
Alex Garland é um homem de estrela. Responsável pelo roteiro de bons filmes, a exemplo de “Extermínio”, “Não Me Abandone Jamais” e “Dredd”, Garland principiou sua carreira como diretor no final de 2014, com o excelente “Ex-Machina: Instinto Artificial”, sobre a relação entre os progressos tecnológicos e se a humanidade estaria apta a acompanhá-los. Em “Aniquilação”, ele se vale da ficção científica para discorrer acerca dos maiores mistérios da vida na Terra: a criação, o processo evolutivo, a ciência e a religião, muitas vezes como numa feira, disputando a preferência do público. Abusando das tomadas abertas e coalhado de efeitos especiais, o longa deveria ser apreciado primeiro no cinema, mas o resultado pífio de “A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell” (2017), dirigido por Rupert Sanders, melou as expectativas, dele e do espectador. Em “Aniquilação”, Natalie Portman é Lena, uma bióloga de renome que já fora militar. Com o marido desaparecido, ela aceita integrar a missão que vai explorar a Área X, onde se dá um fenômeno que toma todo o litoral americano para o qual a ciência não tem explicação. Contando com uma equipe de outros cinco especialistas, Lena começa uma pesquisa, a fim de tentar entender se os eventos têm alguma relação com a possível interferência de organismos extraterrestres ou se se trata de uma espécie de manifestação antropológica, como um culto religioso. O filme é para gente de cuca fresca, que não se incomoda com enredos cujas indagações permanecem em aberto e, pior (ou melhor), deixa ainda outras tantas perguntas, o que fomenta uma salubre reflexão a respeito do gênero humano e seu lugar no mundo.
A história de um policial negro que se passa por um homem branco a fim de investigar como funciona a Klu Klux Klan, um grupo que se notabilizou por difundir ódio racial é tão absurda que só poderia mesmo ter acontecido de fato. “Infiltrado na Klan”, filme com o qual Spike Lee ganhou o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado, conta a história de Ron Stallworth, até então o único policial negro de sua cidade, Colorado Springs. Ao se deparar com um anúncio da KKK publicado sem nenhuma cerimônia num jornal, ele liga para o número informado ali. A primeira aproximação é convincente e Stallworth estabelece um vínculo com um dos líderes locais da agremiação segregacionista. Por mais destemido que seja, ele não vai poder levar sua missão a cabo sozinho, por razões óbvias. E é aí que entra Flip Zimmerman, branco e judeu, seu parceiro na polícia. Zimmerman assume a identidade de Stallworth e se mistura ao bando, ainda que provoque a desconfiança de um dos fanáticos, que não lhe dá refresco.
Um ator é seu personagem, ainda que apenas durante o tempo compreendido entre ensaios e gravações? O que se mostra mais producente para um ator, anular-se completamente a fim de que o representado se destaque o máximo possível, ao modo de Brecht (1898-1956) ou, ao contrário, imiscuir-se o quanto pode no papel, emprestando-lhe características de sua própria personalidade e tirando da persona do retratado aspectos que fariam sua vida menos insuportável, conforme ensinava Stanislavski (1863-1934)? Em “O Mundo de Andy”, o diretor Chris Smith faz um registro detalhado do trabalho do ator Jim Carrey ao adotar aspectos muito íntimos da maneira de ser de Andy Kaufman (1949-1984) enquanto se preparava para estrelar “O Mundo de Andy” (1999).
Um homem, um destino, uma razão para seguir. Esta poderia ser a frase usada para trabalhar a divulgação de “O Livro de Eli”. O homem, o Eli do título é um andarilho perdido numa América destroçada, depois de sucessivos anos de guerras; o destino, reencontrar o lugar de onde foi tirado o livro que carrega consigo. Quanto à razão para continuar sua jornada, bem, o livro foi tudo que lhe restou na vida — e Eli não parece disposto a abdicar de suas convicções, ainda que as circunstâncias não sejam das melhores. Em falando nisso, por óbvio ele se depara com inúmeros tipos que tentam subjugá-lo e detê-lo em seu propósito. O protagonista responde à altura, brandindo a única arma com que pode contar, um facão afiado com esmero, mas parece confiar demais em seu destemor. O medo serve para o homem como um sistema de freios morais: quanto mais se teme alguma represália, mais se evita passar por cima do estabelecido, do sistema. O caráter antiutópico da história é digno de nota ao sugerir um mundo em que o desprezo por princípios éticos mais do que desejável, é obrigatório. Todos nós já vimos esse filme e sabemos como ele acaba.
Howard, bem-sucedido publicitário nova-iorquino, não se conforma com a morte da filha e aos poucos se entrega à mais dilacerante forma de desespero. Apático, incapaz de reagir a qualquer estímulo, não vê mais graça em partilhar da companhia de Will, Simon e Claire, seus melhores amigos. Seu único alento é escrever cartas, destinadas ao Amor, ao Tempo e à Morte, por meio das quais consegue algum respiro conforme se libera para desabafar. À medida que se dedica ao passatempo que lhe permite continuar a viver, Howard sufoca a tristeza titânica que se abateu sobre ele e, quando menos espera, passa a ser visitado por seus interlocutores imaginários, encarnados em pessoas. Desse diálogo, lhe surge o entendimento acerca da beleza escondida por trás de cada sentimento humano — mesmo os mais avassaladores.
Ser minimalista é resistir à tentação de dar valor ao que não vale nada. Para a sociedade contemporânea, viciada na sensação “libertadora” de comprar, juntar, acumular, um conceito tão contra a corrente parece um hermetismo o seu tanto sui generis, quase irracional. “Minimalismo: Um Documentário Sobre Coisas Importantes”, dirigido por Matt D’Avella, mergulha no que para muitos num mundo hedonista, que coloca num pedestal o prazer a qualquer preço, é uma verdadeira loucura: ter só o necessário para viver e — a parte realmente mais difícil do processo — refrear os inamovíveis impulsos consumistas, verdadeira praga na história da humanidade desde, pelo menos, o fim da Segunda Guerra Mundial, quando o homem parece ter se deixado enfeitiçar pela ideia da morte à espreita, que a vida é uma só, da qual não se leva um vintém. Deveria se concentrar no que de fato importa.
Existem histórias tão inverossímeis que só poderiam mesmo ter saído da pena da própria vida. Dada a precisão do roteiro, o diretor Lenny Abrahamson parece ter pegado um filme prontinho, mas era justamente aí que residia o problema. Baseado no romance homônimo de Emma Donoghue, publicado em 2010, “O Quarto de Jack”, a força do enredo está na palavra. Cinema é palavra também, claro, mas é muito mais imagem, por óbvio. Abrahamson venceu o desafio ao optar pelo minimalismo da cena e voltar as baterias ao desempenho da excelente Brie Larson e do formidável Jacob Tremblay, mãe e filho enclausurados depois que Joy, a personagem de Larson, é sequestrada aos 17 anos por um maníaco que se aproxima dela pedindo-lhe que socorresse o seu cachorro. Dois anos e muitos abusos depois, Joy engravida e dá à luz o Jack do título, nascido no quarto em que são mantidos em cativeiro pelo criminoso, que se faz conhecer apenas pelo apelido, Velho Nick. Tudo o que têm são um ao outro e é cortante observar a estreiteza dos laços que os unem. A única ideia que Jack tem acerca do mundo se forma a partir das imagens de uma televisão velha. Nada para ele é real, apenas a mãe, já que nem a si mesmo consegue ver, por não existir sequer um espelho no cubículo. Imaginar que tudo aquilo possa ter acontecido de fato é asqueroso; tanto pior se sabemos que o livro de Donoghue se fundou no caso de repercussão internacional de uma adolescente que enfrentara o mesmo calvário que a personagem de Larson, com a agravante do Velho Nick da vida real ser Josef Fritzl, responsável por aprisionar a filha durante 24 anos. Quando resgatada, a garota era mulher feita e havia engravidado do pai reiteradas vezes. Fritzl se matou na prisão. Joy também consegue se ver livre de seu inferno particular, graças a um plano cuja participação de Jack é vital. Crianças têm o condão de ser (quase) sempre adoráveis e é o que também se observa com Tremblay, que conquista o público sem o menor esforço. A partir do segundo ato, quem reluz mesmo é a intérprete de Joy. É impressionante a compreensão que Larson tem do papel, dando-lhe a profundidade necessária. A readaptação à antiga vida se revela muito mais difícil do que ela pensava e lhe demanda uma boa dose de esforço quanto a exorcizar alguns fantasmas mais obstinados. A entrevista que Joy concede a um programa de grande audiência, sugestão do advogado da família — à custa de um gordo cachê —sai pela culatra. A âncora pesa a mão nas perguntas, Joy não digere bem o episódio e tenta o suicídio. Aos poucos e podendo contar com o carinho de Jack, da mãe e do marido dela, a protagonista vai dando a volta por cima, até que a sequência final dá a entender de que Joy e Jack, aos trancos e barrancos, foram felizes para sempre.
Um homem, um destino, uma razão para seguir. Esta poderia ser a frase usada para trabalhar a divulgação de “O Livro de Eli”. O homem, o Eli do título é um andarilho perdido numa América destroçada, depois de sucessivos anos de guerras; o destino, reencontrar o lugar de onde foi tirado o livro que carrega consigo. Quanto à razão para continuar sua jornada, bem, o livro foi tudo que lhe restou na vida — e Eli não parece disposto a abdicar de suas convicções, ainda que as circunstâncias não sejam das melhores. Em falando nisso, por óbvio ele se depara com inúmeros tipos que tentam subjugá-lo e detê-lo em seu propósito. O protagonista responde à altura, brandindo a única arma com que pode contar, um facão afiado com esmero, mas parece confiar demais em seu destemor. O medo serve para o homem como um sistema de freios morais: quanto mais se teme alguma represália, mais se evita passar por cima do estabelecido, do sistema. O caráter antiutópico da história é digno de nota ao sugerir um mundo em que o desprezo por princípios éticos mais do que desejável, é obrigatório. Todos nós já vimos esse filme e sabemos como ele acaba.
Um encontro casual fomenta mentiras, paixões e mágoa entre Dan, Alice, Anna e Larry, que não conseguem romper os frágeis laços que ainda os unem. Entre uma e outra taça de vinho, entre um joguinho de sedução e outro, vêm à tona muita lavação de roupa suja, muita verborragia, muito barraco. O fio tênue que os mantém ligados até se esgarça, mas nunca arrebenta de vez. E eles seguem assim, entre tapas e beijos, até porque não sabem viver de outro modo, crônica de relações que se estendem para além do que deveriam, “Closer” evidencia o comportamento errôneo de protagonistas que se negam a aceitar que o tempo passa, as aspirações em comum se liquefazem e a vida segue adiante.