“Vivemos envolvidos em um mundo de mecanismos e máquinas. Precisamos parar de olhar ao nosso redor para apreciar o que estamos recebendo.” O filósofo e crítico de arte inglês Roger Scruton (1944-2020) era um conservador, e por essa razão, ferrenho defensor da beleza e, mais, da importância da beleza, não apenas na arte, como na própria vida cotidiana do homem. Para Scruton, a beleza seria um presente que nos concede a vida, e, como tal deveria ser apreciada. Um presente faz reluzir o que há de melhor em nós, como uma lembrança de que não merecemos estar no mundo e, assim mesmo, estamos, sabe-se lá por que e para quê. Daí seu estranhamento diante de “artistas” a exemplo de Damien Hirst que se tornam famosos e milionários à custa de detratar a arte e sua beleza, como atestam as obras que vendem a peso de ouro. Scruton, calado ainda precocemente, no melhor de sua produção intelectual, devido a um câncer, era, como o francês Michel Foucault (1926-1984), ícone da esquerda, entusiasta da ideia de que ética e estética andavam quase sempre juntas, sendo, assim, vital a relevância de se valorizar — e se exaltar — o belo no fazer artístico: o belo serviria para que o melhor do gênero humano tivesse condições mais favoráveis de se desenvolver. A lista da Bula de hoje tem sete filmes cujo impacto visual mediante o invulgar requinte estético suscitam na audiência a reflexão e o pensamento sobre os mais diversos temas. As tomadas panorâmicas da antiga Pequim, ressuscitada graças à tecnologia, vista em contra-plongeé, bem como sequências muito bem coreografadas de artes marciais, fazem de “O Tigre e o Dragão” (2000), do diretor Ang Lee, uma história a que se deve dar preferência quando se toma por base questões caras à visão de mundo dos orientais. No caso de “Mãe!” (2017), Darren Aronosfky aborda o sentimento da maternidade da maneira mais chocante jamais empregada, o que resulta num filme escandalosamente bonito. Os títulos, todos na Netflix, surgem do mais recente para o lançado há mais tempo, em ordem alfabética, sem cotações acerca da preferência. A beleza pode até não por mesa, mas filmes como esses são um banquete, para os olhos e para o cérebro.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix
O cinema feito no Oriente é referência em criatividade. Livres de tantas amarras comerciais e donos de uma tradição milenar, que perpassa histórias fantásticas, fábulas e lendas, a Ásia é pródiga em oferecer ao publico — e ao mercado — produções inventivas, originais, inovadoras. O trabalho de Bi Gan é uma lufada de ar fresco no embolorado ambiente cinematográfico dos últimos dois anos, em se desconsiderando o circuito de filmes autorais, por evidente. O uso da técnica de 3D, já obsoleta apenas três anos depois, mas surpreendente até então, é simplesmente arrebatadora. As tomadas se sucedem sem edição, por meio filme, e isso é só uma pequena prova do preciosismo do diretor Bi Gan, um virtuose nesse expediente. O espectador é conduzido pela voz do narrador em off para o interior de uma boate, como se estivesse tendo um delírio, um transe, um sonho. Os movimentos são precisamente cuidadosos, calculados, o que evidencia a beleza dos planos para além do que poderia ser razoável, mas nada disso acontece sem que essa delicadeza tenha um propósito por trás. E o filme só pode mesmo ser singelo, doce, frente a natureza lírica do enredo. Um homem volta à sua cidade natal devido à morte do pai, encontra a foto de uma ex-namorada e, a partir de então, sai à procura dela. E essa jornada, conforme se vê na obra de Michelangelo Antonioni (1912-2007) e Alain Resnais (1922-2014) — e mais recentemente, Martin Scorsese e Tim Burton —, que tão magistralmente souberam registrar a passagem do tempo numa determinada configuração espacial, não é nada linear, assim como a vida. Todos esses artistas, Bi Gan inclusive, têm desenvoltura acima da medida quanto a apresentar soluções fílmicas que condensam a ação no presente e a que já está dada de maneira absolutamente verossímil. Quanto aos lugares, são como as diversas telas numa exposição, cada qual com seu sentido próprio, mas convergindo, de forma a compor um todo homogêneo. Para Bi Gan, a feitura de uma peça cinematográfica é, ainda no ovo, a possibilidade de ousar, subverter qualquer paradigma já estabelecido, sem subtraminhas bem narradas a fim de ganhar o público. O cinema de Bi Gan é de ação, no melhor sentido da palavra. “Longa Jornada Noite Adentro” é um filme que nos sacode, como a cobrar de nós alguma atitude, frente àquela história e à própria vida.
Com “Dunkirk”, Christopher Nolan conseguiu duas verdadeiras proezas. A primeira foi entregar um filme absolutamente distinto do que vinha apresentando em trabalhos a exemplo de “Batman: O Cavaleiro das Trevas” (2008) e “Interestelar” (2014). Por aí, já se vê que Nolan é um diretor plural e ambicioso, mas a cereja do bolo está mesmo aqui. Sua segunda façanha foi ter imprimido tamanho realismo e dramaticidade numa história carregada de significado. O filme conta, com o rigor intelectual necessário, como se deu o resgate de mais de 300 mil soldados britânicos na costa francesa, completamente sitiados pelas tropas de Hitler. Só o número de figurantes necessários para se emprestar credibilidade às sequências já é uma epopeia à parte, mas a força do talento de Nolan dá conta do recado direitinho. Sem nenhum exagero, “Dunkirk” comprova que Christopher Nolan se superou frente a todos os seus excelentes trabalhos anteriores e produziu a obra definitiva sobre operações militares arriscadas no decorrer de uma guerra. Os cinéfilos esperamos que ele seja vencido.
Darren Aronofsky talvez seja um dos diretores mais sofisticados da história do cinema, predicado que se confirma ao se analisar trabalhos como “Pi” (1998), “Fonte da Vida” (2006), “Réquiem para um Sonho” (2000) e este “Mãe!”. Em “Mãe!”, o diretor se esmera em compilar um calhamaço de ideias sobre a criação da humanidade, tomando por base o cotidiano de um casal o seu tanto apagado, opaco, levando uma vidinha frugal e sem uma razão maior. A personagem principal, Veronica, é casada com um homem mais de vinte anos mais velho, e é ela a responsável por prover as necessidades materiais e afetivas do casal, já que ele, poeta medíocre, tenta a todo custo conseguir inspiração para escrever e a empreitada nunca toma corpo. A moça não parece enfrentar quaisquer conflitos quanto à condição em que ela e o marido vivem; sua frustração é outra. Tal como o marido persegue a obra de sua vida, ela deseja com o mesmo afinco se tornar mãe. Ainda que nem um nem outra obtenham êxito em suas respectivas demandas, a vida transcorre sem maiores sobressaltos. Até que um homem, aparentemente sem um lugar onde passar a noite, bate à porta deles. O poeta, famoso por seus versos humanistas, o acolhe. Com a chegada do intruso, todo o cenário de uma pretensa harmonia rui e a casa adquire um aspecto fantasmagórico, sendo tomada por tipos os mais esdrúxulos, como se uma legião de faunos se apossasse daquele paraíso. Tudo passa a ficar um pouco menos confuso a partir do segundo ato, desencadeado com a gravidez da protagonista, malgrado o jogo com que Aronofsky pretende enredar o espectador seja perigoso demais. Aqui, o público deve equilibrar com muito zelo razão e sentimento a fim de não se permitir sequestrar por nenhum dos dois. Tudo vai sendo posto em pratos limpos sem pressa, mas de um jeito bastante óbvio, de modo que não se possa dar azo a qualquer interpretação delirante. Do ponto de vista técnico, o roteiro também foi milimetricamente pensado para encantar. A câmera persegue Veronica, como um predador, não deixando escapar uma expressão sequer. À medida que o desespero dela se exacerba, mais viva a casa se torna e mais ameaçadora também. Chama atenção a trilha sonora, composta pela papisa do punk, Patti Smith, fundamental por conduzir a audiência em meio a um amálgama de sensações, refreando e acelerando a intensidade dos eventos em cena. O desempenho de Jennifer Lawrence, intérprete de Veronica, é um capítulo à parte. É impressionante que tão jovem ela já tenha uma vasta quilometragem, arrebatando um número crescente de admiradores e defendendo um papel melhor que o outro ao se tornar a própria personagem, conforme se atesta em “O Lado Bom da Vida” (2012), pelo qual venceu o Oscar de Melhor Atriz. Seus acessos de espanto mediante a bestialidade dos penetras que lhe tiram o sossego sem clemência são inesquecíveis. “Mãe!” é uma alegoria sobre uma das emoções mais plenas de sentido a se concretizar na vida da maioria das mulheres – por mais que o mundo tenha girado tanto e tão depressa. E sobre do que essas mulheres, santas ou não, são capazes para manter a salvo o fruto de seu ventre.
A fantasia épico-dramática dos diretores Liang Xuan e Chun Zhang impressiona, tanto mais por se tratar de gente nova no ramo. A qualidade técnica, a forca da mensagem, a precisão poética do roteiro, tudo conspira para que “Big Fish e Begônia” tome o espectador de assalto e fique por ali, cavando um espacinho no coração do público. O filme começou a ser pensado 12 anos antes do lançamento, e cada minuto parece ter sido crucial. O que se vê na tela é a realização de um sonho, e aqui não vai nenhuma metáfora gasta. Liang Xuan vira enquanto dormia a história de um peixe que ia crescendo até não caber mais em lugar algum se não o mar. O parceiro entendera a mensagem, que poderia dar em enredo para um bom filme sobre liberdade, escolhas, amadurecimento. Em 2004, começaram a trabalhar, primeiro sob a forma de curta-metragem. Chun é uma espécie de criatura mitológica, habitante de um mundo paralelo logo abaixo da superfície do oceano. O céu de Chun é a parte mais abissal do mar. Ao completar 16 anos, é submetida ao rito de passagem para a vida adulta de seu povo. Sob a forma de golfinho vermelho, é despachada para observar os homens — e esse é o verbo adequado. Não é permitida nenhuma aproximação, a fim de que se preservem as duas espécies. Mesmo considerando a regra temerária demais, Chun cumpre as ordens e se deslumbra com o que pode vivenciar. Já no caminho de volta para o seu mundo, fica presa numa rede de pesca. Quem a salva é o menino que havia conhecido ao chegar, que corajosamente se lança ao mar a fim de salvá-la. Chun se desprende da rede, mas o garoto morre. Num terrível drama de consciência, ela o resgata, e vai atrás do guardião de almas, um ser meio demoníaco com quem negocia a ressurreição dele, sob a condição de que lhe reserve metade de sua vida. Transformado num peixe, chamado de Kun pela nova amiga, será assistido pela menina até que possa retomar sua vida. Como o guardião lhe advertira, a presença de Kun num mundo que não é o dele traz complicações, como o desequilíbrio no ecossistema. O intruso passa por situações vexatórias e até repugnantes. A situação torna-se ainda mais delicada quando Chun e Qiu, o amigo que nutre uma paixão secreta por ela, sabem que Kun, na verdade, fora renegado por seu povo, que o queria fora da comunidade, e agora que ele começa a se recuperar, não o quer de volta. À luz da filosofia oriental, mais precisamente o taoísmo, no caso do filme, a história serviria como uma espécie de alerta sobre como o homem será encarado no além-vida, ou seja, de acordo com seu comportamento no mundo da matéria. A desdita de Kun talvez fosse mesmo o que lhe reservara o mundo divino, e Chun fora imprudente ao se envolver. Desde o princípio dos tempos, o homem sempre teve a possibilidade de fazer a escolha que lhe conviesse, desde que fosse capaz de arcar com as consequências de seus atos. A aura de fantasia aliada ao místico é um dos grandes momentos de “Big Fish e Begônia”, um filme que ensina, ainda que passe a impressão, à primeira vista, de ser só mais uma das muitas animações de algum país distante.
O rei espartano Leônidas lidera um exército de trezentos valorosos e fiéis homens, uma enormidade para a época, contra a tirania de Xerxes, soberano da Pérsia. Leônidas é o legítimo representante da realeza grega: estoico, não se deixa admoestar por uma qualquer bobagem. A capacidade de passar por cima de todos aqueles que ousam cruzar o seu caminho também é louvada em Leônidas, um chefe de estado nada convencional, que se sente desafiado frente ao destemor do oponente, que incorpora tudo o que ele despreza, mas que, mesmo assim, não deixa de lhe causar certo fascínio. Leônidas e Xerxes, finalmente, encaram o que o destino lhes reserva: vão entrar em guerra um contra o outro, cada qual defendendo princípios muito diferentes. Ao contrário de Xerxes, o rei feito deus, Leônidas perde noites de sono ao pensar no destino de seu reino e de seus comandados, uma possível leitura de Zack Snyder para os intermináveis embates do homem com sua própria natureza, sem nunca saber a quem deve ouvir: se aos apelos de sua alma por elevação, ou aos clamores do corpo por saciar suas necessidades mais vulgares.
Aos 10 anos, Chihiro é uma menina que, como quase todas as outras crianças da mesma idade, pensam que o mundo gira em torno do seu próprio umbigo, e, claro, vira uma fera ao saber que terá de se mudar com os pais. Eles dão início a essa longa viagem, mas a menina nota que alguma coisa dera errado. Seu pai certamente se perdera e conduzira a família para a entrada de um imenso túnel, guardado por uma estátua. Ainda que a situação se apresente o seu tanto inusitada, os pais de Chihiro entram, levando a menina consigo. Depois de andarem por algum tempo, chegam a um vilarejo aparentemente abandonado, embora numa das casas esteja posta uma mesa cheia de comida. Enquanto os pais se fartam, a protagonista sai num passeio e conhece Haku, que lhe recomenda deixar o povoado o quanto antes. Chihiro fica impressionada com a veemência do menino e volta correndo ao encontro dos pais. Para sua surpresa, nessa fábula sobre autoconhecimento e procura de respostas para os insondáveis mistérios da existência, ela se depara com dois porcos gigantescos. Começa um novo caminho para Chihiro, através de um mundo fantasmagórico, cheio de seres monstruosos e completamente hostis à presença humana.
Em seu sétimo longa, Ang Lee resolve inovar e adotar no enredo de seu filme o wuxia, que compreende narrativas cheias de cenas em que os atores praticam artes marciais — aqui, muito bem coreografadas, por sinal — e empunham adagas e machetes. O roteiro de Hui-Ling Wang, Kuo Jung Tsai e James Schamus, adaptado do livro de Du Lu Wang, dá azo a um trabalho que não deixa nada a dever a tudo o que se vinha fazendo de semelhante até então, com a diferença de ser uma produção de refinamento infinitamente superior, tanto na forma como no conteúdo. O trio utiliza os tradicionais elementos do wuxia, sem desperdício nem forçar a barra. Michelle Yeoh está em ótima forma, num dos papéis mais marcantes de sua carreira, muito melhor que a ainda verde Zhang Ziyi, sem dúvida talentosa, que cresce justamente quando divide o plano com Yeoh. Ao enfatizar as tomadas em grande angular de uma Pequim ancestral vista do alto, a fotografia de Peter Pau, aliada à computação gráfica, é, de longe, uma das melhores coisas do filme, ajudando a contar a história das duas protagonistas, a jovem aristocrata disposta a renunciar à vida de luxo e poder a fim de se tornar uma guerreira, enquanto a outra, experiente espadachim e lutadora, parece cada vez mais inclinada a trocar a incerteza da vida como defensora da dinastia Ching em nome do amor — se ainda tiver a chance. O filme custou 17 milhões de dólares e multiplicou a receita em quase 12 vezes, arrecadando mais de 200 milhões de dólares em todo o mundo. “O Tigre e o Dragão” continua a deter a marca de filme estrangeiro com mais indicações ao Oscar, dez, incluindo a de Melhor Filme, Melhor Diretor e Melhor Roteiro Adaptado. Venceu em quatro categorias: Melhor Filme Estrangeiro, Melhor Trilha-Sonora, Melhor Fotografia e Melhor Direção de Arte. Ang Lee passa anos sem aparecer, mas sempre que sua figura adelgaçada e discreta começa a tomar corpo nos circuitos e mostras de cinema, que se tenha a certeza: um tigre está saindo da toca.